domingo, junho 05, 2005

Maria Ria

Joaquim atravessava o rio febril.
Nem a difteria abrandava cada remada,
Nem a manhã fresca e cinzenta de Abril,
Para que pudesse chegar-se à sua amada,
Mesmo temendo o contágio!
E tremendo e tossindo lá ia,
Não receando cruel adágio,
Que sem ela mais sofria
E se daria ao naufrágio
Da saudade e da mágoa.
Bastaria que os olhos se vissem
Na equidistância de água,
Trocando palavras que dizem
Sem dizer febres e fráguas
Que ardendo ardem sem se ver.
Acostando, a corrente se acalma,
E lá ia o Joaquim a arder
Nas combustões do corpo e da alma;
Na sofreguidão de a ver,
Maria, única e última mulher!
Maria, mulher sã, por seu turno
Mulher de muitos afazeres,
Não esperava a visita naquela manhã
De Abril fresco a humedecer
E cria Joaquim convalescente,
Que vinha da ourela até à vila.
Pela vereda descendente,
O empedrado que se afila
Rumo ao fito do padecente,
Onde repousaria no seu desígnio,
Joaquim, homem de amor infinito,
Que estando fora do seu domínio,
Se alimentava a jejum insatisfeito.
Então, farejava o perfume rarefeito de Maria.
Aquele fascínio... e seguia...
Já na vila, Joaquim, eriçado, viu Maria.
Evaporou-se bruscamente o delírio.
Apenas no corpo a torpe difteria;
No peito a fragilidade do mundo não lírico,
Ou no pensamento essa agonia.
Maria, a cura e um sono profundo,
Em cujos braços se devolveria.
A duzentos metros, lugar de delícias no mundo.
Lá estava ela, e bem disposta, Maria ria.
Levantou-se subitamente o vento
E Maria tornou fortuitamente a cara para Joaquim.
Viu-o, e no semblante, estampado tormento,
Volubilidade de tudo o que é para si,
Na mais egoísta essência de sofrimento.
Joaquim, escorrido, esperava dela os restantes passos.
Na derradeira súplica e silêncio desabado,
Maria despediu-se comprometida da mulher com quem falava
E meteu as mãos nos bolsos.
Virou-se, empedernida, para o outro lado,
Como que sem espírito; só carne e ossos.
Fragilidade! Teu nome é mulher!
Como quem vira a névoa da morfeia,
Maria correu para casa dos pais por saber
Que Joaquim não cometeria a asneira
De se apresentar naquele parecer.
E apenas quando em casa perdeu a compostura.
Maria chorou só o inconfessável egotismo salgado
E Joaquim perdera o sentido à fervura.
Suspenso, deu por si de novo no barco,
Embalado pelo rio, de água doce e pura,
Agitando-se mais o vento, adivinhada fúria.
Ninguém se aventurara ao rio no fim de tarde
Então chuvoso e esbatido. Oh!, néscia incúria
De Joaquim que de novo delirante parte,
Julgando ainda no amor ver a sua cura.
E foi então que, na maior amargura, se vergou à sorte,
Lume fátuo em vela que pouco promete, pouco perdura.
Sucumbiu ainda no bote, que deu à margem à noite
E só na tarde seguinte se notou a sua morte.

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