Sucedem-se sombras em cadência rápida e o verso flui na ponta da escrita automática, corrente como água sem ter para onde. Na dança acelerada de dias alados, de clepsidras arenosas como rios secos e de consumos vorazes em vitrinas expostos, a vida, subtil, verte-se entre dedos, sabemos - palco de ilusões, espetáculo frenético de música apressada e caos poético. Desumanizado, excedente, o consumidor perde a essência do gosto, perde o sabor, despreza lamentos em caligrafia lenta e versos que abraçam partidas impossíveis. Num portal para nenhures um poeta sem choro rascunha a efemeridade de ilusões adiadas. Num beco urbano um palhaço plange e soluça. Conhece uma jovem. Ela dá-lhe um arco-íris.
Ideias brilhantes, verdadeiramente geniais, trariam fama, fortuna e glória se bem executadas, mas a perícia sensível do virtuoso está muito desvalorizada perante a tirania do limiar da pobreza e do trabalho pela sobrevivência, e não poderíamos ter todos fama, fortuna e glória. São precisos inúmeros pobres para fazer um rico e demasiados amenistas para carregar um líder. Estupendas são as corrupções políticas, os escândalos financeiros e o chico-espertismo, mas não chegam para vomitarmos à mesa diante da televisão. Afinal, eles são da nossa cepa, são os que se chegam à frente, oportunistas vaidosos, munidos de bandeirolas, panfletos e bonés.
Passez à-la-caisse! Passez à-la-caisse!
A Pessoa, o poeta, cheirava a tinta fresca de tipografia… Hossanas a quem conhecer o cheiro de cartazes recentemente impressos, colados a pincel, e a quem, dentro de pouco tempo, souber como se folheia um jornal; como se conduz um camião TIR; como se atende um cliente a sorrir. Os armamentos gloriosamente mortíferos ainda não acabaram connosco de vez. Ouvi dizer que somos do interesse de extraterrestres. Mas tudo é vida fascinante, até nas montras brilhantes com dons curativos de afeções de alma e de espíritos voluptuosamente errantes, ainda sabendo que os astros são os mesmos que inspiraram os mestres de Da Vinci e que o Sol é o próprio que tisnou Cleópatra.
Ah, e as vidas complexas da gente que aos andaimes sobe sem outro fito que não a gente que à braguilha desce. A indigência moral não assenta aos perdedores, àqueles que, destroçados, desistiram de competir, incapazes de depredar, derrotar, conquistar ou subjugar; incapazes sequer de lutar pelo pão na mesa, de limpar o suor nas mangas estiradas sobre os pulsos, no entanto sujas de ranho e resíduos alimentares. A luz do Sol abafa o silêncio das imitações de vida de pobres, ricos e remediados, das bocas suturadas, e havemos todos de morrer sem dar por nada. Cá preciso de Liberdade para depois de velho ou morto. A vida é mais custosa do que a vida que temos para dar; é um recurso tão escasso quanto urgente, antes que morra, e eu só tenho uma certeza: quero ser feliz agora, porra.
* A última estrofe, a itálico, traduz um excerto de "Turn! Turn! Turn!", dos Byrds, por sua vez uma canção original de Pete Seeger, cuja letra, excepto o título, repetido como refrão, e os dois versos finais, consiste na reprodução exacta dos primeiros oito versos do terceiro capítulo do livro bíblico de Eclesiastes.
Amaste como o luar ao meio-dia. Sorrindo na cara do desgosto, fizeste da fealdade beleza, reflectindo-nos obliquamente, espelhos eivados, transfigurados na intersecção radiante de um inextinguível nexus luminoso num riacho de mosto.
Como é que se diz, mãe, que foste com a cabeça entre as minhas mãos vagas, que te chamei e pedi para ficares quando já não estavas? Como se diz que te ia murmurando ao ouvido, que te implorava para não ires, e já tinhas ido? Como se diz, mãe, que estiveste 45 minutos de vestes rasgadas e peito desnudo, e eu só te largava a espaços, sem toque, para o desfibrilhador te acometer em espasmos e nenhum de nós recuperar do choque?
Nasceste tão doce para acabar num corpo asfixiado, magro e seminu, lábios arroxeados, incapaz de responder à minha súplica, no chão prostrada, ao lado da cama, sem poesia nem música - um corpo de nada, sem chama -, já tu planavas livre, olhando-me de cima.
Emergiste grácil desse corpo, estou certo, vaporosa como as cinzas, mas eu guardei-te perto, germinada num vaso, cantada em verso. Como água para azeite, regada a preceito, a oliveira das minhas raízes pende do parapeito para alcançar céu aberto. E os anjos, suspirantes numa frágua de amor devoto como eu a clamar o teu nome, mãe - porque mãe é o teu nome de santa -, olhavam-nos com o mesmo nó na garganta que de então me aperta a laringe também.
Celestial e bendita, lirial, silenciaste por fim mágoas e dores. Ter-te-ás feito de todas as cores e dos meus ais roseiral, que te sei alígera e ágil, ainda que levasses daqui todas as partes de mim que sem ti nem eu sei.
Quando nasci o mundo eras tu, a tua palavra era lei. E agora, mãe? A que mundo me dei? Podes dizer que me vês?, que ainda sou o menino dos três que adormeceu nos teus olhos de ternura sem fim? Ainda oiço a tua voz: “… O teu berço adornei e o pus junto a mim…” Diz-me que sim.
10 de Junho de 2021, Santarém. Foto: Ricardo Pinto
Profunda a quietude, palavra de som, suave, pairando sobre poços de tranquilidade e sobre o deserto, corpo de vento e de mares vazios em canyons sem idade, na furtividade de dias e noites de relento. Palavra-arte a céu limpo e aberto, dorme sem tempo, sem chão nem verbo, e dormem corvos à janela e cães à minha porta - nenhum sussurro abafado. Arde, ruidosa, uma vela, velando o silêncio entre notas - o silêncio pontuado que realmente importa. Há qualidades incorpóreas cuja existência, dupla, termina e começa onde uma começa e outra termina, à frente e atrás do espelho - uma entidade gémea que desponta da matéria e da luz, na solidez da sombra.
30 anos depois com Luís Osório na Feira do Livro de Coruche
Tenho de registar a alegria e o privilégio de, 30 anos depois, ter reencontrado (fisicamente) o querido Luís Osório. O contexto, tão diferente daquele de há três décadas, mas de prismas simbólicos e essenciais tão idêntico. A sequela de uma conversa que durava uma tarde e uma noite inteira na Feira do Livro de Coruche. "E agora é para sempre", Luís. 'Té já.
Caminho sem caminho até que a música me encontra numa cegueira marejada de prantos vulcânicos. Transbordante, toma sentidos de sentidos sussurrados à intocada flor da pele. Como se visse, intangível, o som conhece-me melhor assim, fosse tal coisa possível. Em inspirada melancolia, torna a tristeza poesia.
Casa é aqui, agora, na penumbra, sob um lampião fundido. O uivo da tempestade e o gemido das ondas na praia orquestram memórias primitivas de um canto adâmico de areia engasgado no diafragma; de estrelas amarradas ao céu e de uma face lunar que entoa, à volta da fogueira, canções de magma esquecidas há evos.
Vigilante está em tudo e em toda a parte uma melodia universal. A música grava em nós quando julgamos gravá-la.
Sinto os lábios húmidos e tenros; o cheiro nectarino do cabelo mesclado com o odor metálico de um brinco; o pescoço deleitável e mavioso ao alcance impossível da boca quando toca aquela canção.
Regresso à noite em que caminho sem caminho, de olhos no chão, e encontro a cassete que me estava destinada precisamente na noite do abandono, quando as pedras da calçada pareciam maiores do que o sono e do que qualquer estrela. E ainda consigo, aos primeiros acordes, estar novamente ali, de mãos nos bolsos ruços, arrepiado, nariz pingado e carapuço, sob um lampião amarelado da 24 de Julho.
Sou dado a voar no Estádio do Restelo, libertado por duas pombas antes aninhadas nas palmas destas mãos frias e suadas. Sou o Redondo de Sanlúcar de Guadiana que vinha de Alcoutim para jogar à bola, e sou-o no nylon surdo de uma viola. Sou a flauta de Pã e a roda de esmeril avizinhando-se o amolador, mas sou sobretudo o odor telúrico e mudo da Rua Martim Vaz, tingido por roupa lavada a secar nos estendais. E, como quem faz de nada tudo, encontro-me eterno no beiral dos avós a pensar se chamo a Rosário para o dominó.
Foi o som que me trouxe primeiro o coração sincopado de mãe e o mundo inteiro lá fora. Do berço de agora e de todas as horas, o rádio tocava a canção que me quer bem, a rima rúnica de um terço anglo-saxónico, entoada com pronúncia de Liverpool, urdida num espectro sónico intrauterino e explosiva num clarão lúcido e transparente que iluminou de Sol materno ventre. Misteriosamente, a canção sempre me conhecera, como outras que pintam paisagens audíveis em insulamentos fetais de supernovas, mostrando-nos que somos do mundo.
Numa linguagem que a razão não compreende, a música exprimiu a mais alta filosofia além da sagrada ausência de matéria, dizendo-me que dentro estaria tudo o que lá fora já era - um horizonte eterno e infinito de comoções que habito numa paisagem cromática audível de tempo e espaço profundo, semitonado, subtil, inapreensível.
Vigilante está em tudo e em toda a parte uma melodia universal. A música grava em nós quando julgamos gravá-la.
Matemático, o som do silêncio conforta o pobre e apazigua o rico; comporta os justos e os injustos; a ave, a vespa, a flor de trigo; a morsa, o urso e a planta; a respiração sustida, os seios robustos de sensuais tágides de granito. Em tudo alguma coisa canta.
Regresso à doçura de um estio de sangue, açúcar, sexo e magia no ar - Peppers em loop no rádio. Faço uma serenata à beira-mar, roubo o primeiro beijo à beira-rio e ainda sinto, ao percutir dos tambores, o traseiro frio nos degraus do Adamastor e farejo emanações canábicas a entreolhar miradas lustrosas e melancólicas, desesperadas por aceitação, entregues aos bardos de Baco.
Regresso aos bons velhos tempos, esquecido de ter tido a cabeça na valeta, levantada por um sem-abrigo. Sirenes, mas nunca a silhueta de uma cara sardenta a encher-me o olhar. Talvez a canção do desgosto tenha encontrado o seu alvo - um fogo posto, um rei morto, um cupido alado com péssima pontaria.
Regresso àquele dia, àquele ano, atrás da porta, a Salvador da Baía, a um beijo de Chico e Caetano, pés cruzados com pés morenos a ver na TV programas gentios e plebeus. Nos olhos teus o meu olhar era de adeus.
Há incenso de escalada nos Santos à conquista da Costa do Castelo sob um céu vermelho-sangue de druidas celtas contemporâneos em noites brancas de trovadores em pelo na relva interdita de São Pedro de Alcântara. Em toda a parte alguma coisa canta - no outono de débeis violetas, no murmuroso assédio dos insetos. A efemeridade é probatória de sinfonias celestiais de Verão. O som é ontologia da memória e dança-nos de parte incógnita quando toca aquela canção.
Cueva de las Manos ("Caverna das Mãos"), província de Santa Cruz, Argentina (DAQUI)
Procura-se sequência de palavras mágicas em melodia que desarme ódios e discórdias. Procura-se cidade submersa, berço-chave de civilizações, e registo de diluviais e infinitas abluções. Um canto diáfano fecundou a poesia imperfeita, rudimentar e arcaica, rupestre, traduzindo o mundo, perguntando-te ao que vens e o que és diante da prudência silenciosa de deuses que só existem porque se pensam à sua imagem, egóticos e materialistas, mundanos. E é esse o seu maior e mais profundo enigma: a vista desarmada do Jardim onde nos esperam todas as mães e todos os pais, num Lugar onde a crença não tem lugar, pois só a Verdade Ali se conhece.
Se pintura não é a cor deixada ausente com harmoniosa intenção; Se música não é o silêncio dramático que alicerça e precede o êxtase; Se literatura não é a lacuna esfíngica que dá vazios a preencher de dúvida e emoção; Se escultura não é a parte esculpida, removida, que provoca a emersão da forma; Se o verbo omisso, compreensivo e transigente não é ação que transforma; Se arquitectura não é o pátio amplo e despojado que sustenta o próprio firmamento, Reneguem-se os conceitos, a estética, a arte, o amor, a ética E oblitere-se a existência, a criação, o pensamento. A omissão é presença. Em cada vazio há uma chance, uma crença. Na beleza do que falta nada é negado, tudo é essência.
Uma corrida de fundo.
Há 18 anos nenhum de nós imaginava que, um dia, estaríamos a celebrar o rito de
passagem do Caderno de Corda para a vida adulta, especialmente com tamanha
vivacidade e fulgor, à mesa, como inicialmente preconizado pelo Grão-Mestre
Gustavo Silva, patrono d'O Jantar. Na vida sucedem-se ritos e ciclos,
celebrações e reflexões sobre alegrias, conquistas e desafios, mas também sobre
fracassos, infortúnios e desventuras, as quais não há como enjeitar,
procurando-se seguir mais forte e sábio. No entanto, aqui, e por ocasião d’O
Jantar, temos refletido, vivido e cultivado sempre alegrias, e fazemos por que
perdurem.
O primeiro melhor amigo, a queda dos dentes de leite, o
primeiro dia de escola são marcos da infância, alguns dos quais partilhamos
entre nós em memórias ainda vívidas, porque pungentes e sentidas. Na
adolescência surge a ebulição hormonal, a rebeldia, a contestação aos valores
social e familiarmente estabelecidos, mas também o primeiro amor, o primeiro
beijo. Ainda assim, é, diz-se, a maioridade que representa a transição das
transições, com a entrada, por vezes forçada e prematura, na vida adulta.
Na idade adulta, ou idade da razão, são incrementadas, mais
sérias e mais definitivas as responsabilidades, assim como as consequências das
escolhas tomadas. Na maturidade, os sonhos tornam-se mais prementes e as opções
mais dificilmente reversíveis. A Liberdade de quem dispõe de autonomia não se
dissocia da responsabilidade pelo uso dessa mesma Liberdade. Tal consciência,
dotada de sabedoria, excede em muito o cumprimento de deveres e obrigações,
instigando os livres e autodeterminados a arpoar sonhos e a perseguir novas
aventuras e possibilidades de descoberta, em particular de si mesmos.
O autoconhecimento, que nos conduz a tomar um lugar próprio
no mundo – ou a sermos, nós próprios, um lugar -, beneficia do uso de saudável
disciplina, mas não necessariamente de disciplina formal, mecânica,
proficiente. Há, a montante, uma disciplina ontológica, se me permitem, que se
traduz em persistente resiliência e inabalável crença. O mantra: "Não
desistir." E assim se cumpriu, ao Anno XVIII, O Jantar; e assim Vos
escrevo de maturidade, não ousando dar lições de tal coisa a um cão de
companhia.
O Caderno de Corda e
o livro-eucalipto
Em boa verdade, a maturidade a que aludimos não será, na sua
génese e em teoria, relativa a uma pessoa, mas a um blogue que cumpriu 18 anos
e que, de há muito a esta parte, tem n'O Jantar anual de comemoração, que serve
de pretexto a muito mais do que apenas recordar escritos que nele se publicam,
o seu momento alto. Tal deve-se, nos últimos anos, à concentração de esforços
deste que humildemente Vos escreve na produção de uma obra literária que venha
a ser digna desse nome - um romance com laivos de distopia política como sempre
quis escrever e que, sendo uma empreitada quixotesca e de grande fôlego,
absorve as horas livres de criação, qual eucalipto, secando qualquer outra
veleidade criativa ou artística. Eis a razão (ou megalomania) primordial (e
ciclópica) por que o Caderno de Corda não tem publicado mais poesia, prosa ou
canções originais. Mas, se apontarmos ao Sol, talvez caiamos na Lua.
Novamente, a maturidade adverte-nos para que não se levantem
véus prematuramente, muito menos de obra inacabada. Ainda assim, em
perspectiva, pareceu-me apropriado utilizar uma impressão do referido trabalho
em curso (à data, cerca de 120 mil caracteres em 250 páginas A4, Times New
Roman, tamanho 12) para, através da consignação de folhas escolhidas por número
de página, munir os Confrades Cordianos de matéria a excisar para leitura de
trechos escolhidos e posterior criação de um vídeo comemorativo, como tem sido
apanágio do Caderno de Corda nas mais recentes edições d'O Jantar.
Simplificando, o vídeo resulta da escolha aleatória e da reorganização de trechos
extirpados de um epopeico romance distópico em moroso processo de composição,
mais uma vez com recurso a um intrincado mecanismo numerológico de cálculo por
página, a interpretação estética à luz da sequência de Fibonacci e a uma
avançada técnica de pot-pourri. Cada Consoror e cada Confrade escolheu
um número de página, um excerto e leu-o para a câmara.
Saiba-se que, quando Vos escrevi a quase totalidade desta
crónica, o vídeo ainda não estava sequer idealizado. Aliás, exceptuando o
presente parágrafo, tudo o resto foi escrito antes mesmo que todas as Consorores e todos os Confrades me remetessem os registos das suas leituras – aqueles de nós que não
chegaram a gravar na noite d’O Jantar. O último desses registos chegou apenas
há algumas semanas. A título de
curiosidade, escrevo-Vos todo este parágrafo, inserido a talho de foice após a conclusão
do vídeo, num apartamento em Marselha, junto ao Vieux Port, epicentro dos tumultos que
eclodiram por toda a França nos últimos dias, em resposta ao assassinato do
jovem Nahel, em Paris, às mãos da polícia. Ouvem-se as explosões e sente-se, por vezes, o cheiro a queimado e a gás pimenta sobreposto à lavanda marselhesa, seguindo-se um ligeiro ardor nos olhos. Fechamos as janelas. Os meliantes, muitos deles imberbes adolescentes, correm rua acima e gritam "Gucci, Gucci", mostrando os óculos e as malas a saque... Adiante, o vídeo é, como verão, composto em quatro actos, ao som de Richard
Wagner (prelúdio do primeiro acto da ópera “Lohengrin”), Dominic Muldowny (“The
Ministry of Truth” e “Winston's Diary, the Dream”, do álbum “Nineteen
Eighty-Four, The Music of Oceania”) e The Doors (“Riders on the Storm”, do
álbum “L.A. Woman”). A escolha de “Riders on the Storm” não é, no
entanto, minha, mas do Grão-Mestre César da Silveira, que, ao introduzir novos
elementos e uma outra abordagem, acabou por modelar e dar o tom para o trecho
final do vídeo. A quase totalidade das fotos é do Grão-Mestre Ricardo Pinto e
as ilustrações foram gentil e preciosamente cedidas pelo Irmão Cordiano e
Missionário da Arte e do Belo Nuno “Corado” Quaresma.
Quanto ao livro que, desejavelmente, concluirei no médio
prazo, posso dizer que se destina a leitores de todos os quadrantes, presentes
mas também - sei-o - futuros. Porque, como aqui se escrevia há um ano, «é certo
ser este o nosso tempo; o tempo para livres habitarmos a sua substância». E
nunca é tarde demais. Agora e sempre.
Anno XVIII - O Jantar
Portanto, alimentado de fraternidade, memória, sonho, futuro
e frango assado, O Jantar reuniu 25 à mesa no dia 25 de Março, casando números,
tal como, curiosamente, há um ano fomos 23 a 23 de Abril. Chegámos, no entanto,
a ser 30 Confrades no total, contando com a habitual e preambular presença do
clã Franchi-Costa (Leonor, Matilde, Rita e Rui Pedro) e, desta feita, também do
“padrinho” Joaquim Barbosa (Quim), que não ficou para jantar. Registe-se que,
ao décimo oitavo ano, este foi o terceiro jantar realizado em data discrepante
da data tradicional de 26 de Março, véspera do aniversário propriamente dito
(27 de Março), e o primeiro a antecipar-se à data.
Também antecipadamente, assim estava o Grão-Mestre João
Trigo à porta dianteira, onde esperou com estóica brandura e fraternal
compreensão. Uma buzinadela e um aceno à passagem, de carro; o estacionamento
apressado no parque e, passo rápido, os primeiros abraços, nas traseiras do
restaurante, a Hugo Dantas, André Nobre e André Paiva, que também já ali
aguardavam. Atravessámos A Valenciana por dentro e juntámo-nos ao Trigo,
heroicamente só na dianteira, para aquele abraço apertado, grato e reparador,
penitente pela delonga. Dali fomos para a Sala Fronteira, que a espaços
revelou-se demasiado quente, ruidosa e esconsa para o grupo, mas chegou à
conta, satisfatoriamente.
Mesa posta em “U” e acepipes na távola, foram entrando os
comensais. Rapidamente se formaram, grosso
modo, duas alas: a cruz-quebradense/dafundense e a salesiana, ambas
pontuadas aqui e ali por Consorores e Confrades Cordianos de outras paragens, e
alguns até de outras e de ambas, como é o curioso caso de Nuno “Corado”
Quaresma, Missionário da Arte e do Belo. “Sintonia sinérgica”, “convergência holística”,
“identificação simbiótica”, “assimilação integrativa” e “coerência
paradigmática” são todas expressões que, referindo-se a uma harmonia profunda,
colaborativa e produtiva, fértil, descrevem o modo como o já nosso genial
“Corado” corporiza um estado etéreo que flui alegre e fraternamente pelos
jantares cordianos. «Obrigado Meu Irmão pelo carinho e por estes momentos
mágicos de ligação com esta Rapaziada vibrante e cheia de boa energia. Que
possamos brindar muitas vezes nestes e noutros momentos de Criatividade, Amor e
Reencontro”, escreveu o Corado após O Jantar via chat.
Tivemos, mais uma vez, estreias sublimes que merecem
palavras especiais, como as das Infantas Rafaela Tomás, Daniela Tomás e Nicole
Araújo, que iluminaram a sala e os corações; do Confrade André Nobre,
primaveril e imune ao frescor da aragem, desejoso por dias mais longos e
luminosos, eternamente fascinado pela fulgência das ideias, e, por fim, da
maravilhosa Consoror Ana Rangel, cuja alegria e o brilho no olhar alumiam
candeias em olhos outros e tangem emoções francas. São lágrimas, senhor! De
alegria, concórdia e afetos partilhados, entretecidos. Registe-se, como é
práxis, que os estreantes selam com a sua inestimável presença a incorporação
definitiva na Confraria Cordiana. Repita-se: uma vez da Confraria, sempre da
Confraria.
Registamos também, como sói dizer-se nesta ocasião, notadas
ausências (eles sabem quem são) e o fenómeno dos globetrotters que, espalhados pelo mundo nesta data, não puderam
comparecer. Estamos gratos, no entanto, pelos que, against all odds, conseguiram estar e ser, um dos quais vindo de
uma regata no Tejo e outro do Porto, para dar os exemplos cabais dos Irmãos
Cordianos Quim e Piri, respectivamente. E já que estamos a mencionar
ex-Doroteias (Externato do Parque) que se conhecem desde os três anos, note-se
o desencontro, por pouco, do Quim e do Frederico Cruzeiro Costa (Fred), mas
também do Sérgio Miguel Ribeiro (Miguel), que esteve a uma unha de se estrear,
mas adoeceu e não pôde juntar-se ao quarteto do Externato do Parque, transitado
em bloco para as Oficinas de São José no ciclo preparatório.
Como disse o Irmão Fred à Ana no correr d’O Jantar, somos
corredores de fundo, e daí vem a expressão que enceta este texto. O meu querido
Fred teve de sair um pouco mais cedo para cumprir compromissos. À despedida,
nas traseiras do restaurante, onde eu e o Nobre fumávamos, tirou do bolso das
calças um olho turco em vidro que trouxe para oferecer a este Vosso escriba,
dizendo que me protegeria. Já falámos depois. No entanto, não lhe disse ainda
que a Rosarinho adorou o olho turco e adoptou-o mal o viu, mas que, sem incúria
dela, o olho se partiu alguns dias depois. Caiu no chão de mármore vitrificado,
deslizando do dorso da chave do aparador de entrada onde ela cuidadosamente o
pendurara. Chorou serenamente, interiorizando a perda e atribuindo-lhe
significado. Recolhemos os estilhaços e depositámo-los no lixo. Ficou
sensibilizada. E eu. Mas vim a saber mais tarde que, na cultura turca, se o
olho se partir terá cumprido a função de proteger os seus portadores, sendo que
o descarte respeitoso e correcto dos fragmentos prolonga a boa sorte e a
protecção.
Protegidos estaríamos também na presença do Grão-Mestre e
Grande Inspector Cuteleiro João Carlos Graça, que esteve num pacato
frente-a-frente com um seu velho amigo, o Grão-Mestre Hugo Dantas, acérrimo
arguidor de traquinagens, em particular daquelas executadas sobre a sua pessoa
enquanto dormita (recorde-se a despedida de solteiro do Pinto). Pois desta
feita o João guardou a despesa das travessuras da noite para o que Vos escreve:
já A Valenciana estava de portas fechadas e nós todos na rua quando descobri
ter no capuz alguma pequena cutelaria e o naipe completo de manteigas, patés e
queijos-creme que havia no restaurante, alguns encetados, já meio comidos. Mas
foram os garfos nos bolsos traseiros das calças que, durante o jantar, ao
sentar-me, agudamente me alertaram e indiciaram o mais que provável autor de
tão bicuda e, simultaneamente, substanciosa tropelia. Não havia dúvidas: também
a zombaria do couvert tinha a
inconfundível assinatura do Grande Inspector Cuteleiro.
Com o João esteve em peso a fraternidade da geração Y da
Loja Cruz Quebrada: João Carlos, André Paiva, André Nobre e Bruno Sardo. Para
representar integralmente a estreita irmandade faltaram apenas o Grão-Mestre
Bruno Tomás e o ainda candidato a confrade Miguel Lopes (Miko). Ambos
confirmaram a presença, mas, crê-se que por motivos relacionados com distúrbios
gastrointestinais, não puderam comparecer, lamentavelmente indispostos.
Sentimos as suas ausências. Não deixamos, nesta linha, de registar duplas épicas que se reintegram n’O Jantar como se o tempo por elas não passasse:
João Trigo e Dino; Pedro “Piri” Farinha e Miguel Guerreiro Pereira; Gustavo “KJ”
Silva e César “Kaiser” da Silveira; Ricardo Tomás e Ricardo Pinto e múltiplas
outras duplas de sonho e eternidade conjugáveis e intermutáveis, como Corado e
Jacinto, sendo que apenas o Corado compareceu este ano, apesar da ausência do
seu Irmão. Fazendo uso de ideias recorrentes nesta ocasião, e constatando que
este foi O Jantar mais concorrido de sempre, verificamos mais uma vez que a
Amizade que nos une é exponencial e contagiante, e as nossas vidas seriam menos
do que outras sem do outro a nossa parte.
Menos do que outra sem a Grã-Dama Rute Ferreira e, claro, o
Grão-Mestre e Venerável Cavaleiro Cordal Ricardo Tomás, que nos deu o
privilégio de conduzi-la até nós e que será, quiçá, fonte de inspiração
retroalimentada da sua própria musa. Foram dois os quadros de autor,
predominantemente azuis, mas tão terrenos quanto celestes, magníficos, que a
Rute trouxe propositadamente para ofertar à grata família do Vosso fiel
escrevente.
Menos do que outra sem o Grão-Mestre Cordiano, Visconde do
Reino de Maconge, Magnífico Provedor do Tesouro e Supremo Jurisconsulto César
da Silveira, que veio directo de dilecta almoçarada de convivas do Reino de
Maconge – um dia literalmente em cheio.
Menos do que outra sem o Grão-Mestre e Perene Patrono
Cordiano Gustavo Silva, que chegou mais tarde, cansado, de olhos a meia-haste,
fazendo lembrar os olhos de madrugada a jogar Premier Manager na Calçada de
Santo António, mas com a resiliência de sempre, apesar das cansativas tiradas
Lisboa-Porto. Saiu mais cedo, mas esteve bem presente.
Menos do que outra sem o Grão-Mestre, Guardião do Tombo e
Venerável Cavaleiro Prismático Ricardo Pinto, cuja óptica regista proverbial e
devotamente O Jantar, e cujo coração alumia e colora a noite escura. As fotos
são quase sempre dele, mas o Caderno de Corda e O Jantar são dele como meus,
nossos.
Menos do que outra, por fim, sem o Grão-Mestre e Venerável
Cavaleiro Congénito Ricardo Girão, à cabeceira oposta deste que Vos escreve,
ambos comunicantes pelo simples olhar e por feixes etéreos de sinusoidais
psiónicas no fino ar. Girão, o último dos moicanos a resistir à noite, depois
de debandado o derradeiro grupo de obstinados Confrades Cordianos, entre os
quais se incluíam Piri, Pereira, Dantas e Corado. No final dos finais, após
várias voltas e pit stops em Benfica,
a dupla Hugo-Girão encontrou finalmente uma roulotte
em Sete Rios… Uma garrafa de água! O nosso reino por uma garrafa de água! E uma
Coca-Cola. E uma imperial.
Prosaica, a imparável tendência inflacionária do preço d’O
Jantar, a estória da negociação do banquete, que afinal se revelava mais
vantajoso do que o consumo à carta, como acabou por acontecer, levando a turma
dos digestivos a chegar-se à frente, e a civilizada discussão sobre as contas
com a gerência. Concluiu-se que, afinal, teria sido melhor ficarmos pelo preço
fixo do banquete. Os amores da minha vida irão ao Jantar quando a Rosarinho se
sentar à mesa e comer tudo sozinha, autonomamente, com ambos os talheres…
Registe-se finalmente que o Vosso fiel escriba chegou a casa perto das sete da
manhã, silencioso mas com mundos ululantes no pensamento.
Este blogue é e
continuará a ser o meu fiel depositório criativo.
Em 2024, no mesmo
sítio, previsivelmente em Março.
Legenda aleatória: Hugo Dantas, Bruno Sardo, Hugo Simões,
Ricardo Pinto, Sofia Damião, Beatriz Damião Pinto, Ricardo Girão, César da
Silveira, Nuno “Corado” Quaresma, Miguel Pereira, Pedro Farinha, Nuno “Dino”
Rodrigues, Ana Rangel, João Trigo, Sara Matos, João Graça e André Paiva. Os
comensais Gustavo Silva, Frederico Costa, Rafaela Tomás, Daniela Tomás, Nicole
Araújo, Ricardo Tomás, Rute Ferreira e André Nobre já se haviam ausentado à
hora da foto de grupo ou não se encontravam naquele momento na sala. O Clã
Franchi-Costa veio, como é já tradição, para nos dar o prazer da sua companhia
antes e ao início d'O Jantar, tal como, desta vez, o Joaquim Barbosa. Um
especial Abraço aos Confrades e às Consorores que não puderam marcar presença,
mas que estiveram no nosso pensamento. E uma foto nocturna. de bónus:
Soube agora, combalido pela violência da notícia inesperada, do falecimento do profícuo e genial Luís Carmelo (1954-2023), meu eterno professor de Escrita Criativa e mentor da Semiótica que me foi possível. Foi por influência e sugestão dele que criei o Caderno de Corda, em 2005, na plataforma Blogspot, onde pouco antes, no dealbar da blogosfera, havíamos mantido um blogue criado no âmbito da sua cadeira para conduzirmos a análise e a avaliação dos textos discutidos e criados em contexto de sala de aula. Foi com ele que pela primeira vez, há mais de 20 anos, escrevi para o ciberespaço…
O professor, escritor e intelectual Luís Carmelo foi um dos homens que, cedo, me fez crer sem reservas que também eu podia ensaiar obra literária. Atribuiu-me a melhor nota na cadeira de Escrita Criativa, ajudou-me a navegar pelas águas tortuosas da semiologia, convidou-me para introduzir a sua cadeira na primeira aula que leccionou no ano seguinte àquele de que desfrutámos juntos. Deu-me a mão e acreditou em mim. Não podemos esquecer quem em nós creu e nos deu a mão.
Há demasiado tempo que não falávamos. Na verdade, guardava o telefonema para oportunamente lhe pedir conselhos quando terminasse o livro que, também há demasiado tempo, ando a escrever… Não o quis importunar. Talvez tenhamos estado juntos pela última vez na presença de Joaquim Letria e Urbano Tavares Rodrigues, na recepção da Universidade Autónoma de Lisboa, no pólo da Boavista. Foi um raro privilégio ter podido aprender com tão excepcional académico, mas também pensador e intelectual deambulante, visionário, romancista, poeta e leitor ebuliente.
A escrita do Professor Luís Carmelo é muitas vezes intrincada, de leitura morosa, aplicada; muitas vezes melodiosa e rica, poética, deslizante numa “lagoa invisível”. Os seus textos são quase sempre dotados de complexidades multidimensionais que nos põem em bicos dos pés, espreitando para lá da cerca de texto, subtexto; significado, significante. Como li algures há pouco, numa nota póstuma de alguém que, como eu, se manifestou em memória de Luís Carmelo, nos próximos cem anos estaremos a decifrar os sentidos dos seus sentidos, e sabe quem com ele aprendeu que se deve escrever com os cinco sentidos. Mas Luís Carmelo tinha mais e escrevia mais ainda. Mais do que sempre me pareceu ser humanamente possível. Li também por aí que, nos últimos dois meses, publicou três livros.
Que o devir do seu longo futuro ecluda já e atenue o sentido da sua perda. Obrigado, Professor.
Bibliografia:
• Entre o Eco do Espelho (1986, Peregrinação, Baden-Lisboa; tradução inglesa parcial, Revista New Wave, 20, Universidade do Colorado, Boulder, USA);
• Cortejo do Litoral Esquecido (1988, Vega, Lisboa);
• No princípio era Veneza (1990, Vega; 2ª edição, 1997, Vega, Lisboa);
• Sempre Noiva (1996, Vega, Lisboa);
• A Falha (1998, Editorial Notícias, Lisboa; 2ª edição, 2001, Planeta Agostini, Lisboa; 3ª edição, Editorial Notícias, Lisboa; tradução espanhola, La Grieta, 2002, Hiru Argitaletxea, Hondarribia, Espanha; romance adaptado ao cinema por João Mário Grilo em 2002);
• As Saudades do Mundo (1999, Editorial Notícias, Lisboa);
• O Trevo de Abel (2001, Editorial Notícias, Lisboa);
• Máscaras de Amesterdão (2002, Editorial Notícias, Lisboa);
• O Inventor de Lágrimas (2004, Editorial Notícias, Lisboa);
• E Deus Pegou-me pela Cintura (2007, Editora Guerra e Paz, Lisboa);
• A Dobra do Crioulinho (2013, Quidnovi, Lisboa/ 2022, Jaguatirica, Rio de Janeiro);
• Gnaisse (2015, Abysmo, Lisboa; 2017, Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro; Ediciones Uniandes, Bogotá, 2022);
• Cálice (2020, Abysmo, Lisboa. Romance finalista do prémio PEN/2021);
• Visão Aproximada (2022, Abysmo, Lisboa);
• Trílogia de Sísifo (2023, Ediciones Uniandes, Bogotá).
Ensaios:
• A Tetralogia Lusitana de Almeida Faria (1989, Universidade de Utreque, Holanda; Prémio da Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores, 1988);
• La Représentation du Réel dans des Textes Prophétiques (1995 - Tese de Doutoramento -, Universidade de Utreque, Holanda);
• Sob o Rosto da Europa (1996, Pendor, Évora-Lisboa; 2ª edição e tradução inglesa, Ontology Of The South, Sul, Edição dos Encontros de fotografia de Coimbra, 1996);
• Anjos e Meteoros. Ensaio Sobre a Instantaneidade (1999, Editorial Notícias, Lisboa);
• Os jardins da Voyance - tradução inglesa, The Gardens of vision and the bright Ofélias of the Douro (álbum-encomenda Os Jardins de Cristal, edição da Porto-2001 e Roterdão-2001, com o fotógrafo José M. Rodrigues);
• Islão e Mundo Cristão (2001, Editora Hugin, Lisboa);
• Água de Prata (sobre a obra do Prémio Pessoa, José M. Rodrigues; 2002, Casa do Sul, Évora);
• Músicas da Consciência (com prefácio de António Damásio; 2002, Publicações Europa-América, Mem Martins);
• Órbitas da Modernidade (2003, Editorial Mareantes, Lisboa);
• Semiótica - Uma Introdução (2003, Publicações Europa-América, Mem Martins);
• Viragem Profética Contemporânea (2005, Publicações Europa-América, Mem Martins);
• A Comunicação na Rede: o Caso dos Blogues (2008, Magna Editora, Lisboa);
• A luz da intensidade. Figuração e estesia na literatura contemporânea. O caso de José Luís Peixoto (2012, Quetzal, Lisboa);
• Genealogias da Cultura (2013, Arranha Céus, Lisboa);
• Uma Infinita Voz Sobre Exercícios de Humano de Paulo José Miranda (2016, Abysmo, Lisboa);
• Ficcionalidades de Prata (2019, Nova Mymosa, Lisboa);
• Respiração Pensada (2022, Abysmo, Lisboa);
• A Grande Imersão. Pensar o Amor. Pensar a Intimidade (2023, Exclamação, Porto);
• Ourique. O Mito e o Legado das Fake News (2023, Tempus Art, Porto);
• O Encoberto e o Sorriso dos Mitos (2023, Tempus Art, Porto).
Poesia:
• Fio de Prumo (1981, Terramar, Torres Vedras);
• Vão Interior do Rio (1982, Amesterdão, Atelier 18);
• Ângulo Raso (1983, Amesterdão, Atelier 18);
• Mymosidades (2015, Nova Mymosa, Lisboa);
• As Mialgias de Agosto (2015, Nova Mymosa, Lisboa);
• Extintor de Achados (2017, Lisboa, Douda Correria);
• Tratado (2018, Lisboa, Abysmo. Obra Finalista do Prémio Casino da Póvoa/ Correntes d'Escritas 2019);
• Ofertório (2018, Nova Mymosa, Lisboa);
• Anatomia (2019, Nova Mymosa, Lisboa);
• O Pássaro Transparente (2019, Nova Mymosa, Lisboa);
• Lucílio (2022, Nova Mymosa, Lisboa);
• Biografia do Mundo (2022, Abysmo, Lisboa);
• El Asombro Irrealizado (Antologia; 2023, Textofilia, Ciudad de México).
O Caderno de Corda perfaz hoje 18 anos. O Jantar da maioridade realizou-se anteontem, a 25 de março, como sempre no restaurante A Valenciana. Contámo-nos 30 confrades cordianos no total, mas "apenas" 25 comensais à mesa para um repasto cuja adjectivação diminuiria o sentimento de privilégio por dele sermos parte e pretexto.
Sendo a nossa matriz primariamente qualitativa, importa dizer que o Caderno de Corda entrará agora em modo de processamento da noite de ontem e que, em prazo indefinido, desejavelmente breve, publicará aqui o registo anual d'O Jantar. Mas foi maravilhoso!
E é chegada a hora d'O Jantar da Maioridade. Ao 18.º ano, eis a convocatória para o nosso encontro, que seguramente marcará muito mais do que apenas a celebração da "adultez" do Caderno de Corda. A maturidade não se exerce, no entanto, sem o uso de responsabilidade, autodeterminação, independência... Liberdade. E tomando uso pleno de autodeterminada e responsável Liberdade, está este ano apontada a data de 25 de Março para realização d'O Jantar, que, é sabido, deveria realizar-se na data tradicional de 26 de Março, véspera da celebração do aniversário do blogue (27 de Março). Com o passar dos anos adequa-se a data em função dos dias de semana mais favoráveis, mas o local mantém-se no restaurante A Valenciana, sendo a participação livre e especialmente dedicada aos indefectíveis Irmãos cordianos e estimados leitores. 'Té já.
Pedro Martins de Lima (14 de setembro de 1930 - 21 de fevereiro de 2023)
Foi no Verão de 2005 que, pelo jornal A Bola, tive o privilégio de ir até Gaia para entrevistar (leia-se antes "conhecer e privar com") o Pedro Martins de Lima - uma personalidade magnética, generosa e inspiradora, de tal modo fascinante que senti ter de deixar esta nota após tomar conhecimento do seu falecimento na passada terça-feira, aos 92 anos, ciente de que perdemos um puro.
A história de vida do Pedro dava vários filmes. Primeiro surfista português, "pai" do surf em Portugal, co-fundador do Hot Clube, cicerone de Cousteau... Epítetos não lhe chegam. De tão rica, relevante e extraordinária, a aventura linda que foi a vida do Pedro justificaria por si só todas as notas de pesar. Mas, somando-lhe a tal personalidade impactante, com doses generosas mas muito bem medidas de fraterna sageza, educada ousadia e jovial elegância, a nota torna-se para mim obrigatória. Sinto a sua perda.
A memória grata que tenho do Pedro e da sua querida Mané M. Lima, que, antes do meu regresso a Lisboa, fez questão de me servir um consommé primoroso que ainda me deixa a salivar, levou-me a procurar nos arquivos possíveis a tal peça que sobre ele escrevi em Julho de 2005. Encontrei-a em fotocópia digitalizada, que aqui publico, dando, pela minha parte, um pouco mais de lastro à memória inapagável desta marcante viagem de vida. O pequeno texto, esse, fora essencialmente focado na experiência desportiva do Pedro, em particular no que ao surf diz respeito. Era Verão e o espaço editorial na contracapa encontrava-se dedicado, naquele período, a desportos e actividades de Verão.
A entrevista derivou numa longa conversa a deambular pelo jardim e pelas divisões da casa, em Gaia, junto ao mar. Lembro-me que, a certo ponto, nos detivemos numa das divisões, repleta de registos, discos, fotografias impressionantes e recordações inestimáveis - da fotografia a preto e branco, a nadar entre tubarões, na Grande Barreira de Coral, passando pela caixa estanque para fotografia submarina que o próprio construiu a partir de uma panela de pressão para filmar documentários, terminando no icónico barrete vermelho que o amigo Cousteau lhe ofereceu. Introduziu as t-shirts em Portugal, praticou com mestria natação, hóquei, hipismo, esqui, râguebi, boxe, futebol, asa delta... Fundou o Hot Clube, onde ia noite dentro em jam sessions ao despique no contrabaixo; foi pioneiro no mergulho com escafandro, na pesca submarina e no esqui em Portugal. O que é que Pedro não fez? E fê-lo com distinção assinalável. E tudo o que eu escreva é pouco.
Um funcionário apagado e triste, escondido e envergonhado, esperando que não lhe dirijam palavra, planta uma árvore no canteiro da varanda, debruçada sobre a Estrada Nacional, onde a luz solar resta ardente no asfalto, sabendo de antemão que não lhe cabe a fruição nem do fruto nem da sombra.
Débito e crédito debitado; toda uma vida de empregado, operário pontual e exemplar sem orgulho no cumprimento de um dever e sem sombra nem fruto, irremediavelmente cansado, sem presente e sem futuro.
Como a natureza, trabalha continuamente e em silêncio, absorto e conformado, canário mudo na gaiola, alimentado a alpista, no labor desdito do desejo único de esquecer-se quem é; na lida de tudo o que é matemático e geométrico, assíduo, inquestionável, previsível, sem canto nem engano, sem desvio, prazer nem esperança.
Os músculos lassos e flácidos sabem de cor o equilíbrio dos movimentos repetidos, sendo sua a substância da letargia no enlace justo dos tendões, nos dedos como malhos, nas palmas tectónicas das mãos, capazes de adormecer paisagens privatizadas, nunca visitadas. Pernas como tesouras recortam sulcos febris de infindáveis plantios e lavouras; de trilhos e carreiras fabris, arquitectando perenes destinos nas paredes do tempo.
O funcionário recurva-se na secretária mirando um memorando como quem contempla a morte anunciada de um conhecido. Chegara a requisição de mobiliário de escritório e o que restava lá fora era a dor da tarde esperando o hálito moroso das folhas por nascer, supondo a dúvida de saber se se é incompletamente infeliz.