Viste os anjos cair de alturas vertiginosas
e tu, como eles, sabias ser tão mais humano do que divino
— o próximo, tarde ou cedo.
De cada vez que olhas para o Sol
procuras a razão de ser e, perfurante,
a visão, cega, queima a luz e tudo em redor,
deixando-te caído numa Lua bêbeda e entorpecida,
vacilante, imprópria dos imortais.
Vamos, criança lunar que estás tão longe esta noite.
A porta já foi arrombada de par em par.
Como foi que te fizeste brisa volátil mas selvagem,
flor de prata tão distante e capaz de florir a qualquer instante,
em qualquer parte?
Crepúsculo e sombra, és o passageiro, a visão e a cicatriz,
as brasas do teu mistério, que afagam a incredulidade
no brilho refulgente deste próprio pesar
– dependurado no lábio superior da depressão,
tal a febre pintada em recuo da mentira sem a dor,
sem a chance do remorso.
E quando fosse apenas sim ou não,
e agora se tornasse demasiado cedo,
convidavas-me para ver a Lua, mais uma vez,
sob a cintilação azul da inquietude.
Somos a margem à mercê da maré
e poeira diamantina.
O metal enferruja e afoga-se, Ilha de Homem.
Estamos cercados pelos próprios corpos.
Mas como?, se desde que nascemos até ao dia final,
na escuridão da noite mais escura
e até sob o brilho solar da cegueira,
dizias ser à luta sangrenta
que não se viram costas,
para chegares tão cansado de viver na linha da frente,
mesmo sendo um príncipe e uma sombra.
Cada momento deixa-nos mais próximos de dizermos adeus para sempre.
És o inimigo de ti, o inimigo que tragicamente trazes contigo,
porque não existe tal coisa como nada.
Sim, não há tal coisa como coisa nenhuma,
mas tens o dedo no gatilho e prometeste desligar o mundo.
Durmo há duas noites sobre a almofada dos teus ossos.
Há duas noites sobre a almofada dos teus ossos.
E tu olhas para mim
em pose de Cristo,
pecaminosa emulação
de braços estendidos,
como se te carregasses sempre
— o maior fardo.
Injurias de liberdade o escravo
que nunca quis ser salvo
e renegas a alma luminosa
que em ti viram
e que tu crês fingir.
Foste sábio, ferida, máscara,
pilar de fumo, braços abertos e coração de platina;
entulho espalhado na berma da estrada,
segredo velado e revelado em ira.
És livre, nada te aprisiona, nem tu próprio.
Mas aí te prostras à imagem de Cristo,
e assim previste a desaparição no breu,
o tresmalho atrás das cortinas.
Não tinhas onde esconder-te
do paraíso e do carnaval de almas,
da doce euforia, coração fora do peito.
Perdida a graça, deslumbramento desfeito,
mil bocejos esboçados de um amor esquecido,
e os olhos de éter, vagos e cegos, ausentes, como a vontade.
Mas como?, se até sob o brilho solar da cegueira
dizias ser à luta sangrenta
que não se viram costas,
para chegares tão cansado de viver na linha da frente,
mesmo sendo um príncipe e uma sombra.
Tinhas o dedo no gatilho, prometeste desligar o mundo
e eu dormi por duas noites sobre a almofada dos teus ossos.
O que querias ver claramente cegou-te;
o que mais querias possuir aprisionou-te,
mesmo sabendo não poder deter
algo que se pretende ver voar.
Sob disfarce, como se ninguém soubesse,
mais cantavas sublimemente
e menos se imaginava
que esses olhos secos
vidravam a verdade crua,
feia, que as vozes te segredavam
e que nas palavras puseste
sem que alguém as soubesse ler
e escutar para te salvar ou odiar.
Amado, não te compreendias,
como se por te amarem
te tornassem devedor
e incapaz de retribuir.
Desmereceste-te.
O espelho repudiava a tua imagem
e os outros não inquiriam o sorriso pintado
através do qual te escondias
e crias forjar as emoções.
Foste o inimigo de ti, o inimigo que tragicamente trazias contigo.
Porque não existe tal coisa como nada.
Só a exaustão que te adormecia.
Que te seguissem quando nada liderasses,
quando te perdesses e fosses apenas inseguro,
frágil e puro, inerme, amado incondicionalmente.
Porque não existe tal coisa como coisa nenhuma.
Como dantes, dormes sob um lençol de lua cheia,
sete penas na cabeça e sonhos a pairar sobre a cama,
perdidos atrás de palavras que nunca encontrarás.
E as estações seguem-se umas às outras.
Tinhas o dedo no gatilho, prometeste desligar o mundo
e eu dormi por duas noites sobre a almofada dos teus ossos.
Poema escrito em memória de Chris Cornell, iniciado a 19 de Maio de 2017 e concluído a 17 de Junho de 2018. As duas noites referidas no poema reportam-se à insónia de 48 horas após a notícia da sua morte.
Etiquetas: Música, Poesia Cordiana