quarta-feira, dezembro 03, 2008

Engenho de Ida

Na era espacial era uma vez um velho avião com combustível
que voava quando todas as naves estavam desmanteladas em terra
a aguardar por mais mil anos de ciência.

Depois da Grande Depressão a paz absoluta reinava
sob um manto nu de homens desmamados,
recurvados junto às poças da catástrofe tecnológica.

Havia uma mulher que receava embarcar nesse avião
para onde os lagos eram translúcidos,
porque o remendo com asas podia despenhar-se.

Havia um homem que sonhara toda a vida
com lagos translúcidos e rios truteiros
na outra ponta distante da rota.

O combustível do avião era o bastante para a viagem de ida.

A mulher tinha receio da morte...
da morte!, imagine-se...
Sobrevivia, é verdade.
O paliativo com asas não impressionava
nem dava garantia de nada - sequer de chegada!

Já o homem vivia...
Tinha um sonho de orvalho lá fora e calor na cama;
de manhãs de sol com cheiro a terra
junto a lagos translúcidos e almoços grelhados
de trutas e batatas cozidas em água do poço.

(Sem sonho o homem morre, e a morte é a coisa mais certa)

Nas ruínas da periferia descobriram ambos o descampado.
A pista estava livre. Os pilotos esperavam pela conta de 325.
A bagagem era muita - utensílios vários, inestimáveis no desconhecido.
Os passageiros acorriam ao local. A notícia alastrava-se.

Ela advertiu-se de que, algures, alguém tinha como recuperar a civilização.
Soube, nesse instante, que não embarcaria num patético avião.
Já sem medo da morte, que julgava evitar assim,
evitou a vida.

Ele não teve outra saída senão entrar,
que a morte é a coisa mais certa
mesmo quando não se evita viver.

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