terça-feira, dezembro 09, 2008

Porque decepei o meu campo de girassóis

Numa colmeia de província havia uma abelha vulgaríssima, aparentada de vespas e zangões desambiguados. Prima de formiga - chamemos-lhe Maia, se bem que o nome a exceda em simpatia -, a apis mellifera Maia procurava flores rubras, quando é sabido que toda e qualquer comum abelha poliniza especialmente flores descoloridas e pardacentas - salvo excepções justificadas.
Tinha cinco olhos a abelha Maia - três pequenos no cocuruto e dois compostos e esbugalhados à frente. Era desconfiada - logo, também merecedora de pouca confiança. Incrivelmente, a lígula competia em comprimento com uma protuberância adunca, ligeiramente abaixo dos dois olhos esbugalhados, a meio, a fazer lembrar um nariz - que, como o estimado leitor saberá, não compõe a anatomia das abelhas. Ainda que não pudesse ser rainha, a operária Maia orgulhava-se da invulgar protuberância e até de partilhar os mais vis defeitos de espírito das abelhas vulgares - que os têem!, mesmo que todos inestéticos, os defeitos -, mas a verdade é que a presunção lhe dava um estranho élan.
Maia vinha ao quintal da minha casa diariamente. Como as abelhas vulgares, fazia, em média, 40 voos por dia, visitando dez flores por minuto. Não sei se a vi entre tantas abelhas dessas, vulgares, que sobrevoam numa névoa o colmeal, passando as aventureiras para cá da sebe, mas assim suponho. Por vezes, pareciam zunir à porta de casa. É possível. Nunca então abri a porta. Mas, em tantas oportunidades, nenhuma alguma vez me ferrara o espigão, tão doce era o pólen e o néctar dos meus girassóis. Julgava que as abelhas me respeitavam pelos girassóis, mesmo a mais vulgarzinha delas - e, na colmeia, eram mais de 80 mil as congéneres daquela abelha ordinária a que chamámos Maia.
Certa noite amena, saí até ao alpendre enquanto bebia café. Observava o céu estrelado e notei um zumbido que parecia comandar a maviosa orquestra do nocturno fundo sereno. Deixei-me ficar mais um pouco, entre o aroma doce do café e a acalmia apaziguante do momento.
Voava Maia de flor para flor, de estrela para estrela, atarefada, sem tempo para a tristeza, quando me terá pressentido, a escassos metros dos primeiros girassóis. Sem resignar-se à climatização perfeitamente disciplinada da colmeia, com o sacrifício dos que fecundam no azul e morrem, aquela abelha mesquinha achou-me inimigo e apontou o ferrão ao meu nariz, no qual injectou furiosamente o seu veneno acre. Como se tivesse sentido um choque eléctrico de alta voltagem que pelas narinas me percorreu o crânio, pude apenas vê-la quedar-se um segundo sobre o meu nariz, olhando-me corajosamente com aquelas ventas de abelha odiosa, salientadas pelo seu próprio quase-nariz, tão invulgar nas abelhas. Espalhei o café sobre a roupa e rasguei o suave som do silêncio com um grito lancinante. Em fuga, a operária Maia voou também ela atordoada, depois de deixar parte do intestino agarrado ao ferrão, que prontamente retirei da ponta do meu nariz com a ajuda de uma moeda.
Sabia que Maia morreria um ou dois dias depois; sabia que à vingança nem sempre segue o arrependimento. Assim, pelos louvores da virtude, porque a verdadeira vingança é doce como o mel para o escol das abelhas, decepei todos os girassóis na manhã do dia seguinte, desfigurado ainda. Qual Calimero, chorei pelos girassóis durante um mês e meio - o tempo médio de vida de uma abelha operária -, mas não mais fui incomodado por abelhas dispostas a perder a própria vida por um impulso de maldade.

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