sexta-feira, junho 17, 2005

Entre o Ser e o Não Ser

«Eu não estou cá. Isto não está a acontecer», pensei novamente. De seguida, sentei-me no sofá da sala de estar e liguei a televisão. Telecomando... as notícias pairavam no ecrã, instantes fugidios. Cada imagem se encarregava de apagar a imagem anterior. Sucediam-se horrores que saciavam uma qualquer libido vertiginosa e apocalíptica, auto-destrutiva. Nisto, acendo um cigarro de marca aparentemente portuguesa e deixo o corpo escorrer por entre a cascata de informação e o sofá; planto-me num regaço de almofadas, faço-me erva daninha nas encostas de uma poltrona de tédio e passividade. «Isto não está a acontecer.» Nem por isso resisti a passear vagamente por entre canais. Duas horas depois, seis cigarros fumados, meu amor próprio desfigurado; a minha raiva, entorpecida. Nada tinha realizado. Sem capacidade de reacção, levantei-me e fui beber um copo de Coca-Cola para revigorar uma sede estranhamente obsidiante. Acendo mais um cigarro, ainda na cozinha, e volto à sala de estar. Milhares de mortos e crianças subnutridas algures, repentinamente em rodapé. O novo álbum de um qualquer hispanófono promovido no nosso telejornal. O Capitão não sabe o segredo. O vento sopra... Sentei-me novamente no sofá. Estava agastado com o tempo perdido, desgastado pela inércia moral, espiritual, física. Deitei as mãos à cabeça. Desliguei a televisão. Numa tentativa de recobrar alguma interioridade vadia, apressei-me a ouvir boa música americana. Ao passo que aliciava uma sensibilidade flutuante e volátil, esperava despoletar um qualquer efeito criativo, comunicativo, ainda que assim solitário. Tentei tocar guitarra, tentei escrever alguma coisa, dar vazão àquilo que dentro de mim vai. Nada. Tudo havia sido empacotado num tetra-pak de abertura fácil. Kaput. A exposição prolongada à TV Shop havia decapitado o meu livre arbítrio e a minha criatividade. Lisboa já não tardava em amanhecer. Zonzo, deitei-me no sofá e irreflectidamente peguei no telecomando. Olhei-o, torcido de cansaço inútil, como se nele me reflectisse em vergonha. Pousei-o. Nada tinha realizado. Tudo se encontrava na mesma, excepto eu, que envelhecera. A televisão versa em como desaparecer completamente. Numa segunda investida libertária e criativa, procurei novamente mergulhar em mim, guiado pela música. Radiohead: «I´m not here. This isn´t happening». E comecei a escrever.

n.b. - "Entre o ser e o não ser" foi publicado no segundo número do jornal "Impress" do mês de Junho de 2003. O projecto de boa memória "Impress" foi fundado por meia-dúzia de alunos do curso de Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma de Lisboa, dos quais eu era um. A um dia do fecho da publicação houve uma inesperada desistência e foi necessário preencher, impromptu, um espaço em branco, mesmo a meio da página quatro. Numa de muitas conversas edificantes, construtivas e fraternas que tive com o então director do jornal e presidente do núcleo de Ciências da Comunicação, Pedro Coutinho, decidimos que seria eu a preencher o dito espaço reservado a opinião. Assim foi. Aproveito para, além de publicar um texto sem tempo guardado na gaveta, endereçar um abraço ao Pedro, com quem, após ambos termos terminado o curso, apenas tenho privado por telefone ou messenger. Aquele abraço, companheiro!

Etiquetas: , ,

4 Comments:

Blogger carolina said...

Vai nos fazer falta o Impress!

sexta-feira, junho 17, 2005 9:00:00 da tarde  
Blogger Davi Reis said...

Creio que sim, Carolina. E não será com um qualquer professor no comando que se fará um melhor trabalho, infelizmente... Sabes a que me refiro... Creio também que se criou um vazio na sucessão. Falhámos na passagem do testemunho.

sexta-feira, junho 17, 2005 9:19:00 da tarde  
Blogger drinkthestars said...

O impress feito impasse pelo passo dos que eventualmente vão também passar!

sexta-feira, junho 17, 2005 10:15:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

A criação livre chamada Impress, agora livre destes e para sempre de muitos outros, só nos fará falta a nós e talvez nem isso, porque nós temos as nossas memórias. Os outros, um dia que cresçam, jamais saborearão esta sabedoria, e nunca se poderão orgulhar de algum dia se terem construido em actos que trazem lembranças. Nós, mais que os outros todos, aprendemos que o único algo que não nos deixa ser livres são as convicções, que exigem o confronto que nos delimita a liberdade. Sabemos que podemos ser presos do pensamento e da vontade e que isso até pode nem ser mau...

Já pensaram que nós sempre fomos os nossos cabrões de editores que nos dizem o que escrever e que não nos proibem de o fazer? Eu, tu e os nossos...todos ganhámos. Os outros...que se fodam!

Chamem-me egoísta!

(será que isto faz sentido?) :)

terça-feira, julho 05, 2005 9:05:00 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home