Estórias 1 - A insustentável consistência do puré
Rita deixara tudo o que lhe recordava o passado. A casa, as mobílias, até os naperons que, suponho, poderiam ter sido tricotados pela avó. Os tachos, as panelas, as colheres, os electrodomésticos, o corta-unhas, as caixinhas forradas a flores primaveris. Levara apenas a roupa e objectos pessoais absolutamente imprescindíveis. Viveu nesta casa durante talvez uma semana depois de regressar do hospital. Foi para longe do Largo de Santo Antoninho, longe da memória de discussões, da submissão aos maus tratos, do peso do tempo respirado entre ar enfermo de ódios e rancores amontoados como corpos fétidos na vala comum. Alugou-me a casa até não precisar mais do dinheiro. Encontrei o seu diário, que não imagino porque terá ficado. Estava debaixo do colchão. Na última página, escrevia:
(...) Num rasgo de fúria, agarrei na maldita tesoura e brandi-a no ar, pronta a desferir um golpe no inimigo, que se aproximava de colher de pau na mão. Ele, tresandando a whisky, um tanto entorpecido, não esperava o contra-ataque colérico e desesperado. Tropeçou no fio do telefone e, em desequilíbrio, tentando apoiar-se no sofá, caiu sobre mim. Tantas vezes quis ele estar em cima de mim, tantas vezes sem eu querer, tantas vezes me magoando. Seria a última vez. Dentro de mim, a tesoura, cravada no abdómen. Ele levantou-se, viu nos meus olhos o fim de tudo, o fim de nós. Não podíamos continuar a esconder a loucura, silenciar os gritos. Ainda tinha a colher na mão. Perplexo, rosto disforme, deixou-a cair no chão. Limpou-me o puré que tinha no pescoço e no peito. Lavou-me em lágrimas até que agisse; até que eu lho dissesse. Conseguiu ligar para o 112 e reportar o incidente, transmitir a morada. Inexpressivo, abraçou-se ao meu corpo inerte, exangue, até que ouviu a ambulância chegar. Deixou-me só e um rasto de sangue e puré; a porta aberta. Acordei no dia seguinte, no hospital. Ele não me visitou durante dois dias. A família poupou-me da notícia. Ao terceiro dia, a minha mãe, prenunciando-o no semblante carregado, transmitiu-me mudamente o suicídio. A visita terminou quando mo verbalizou. Vacilei. As costuras precisavam de cuidados. Parece mentira, mas o que desencadeou a morte dele foi a consistência do puré de batata, que não estava sólido como gostava. O puré do jantar que estava junto ao microondas, pronto para ele, que nem me cumprimentou ao chegar. Suicidou-se na linha de Cascais. Não devia ser capaz de suportar a realidade.
Etiquetas: Estórias e Verosimilitudes, Prosas Cordianas
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