Quem sou eu depois do que escrevi?
De quem?, as palavras de que não me lembro?,
Os ditongos sonoros e novos; as línguas ardendo...
Quem sou eu depois do que já vi?,
Dos rostos de que vagamente me lembro – e são poucos –,
Das palavras roubadas ao deus-dará...,
Mas verificadas, levadas à prova e então reconhecidas...
Ainda assim, sempre roubadas, as palavras,
Recordadas, que ninguém nasceu ensinado!
Quem sou eu depois do que já esqueci?
Eça, Pessoa, Régio, Camilo, Camões,
Todos se rememoraram num vaivém de solidões
E todos se curvaram apenas perante a poesia,
Ascética, comovente e dramática na mesa fria,
Memória de um dia que um poeta-pessoa revivia.
Olhos estirados sobre espécie de manto azul
Espraiado imaginariamente no papel
sem saber nadar na mancha de texto...
Morremos, morremos, devagar em fel...
Precisamos de um pretexto.
Sou eu, quem sou.
Jeremias Cabrita da Silva
Jeremias Cabrita da Silva, hoje com 82 anos, escreveu "Quem sou eu" despretensiosamente, segundo diz, depois da visita de uma tia, tinha ele 54 ou 55 anos. Procedendo aos trabalhos de arrumação da cave do monte, encontrou o velho baú que pertencera ao seu avô – aliás, criado pelo próprio -, um homem que, segundo a tradição de família, sempre trabalhara com as mãos, artífice exímio de marcenaria. O legado familiar fora quebrado, segundo ouvi da boca do senhor Jeremias Cabrita da Silva, pelo seu pai, um dos primeiros taxistas da região de Cuba, localidade típica alentejana, rodeada de olivais, onde o perfume do feno e a cal nívea tão sincera e prostrada das casas caiadas se assemelhavam prazenteiramente a caruma adormecida no solo longínquo onde brincaram crianças geração após geração, chutando pinhas junto à estrada. Jeremias não espreita hoje pelas janelas e portas que se emolduram de faixas azuis e ocres, sempre parcas, pequenas, para resguardar os quintalitos traseiros com laranjeiras, limoeiros e figueiras, do calor abrasadoramente árido do Alentejo estiolado. Jeremias rememorou-se e aos seus nas horas que, naquela tarde de espera pela tia Assunção, deveria ter passado aprumando a casa para a visita. Abriu o baú das recordações de família e, revolvendo-se gaiato, pernas cruzadas à chinês, escreveu depois este poema sobre o tampo do baú talhado pelas mãos do avô José Ernesto.
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