segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Quem sou eu (Jeremias Cabrita da Silva)

Quem sou eu depois do que escrevi?
De quem?, as palavras de que não me lembro?,
Os ditongos sonoros e novos; as línguas ardendo...
Quem sou eu depois do que já vi?,
Dos rostos de que vagamente me lembro – e são poucos –,
Das palavras roubadas ao deus-dará...,
Mas verificadas, levadas à prova e então reconhecidas...
Ainda assim, sempre roubadas, as palavras,
Recordadas, que ninguém nasceu ensinado!
Quem sou eu depois do que já esqueci?
Eça, Pessoa, Régio, Camilo, Camões,
Todos se rememoraram num vaivém de solidões
E todos se curvaram apenas perante a poesia,
Ascética, comovente e dramática na mesa fria,
Memória de um dia que um poeta-pessoa revivia.
Olhos estirados sobre espécie de manto azul
Espraiado imaginariamente no papel
sem saber nadar na mancha de texto...
Morremos, morremos, devagar em fel...
Precisamos de um pretexto.
Sou eu, quem sou.

Jeremias Cabrita da Silva

Jeremias Cabrita da Silva, hoje com 82 anos, escreveu "Quem sou eu" despretensiosamente, segundo diz, depois da visita de uma tia, tinha ele 54 ou 55 anos. Procedendo aos trabalhos de arrumação da cave do monte, encontrou o velho baú que pertencera ao seu avô – aliás, criado pelo próprio -, um homem que, segundo a tradição de família, sempre trabalhara com as mãos, artífice exímio de marcenaria. O legado familiar fora quebrado, segundo ouvi da boca do senhor Jeremias Cabrita da Silva, pelo seu pai, um dos primeiros taxistas da região de Cuba, localidade típica alentejana, rodeada de olivais, onde o perfume do feno e a cal nívea tão sincera e prostrada das casas caiadas se assemelhavam prazenteiramente a caruma adormecida no solo longínquo onde brincaram crianças geração após geração, chutando pinhas junto à estrada. Jeremias não espreita hoje pelas janelas e portas que se emolduram de faixas azuis e ocres, sempre parcas, pequenas, para resguardar os quintalitos traseiros com laranjeiras, limoeiros e figueiras, do calor abrasadoramente árido do Alentejo estiolado. Jeremias rememorou-se e aos seus nas horas que, naquela tarde de espera pela tia Assunção, deveria ter passado aprumando a casa para a visita. Abriu o baú das recordações de família e, revolvendo-se gaiato, pernas cruzadas à chinês, escreveu depois este poema sobre o tampo do baú talhado pelas mãos do avô José Ernesto.

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domingo, novembro 06, 2005

Estórias 7 - Aragón, el gringo de la Chuaterca de los Álamos

Ela tinha as unhas partidas. Na mão, um copo de whisky. A saia destapava-lhe as pernas, os seios transbordavam, redondos, da camisa justa de cetim com motivos florais, e nada se dizia a seu favor naquela casa de ruim reputação. A meretriz dançava ao som da rumba com um salto partido, e a barriga da perna, tensa, fazia-se notar. Ernesto viu nela Cassandra sob o lusco-fusco carmesim e o álcool entorpecente. Parecia-lhe o amor da sua vida, a bela Cassandra que o deixara só, para depois se intoxicar em aspirina, antidepressivos e analgésicos (que Ernesto sempre julgara serem supositórios); beber 75 cl. de whisky; desmanchar, irascível, o vestido de noiva; elogiar Evita Perón e Pinochet na mesma frase, e tudo na mesma noite, na mesma meia-hora. Depois, Ernesto só se recorda de a ver lançar-se da varanda, em voo picado para a glória vertiginosa da morte vomitada de um sétimo andar. Ernesto, o quixotesco caixeiro-viajante uruguaio, levantou-se da cadeira que se ouvia ranger em dias de silêncio solarengo sem música latina, bamboleou-se, ébrio, até junto do balcão do bar em tábuas e pipas, chegou-se ao mexicano mariachi de sombrero e bigode espaventoso e perguntou-lhe quem era aquela mulher. Paquito, o mexicano, que apoiava o queixo nas mãos, e as mãos, uma sobre a outra, na garrafa, parecendo querer selar definitivamente os vapores da mescalina, olhou-o semicerrado de lado como se visse nada senão um vulto.
- Aragón! Tienes que hablar con el gran Aragón, señor de las Chiquititas - disse o mariachi gorducho apoiado na garrafa.
- Pero... quien es Aragón? Donde está el hombre? Las Chiquititas?! Yo solo quiero mi Cassandra...
- Si, cojones! Aragón, el gringo. Cuanto a Cassandra, no hay ninguna Cassandra aquí!
Um homem distinto interrompe o diálogo possível entre os dois burgessos. Era Aragón, senhor das terras de La Chuaterca de los Alamos e mestre soez das perversas mulheres do Chiquititas Palace, antro da vergonha local e da luxúria dos forasteiros. O desencaminhado fidalgo lança:
- No hay Cassandra aquí, pero estavas mirando Ruby. Habla con ella ahora y, si quieras, llama-la Cassandra. Le gusta doggy style. Mañana puedes ir sin pagar.
Aragón sempre fora um cavalheiro e amigo de seu amigo. Na penumbra dos quartos do Chiquititas Palace, Ernesto pensou, enquanto a tequilha performava o seu efeito, ter copulado com a saudosa Cassandra e não a rameira Ruby. Aragón sempre o soubera. Do escritório, observara o mais pequeno gesto de Ernesto, que reconhecera de quando ambos haviam lutado juntos pela causa Zapatista. Ernesto não o identificou sem barba, nem com aquele chapéu de cowboy. Aragón procurara redimir-se depois de, 20 anos antes, ter traído Ernesto, que ficara nos Andes pela causa e dera o endereço de Cassandra ao companheiro Aragón que, ferido em combate, regressava à cidade. Aragón entregou mais do que uma carta a Cassandra, onde Ernesto devotava o seu profundo amor...
n.b. - Escrita recentemente para o Crónica dos Maus Malandros, a "Estória 7" - "Aragón, el gringo de la Chuaterca de los Álamos" - é hoje republicada e dedicada no Caderno de Corda ao Miguel Aragão, que ainda não se dignou adicionar ao Crónica, fechando o tridente Davi Reis - Sheep Shagger - Aragón. Esperamos por ele.

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quinta-feira, outubro 13, 2005

Estórias 6 - Pirex, o Destruidor

Royko, a malga, havia suportado anos de exposição às micro-ondas do aparelho que lhe era tão familiar mas desamado, Moulinex 2000. Royko perdera a vaidade de quando era jovem malga, de quando eram vivas e evidentes as inscrições coloridas sobre o fundo verde da superfície; de quando estas a identificavam como sendo Royko, a malga cup-a-soup, e não Royk qualquer-coisa, e as letras, cada vez mais esbatidas e imperceptíveis. As cores também já não reluziam o fulgor e vivacidade de outrora.
Royko tinha uma profunda embirração com Moulinex 2000 por considerar, a conselho de Arcopal - conhecedora peça de louça da alta-cozinha -, que as micro-ondas de Moulinex 2000 infligiam duros golpes mesmo nas inscrições de maior qualidade. Corria até o rumor de que uma das peças da família mais conceituada da casa, o serviço Vista Alegre, que vivia numa prateleira na zona chic da sala, num armário de modelo clássico, havia perdido a profusidade de elementos decorativos que a adornavam, por causa de Moulinex 2000. Dizia Royko a Arcopal, dentro do armário de parede da cozinha:
- Temos de fazer alguma coisa. Talvez pedir a Delta, a chávena de café, que atinja os circuitos de Moulinex 2000 com água.
- Isso seria uma missão suicida. Poderíamos provocar um curto-circuito de proporções graves e inconcebíveis. Delta poderia sofrer danos que desconhecemos.
- Então e Expo 98, a caneca comemorativa? Sempre é mais robusta e resistente...
Congeminaram as duas de forma tão suspeita que a elas se juntaram outras peças de louça, naquele momento pelas imediações. Todas, comunicando em infra-sons que só entre peças de louça são perceptíveis, fizeram alarido tal que até o velho Pirex se lhes juntou com dificuldade.
Foi nesse instante, quando todos conspiravam no primeiro andar de prateleiras, exactamente por cima da bancada de Moulinex 2000, que a porta do armário sossobrou à pressão e peso exercidos pelo tumulto que lá ia dentro. Nisto, Pirex, o mais pesado, sente o chão fugir-lhe e, atrás de si, a porta abrir-se. Tentou avisar os outros para que deixassem de empurrar mas, rouco e cansado, todo o esforço era inútil perante tamanho frenesim.
Pirex caiu mesmo em cima de Moulinex 2000, que ficou com a porta aberta, e uma amolgadela profunda impedia-a de se fechar. Moulinex 2000 foi, dois dias depois, levado por Joana, a ocupante humana da casa, para conserto. O bom velho Pirex resistiu à queda e foi glorificado por todos assim que retornou ao armário de parede da cozinha. A queda fora amparada por dois hamburgueres que estavam na bancada, a descongelar.
Entre os seus, Pirex ganhara o cognome de ‘O Destruidor’. Joana nunca suspeitou de nada. Culpabilizou-se por tê-lo deixado em desequilíbrio, por cima de um tacho.
n.b. - A comunidade fabular cacofónica de que escrevia resultou de um exercício de narração proposto pelo professor Luís Carmelo, numa aula de Escrita Criativa. A 'estórinha' foi escrita no corredor da Universidade.

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segunda-feira, setembro 26, 2005

Estórias 5

Eram duas crianças, gémeos dizigóticos. Tinham parecenças mas ninguém os diria gémeos; talvez irmãos. Eram falsos, uma vez que provinham de células diferentes, fecundadas por espermatozóides diferentes. As suas vidas haviam sido felizes até serem arrastadas da placidez dos verdes anos, para longe da família. A mãe e o pai, levados para interrogatório pela polícia política, deixaram de poder ampará-las; de poder explicar-lhes as razões porque a realidade que concebiam se havia desmoronado; de poder aconchegá-los à noitinha. Até Odete, a governanta que fazia as vezes de tia, tinha sido separada das duas crianças. Labutava agora num campo de trabalhos forçados, por estar conotada com a família e os seus alegados segredos. O menino e a menina tinham a sorte de se terem um ao outro, e assim se valiam mutuamente. Estava escuro, como habitualmente, no sótão onde dantes brincavam - vontade que lhes haviam extirpado os “cabeças de giz”, como lhes chamavam. Mantinham-se em silêncio, acocorados, frente a frente, de olhos fechados, como que meditando - na verdade, padecendo da astenia da fome.

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quarta-feira, setembro 14, 2005

Estórias 4

O homem que queria lançar-se ao mar surgiu junto às portas do cais. O esforço havia sido inglório, tanta preocupação o inquietara. Segismunda aguardava, incontida, o momento de o interrogar sobre os acontecimentos do dia. Antes que ela libertasse a sua curiosidade, ele disse:
- Do mal, o menos. Trago comida que baste para os dois.
- E os marinheiros? A tripulação de que falaste?
- Ninguém quis vir comigo. Alguns troçaram de mim. Disseram-me que já nem o peixe lhes dá esperança para largarem a comodidade remediada dos seus lares. Que os tempos do mar misterioso, revolto, e de ilhas desconhecidas já lá vão. Houve mesmo um mais espertalhaço que me perguntou onde ia eu sem Sancho Pança.
- E tu, que lhes disseste?
- Que o mar será sempre misterioso e retribuí com uma pergunta.
- E nem uma palavra sobre a ilha desconhecida?
- Como poderia eu falar-lhes de tal ilha, se nem eu próprio a conheço?
Inspirado n'“O conto da ilha desconhecida” de José Saramago (Cadernos do Pavilhão de Portugal, Ed. Assírio & Alvim)

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domingo, setembro 04, 2005

Estórias 3

Caminhámos dias e noites áridas e sufocantes, resistindo à ablepsia de fé que nos tentava. Sabíamos ser rumo Sueste o caminho para longe da inumação incógnita, do esquecimento abnegado no deserto entre El Alamein e os poços de Chebin el Kom. Sedentos, possivelmente tão longínquos da tecnocrática e frívola Europa quanto de coqueiros e palmeiras, oásis refrescantes e outras miragens impossíveis, arrepiávamos caminho por sobre os vértices das dunas, não parando sequer para inspirar o ar morno, ganhando tempo ao tempo que não existe nem resta, e ao espaço, sorvido pelo Espaço, pé ante pé, passos curtos em crescendo extenuado e delirante.
Caía a noite e, no horizonte, a mesma paisagem de há dias de caminhada sobrevivente. À excepção de víboras e escorpiões abespinhados, nem sinais de vida havíamos notado, que o deserto já se ocupara de apagar tais vestígios, engolindo-os.
Preparámo-nos para a tempestade de areia nessa noite, aliás, como em todas as noites. Sahib e eu abraçámo-nos sob uma manta berbere, nosso haver mais precioso - mais ainda que os vinte centilitros de água restantes no cantil. O crepúsculo tinha uma coloração purpúrea, diferente dos outros fins de tarde. A abóbada dos céus parecia fechar-se sobre nós, afectada, constrangida, impiedosa. Um vale de terra fina como pó assobiava uma melodia ondulante e alucinada, num cântico que trazia consigo o rodopio ascético das vozes, das cítaras e dos tambores berberes. Algo no uivo da noite ignota, como um aviso, se manifestava e sobrepunha à preocupação imediata pela desidratação e fraqueza em que estávamos, fincando o solo volátil onde, deitados, em contemplação esquecida, nos entregávamos ao que viesse. Sobre as nossas cabeças pairavam constelações e mitos incontáveis. O zéfiro da tarde se havia transformado em tempestade. As forças que me restavam, empreendia-as em manter Sahib coberto, que abdicara da luta e devaneava algo relacionado com uma mulher que conhecera em Al Moghrab. Sem esquecer o propósito da viagem, confessei-o apenas a Andrómeda, sussurrando sem saber, aninhado no seu ventre terrestre movediço.
n.b. - Graças a Nuno Júdice e ao Professor Luís Carmelo escrevi há algum tempo esta estória descritiva com base na leitura do capítulo V da novela "O tesouro da Rainha de Sabá", do primeiro dos escritores enunciados. Hoje publico o textinho... por estar próximo do ventre nuclear e hipnótico do chão.

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segunda-feira, agosto 22, 2005

Estórias 2

Por debaixo da inexpressividade do seu rosto, Benvinda felicitava pela última vez a paisagem, despertados que estavam seus sentidos últimos e finos. Sorvendo a ilha de Manuel pela estreiteza dos lábios e ouvidos, pelas protuberâncias infinitesimais dos poros, a cabeça inclinada para trás demonstrava a atenção com que contemplava as propriedades de uma realidade apenas para si evidente, para Manuel oculta e paradoxalmente familiar. Benvinda abraçou-se violentamente ao marido, escorrendo lágrimas de incondicionalismo afogueado, amor cego na partida. Manuel realizara-se mais uma vez em Benvinda. Ambos se haviam plantado um no outro; raízes profundas e enlaçadas. Novamente, o marido deixou-a absorver a maresia, o troar das ondas do mar, a benção finita do sol da última tarde atlântica. Apesar do adiantar da hora, Benvinda deteve-se apenas por um instante, antes de entrar apressadamente no carro, rumo ao aeroporto, parecendo antes pairar junto ao som libertário das gaivotas, que lhe ficou gravado no imo do coração. Benvinda trazia consigo uma imagem nítida da ilha e, em essência, não tirara uma fotografia sequer, coisa obsoleta para uma mulher cega.

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sábado, agosto 06, 2005

Estórias 1 - A insustentável consistência do puré

Rita deixara tudo o que lhe recordava o passado. A casa, as mobílias, até os naperons que, suponho, poderiam ter sido tricotados pela avó. Os tachos, as panelas, as colheres, os electrodomésticos, o corta-unhas, as caixinhas forradas a flores primaveris. Levara apenas a roupa e objectos pessoais absolutamente imprescindíveis. Viveu nesta casa durante talvez uma semana depois de regressar do hospital. Foi para longe do Largo de Santo Antoninho, longe da memória de discussões, da submissão aos maus tratos, do peso do tempo respirado entre ar enfermo de ódios e rancores amontoados como corpos fétidos na vala comum. Alugou-me a casa até não precisar mais do dinheiro. Encontrei o seu diário, que não imagino porque terá ficado. Estava debaixo do colchão. Na última página, escrevia:
(...) Num rasgo de fúria, agarrei na maldita tesoura e brandi-a no ar, pronta a desferir um golpe no inimigo, que se aproximava de colher de pau na mão. Ele, tresandando a whisky, um tanto entorpecido, não esperava o contra-ataque colérico e desesperado. Tropeçou no fio do telefone e, em desequilíbrio, tentando apoiar-se no sofá, caiu sobre mim. Tantas vezes quis ele estar em cima de mim, tantas vezes sem eu querer, tantas vezes me magoando. Seria a última vez. Dentro de mim, a tesoura, cravada no abdómen. Ele levantou-se, viu nos meus olhos o fim de tudo, o fim de nós. Não podíamos continuar a esconder a loucura, silenciar os gritos. Ainda tinha a colher na mão. Perplexo, rosto disforme, deixou-a cair no chão. Limpou-me o puré que tinha no pescoço e no peito. Lavou-me em lágrimas até que agisse; até que eu lho dissesse. Conseguiu ligar para o 112 e reportar o incidente, transmitir a morada. Inexpressivo, abraçou-se ao meu corpo inerte, exangue, até que ouviu a ambulância chegar. Deixou-me só e um rasto de sangue e puré; a porta aberta. Acordei no dia seguinte, no hospital. Ele não me visitou durante dois dias. A família poupou-me da notícia. Ao terceiro dia, a minha mãe, prenunciando-o no semblante carregado, transmitiu-me mudamente o suicídio. A visita terminou quando mo verbalizou. Vacilei. As costuras precisavam de cuidados. Parece mentira, mas o que desencadeou a morte dele foi a consistência do puré de batata, que não estava sólido como gostava. O puré do jantar que estava junto ao microondas, pronto para ele, que nem me cumprimentou ao chegar. Suicidou-se na linha de Cascais. Não devia ser capaz de suportar a realidade.

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quarta-feira, julho 13, 2005

O instinto de Eusébio

Passavam poucos minutos das nove e Jeremias dirigia-se, como habitualmente, ao “Tony das Fintas”, café da esquina. Era hora da bica, injecção final de cafeína. Jeremias trazia vestido o fato de treino novo que a avó Palmira lhe oferecera, indumentária de fins de semana e saídas nocturnas corriqueiras. Ao botar o pé no empedrado, à saída do prédio, Jeremias sentiu o passo amortecido. Sem olhar, que se o tivesse feito, tal não aconteceria, apercebe-se do que acaba de pisar, desata a praguejar e socorre-se de um canteiro próximo para limpar a sola do sapato desafortunado. Enquanto procede à dita operação, levanta a cabeça, olha em redor, e procura o responsável pela obra que, ainda fumegante, indiciava um tempo recente. Nesse instante, os olhos de Jeremias põem-se num cão preso pela trela a um banco de jardim onde, sentados, dois homens de meia-idade discutiam os casos da jornada futebolística. Jeremias renitiu quanto a uma abordagem agressiva. Afinal, que sabia o cão de civismo? Por isso, a sua atenção voltou-se para os dois homens, que parolavam distraidamente. Ambos suspeitos, um deles era responsável pela infâmia inocente do animal. Jeremias dirigiu-se aos homens contendo o seu desagrado e lançou:
- O bicho aliviou-se junto àquela porta?
- O bicho, salvo seja: Eusébio - respondeu com ironia o assumido dono.
- O bicho cagou junto à minha porta! Isto parece a Palestina, está tudo minado, não pode ser! – disse Jeremias, perdendo de vez a paciência.
A discussão prosseguiu num crescendo de entoação até atingir um paroxismo de animosidade que impossibilitava a conversa construtiva. Quando Jeremias, depois de insultada a sua maternidade, se aproxima do homem para o atingir com a sua direita, Eusébio, despertado o instinto fiel e protector, lança-se ferozmente às calças de fato de treino novas, como se não houvesse mundo para além delas. Abocanhou-as até as deixar em farripas e, rábido, ia provando os tornozelos de Jeremias sem palavra do dono, que observava. Jeremias esbracejava tentando manter o equilíbrio, livrar-se do cão, pontapeá-lo sem ortodoxia, mas as calças, essas, já não tinham salvação possível.

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