Domingo Chuvoso, Dia de Reis
Deus,
Pátria, Família;
Fado,
Futebol, Fátima.
Acima
da neblina
que
esconde a deidade,
eis
o proto-mito,
simples,
humilde, porte negro
da
altíssima nobreza da Mafalala
-
pé descalço, bolas de trapos
chutadas
pó adentro,
levitantes
nas asas de anjos
feitos
da terra vermelha dos heróis.
Daquém
e dalém,
antípoda
dos clichés.
Sonhada
Mãe África
que
da argila brota pérolas,
rapazes
serenos de olhos atentos,
reluzentes,
contendo o brilho de estrelas
e
as próprias estrelas.
Pernas
de Hércules,
destrezas
de Ulisses,
pés
com astúcias de mãos,
um
joelho de Aquiles.
De
Lourenço Marques colonial
renascia
um grande Portugal,
das
brumas da memória
dormentes
na noite funda,
quente
e húmida de Moçambique.
O
mergulho na ruidosa e velhaca ideologia.
O
menino tem frio.
Aquece-o
uma roda de fogo
que
o destina a flamejante pirotecnia
sobre
as cabeças da gente.
Em
Lisboa, quase clandestino,
fez
a vontade à mãe
e
ficou.
Nos
olhos do Povo,
em
despique com a gramática,
como
um espelho,
Eusébio
e Benfica
seriam
palavra fundida,
uma
parelha amorosa
que
a semântica teme
e
desdenha
na
angústia dos 90 minutos
que
dura a vida
- e a eternidade.
- e a eternidade.
Golo
após golo,
com
dignidade inigualável,
disparado
o sonho da multidão
na
ponta das chuteiras,
ousou
sonhar também, sempre.
Que
poeta portentoso dos relvados
vestiu
a pele dos anónimos,
ébrios
desgraçados,
e
os fez grandes e felizes,
estraçalhando
a pontapé
o
espelho que une e separa
a
razão do coração
num
segundo fraccionado
pela
parábola do seu drible.
Golo!
Goolo! Gooolo!
Havia
golos, orgasmos com asas,
silenciando
o samba
por
um fado negro de relâmpago;
havia
abraços a adversários batidos
e
lágrimas de brio
em
homenagem à condição humana
no
rosto da derrota.
Arrepiante,
viu cair reis a seus pés.
Puskás,
Gento, Kocsis, Crizbor, Pelé,
o
semi-deus Di Stéfano
soçobraram
ante o menino
que
bailava para eles
sem
oponentes nem inimigos,
com
uma camisola por troféu.
Guardião
de todos os símbolos,
foi
estátua em vida;
metro
de todas as medidas
no
rectângulo de jogo,
curto
para uma pantera
a
transpirar savana.
Em
recta, elipse, meia-lua,
escrito
em constelações,
reinventa
a velocidade,
o
ritmo, a intensidade, a direcção.
Potência,
explosão!
Uma
lança no mundo,
rematado
em jeito.
Arqueado,
oscilam músculos,
ossos,
tendões,
reconstituindo
com minúcia
e
impacto a ordem das coisas,
o
Universo.
Santo
rotundo de bronze
com
honras de Panteão,
de
todos um no onze contra onze,
homem
todo coração,
em
movimento feérico, bailado,
de
torsos e pés enlaçados.
No
final, corpo triunfante, deitado
como
todos os homens,
sujeitos
da gravidade,
e
no Lumiar repousou sob chuva torrencial.
Alguns
lhe ofereceram asas e flores de múltiplas cores.
Rubras,
alvas, negras,
asas
de fogo engomadas pela fantasia
e
fecundas de imaginação,
da
matéria densa dos sonhos
levados
às suas costas.
Protagonista
improvável de narrativa imperial,
Eusébio
indizível, incorporado, inexprimível
-
que “as lendas não têm ponto final” -,
é
outra forma de dizer Benfica.
E
por obras valorosas, incríveis,
Eusébio
foi da lei da morte libertado
num
domingo chuvoso, dia de reis.
Eusébio da Silva Ferreira
N.B. - Dedicado a Eusébio da Silva Ferreira, este poema foi escrito quase integralmente e na sua forma definitiva entre o dia do falecimento de Eusébio (5 de Janeiro de 2014), num domingo chuvoso, dia de reis, e o dia do seu funeral, a que compareci sob chuva torrencial. Não senti, no entanto, que o havia completado, e guardei-o. Entretanto, mudei de computador, mudei de casa... O poema ficou num Word esquecido até que foi recuperado de um disco rígido e de mim para mim recordado há cerca de um mês. Já não me lembrava da sua existência. O último quarto do poema foi escrito recentemente, numa qualquer noite deste mês. Agradeço ao Mestre António Simões, autor do livro "Eusébio como Nunca se Viu", pela amizade, pelo apoio, pelo olho crítico e pelas tão pertinentes sugestões após a leitura prévia do poema. Por fim, aquele abraço, o da Vitória, ao meu querido Irmão ilegítimo Gustavo Silva, com quem partilho o idealismo dos elevados princípios do puro benfiquismo e dessa memória pueril de dia de jogo, já que não o posso fazer com o meu pai.
Etiquetas: Benfica, Dos Futebóis, Eusébio, Poesia Cordiana, SLB
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