domingo, março 11, 2018

Domingo Chuvoso, Dia de Reis

Deus, Pátria, Família;
Fado, Futebol, Fátima.
Acima da neblina
que esconde a deidade,
eis o proto-mito,
simples, humilde, porte negro
da altíssima nobreza da Mafalala
- pé descalço, bolas de trapos
chutadas pó adentro,
levitantes nas asas de anjos
feitos da terra vermelha dos heróis.
Daquém e dalém,
antípoda dos clichés.

Sonhada Mãe África
que da argila brota pérolas,
rapazes serenos de olhos atentos,
reluzentes, contendo o brilho de estrelas
e as próprias estrelas.
Pernas de Hércules,
destrezas de Ulisses,
pés com astúcias de mãos,
um joelho de Aquiles.

De Lourenço Marques colonial
renascia um grande Portugal,
das brumas da memória
dormentes na noite funda,
quente e húmida de Moçambique.

O mergulho na ruidosa e velhaca ideologia.
O menino tem frio.
Aquece-o uma roda de fogo
que o destina a flamejante pirotecnia
sobre as cabeças da gente.
Em Lisboa, quase clandestino,
fez a vontade à mãe
e ficou.

Nos olhos do Povo,
em despique com a gramática,
como um espelho,
Eusébio e Benfica
seriam palavra fundida,
uma parelha amorosa
que a semântica teme
e desdenha
na angústia dos 90 minutos
que dura a vida 
- e a eternidade.

Golo após golo,
com dignidade inigualável,
disparado o sonho da multidão
na ponta das chuteiras,
ousou sonhar também, sempre.
Que poeta portentoso dos relvados
vestiu a pele dos anónimos,
ébrios desgraçados,
e os fez grandes e felizes,
estraçalhando a pontapé
o espelho que une e separa
a razão do coração
num segundo fraccionado
pela parábola do seu drible.

Golo! Goolo! Gooolo!

Havia golos, orgasmos com asas,
silenciando o samba
por um fado negro de relâmpago;
havia abraços a adversários batidos
e lágrimas de brio
em homenagem à condição humana
no rosto da derrota.

Arrepiante, viu cair reis a seus pés.
Puskás, Gento, Kocsis, Crizbor, Pelé,
o semi-deus Di Stéfano
soçobraram ante o menino
que bailava para eles
sem oponentes nem inimigos,
com uma camisola por troféu.

Guardião de todos os símbolos,
foi estátua em vida;
metro de todas as medidas
no rectângulo de jogo,
curto para uma pantera
a transpirar savana.

Em recta, elipse, meia-lua,
escrito em constelações,
reinventa a velocidade,
o ritmo, a intensidade, a direcção.
Potência, explosão!
Uma lança no mundo,
rematado em jeito.

Arqueado, oscilam músculos,
ossos, tendões,
reconstituindo com minúcia
e impacto a ordem das coisas,
o Universo.

Santo rotundo de bronze
com honras de Panteão,
de todos um no onze contra onze,
homem todo coração,
em movimento feérico, bailado,
de torsos e pés enlaçados.

No final, corpo triunfante, deitado
como todos os homens,
sujeitos da gravidade,
e no Lumiar repousou sob chuva torrencial.
Alguns lhe ofereceram asas e flores de múltiplas cores.
Rubras, alvas, negras,
asas de fogo engomadas pela fantasia
e fecundas de imaginação,
da matéria densa dos sonhos
levados às suas costas.

Protagonista improvável de narrativa imperial,
Eusébio indizível, incorporado, inexprimível
- que “as lendas não têm ponto final” -,
é outra forma de dizer Benfica.

E por obras valorosas, incríveis,
Eusébio foi da lei da morte libertado
num domingo chuvoso, dia de reis.

Eusébio da Silva Ferreira

N.B. - Dedicado a Eusébio da Silva Ferreira, este poema foi escrito quase integralmente e na sua forma definitiva entre o dia do falecimento de Eusébio (5 de Janeiro de 2014), num domingo chuvoso, dia de reis, e o dia do seu funeral, a que compareci sob chuva torrencial. Não senti, no entanto, que o havia completado, e guardei-o. Entretanto, mudei de computador, mudei de casa... O poema ficou num Word esquecido até que foi recuperado de um disco rígido e de mim para mim recordado há cerca de um mês. Já não me lembrava da sua existência. O último quarto do poema foi escrito recentemente, numa qualquer noite deste mês. Agradeço ao Mestre António Simões, autor do livro "Eusébio como Nunca se Viu", pela amizade, pelo apoio, pelo olho crítico e pelas tão pertinentes sugestões após a leitura prévia do poema. Por fim, aquele abraço, o da Vitória, ao meu querido Irmão ilegítimo Gustavo Silva, com quem partilho o idealismo dos elevados princípios do puro benfiquismo e dessa memória pueril de dia de jogo, já que não o posso fazer com o meu pai. 

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1 Comments:

Blogger Davi Reis said...

https://www.facebook.com/oficial.eusebio/posts/466761080406198

quarta-feira, março 21, 2018 5:18:00 da tarde  

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