segunda-feira, junho 27, 2005

Anamnésias 1

Imagem Memorial - Penalti decisivo do Rui Costa contra o Brasil, na Luz, em 1991

Sob a noite estrelada, aparentemente serena, refulgia de som, luz e cor o monumental estádio, agora defunto, catedral de religiões pagãs e eternamente primitivas. Sobrelotado, perto de 140 mil pessoas ansiosas e unidas por um espírito de comunhão patriótico, solidariedade apaixonada pouco razoável e de todo racional, se acondicionaram no espaço destinado e previsto para 120 mil. Gente de pé, gente que se amparava, alguns sentados ao colo dos outros, muitos de mãos dadas, gente pendurada nas escadas de acesso às bancadas, fazendo lembrar símios acrobáticos e ágeis, esperavam o momento decisivo do penalti de Rui Costa. Uma gota seria o necessário para fazer transbordar o estádio. Rui Costa ajeita os calções, puxa a meia do seu pé direito, cospe para o chão e avança para a bola. O estádio exultou, o resto é história. Portugal era campeão do mundo de juniores.
n.b. - Fui ver o jogo com o meu pai. Tinha, penso eu, 12 anos. Chegámos a cerca de 30 minutos do pontapé de saída, por hora do aquecimento de ambas as equipas, ou seja, demasiado tarde para a maior e irrepetível enchente de sempre num jogo de futebol em Portugal. Contra todas as normas de segurança estipuladas pela FIFA, e à boa maneira portuguesa, entraram amigos, filhos e enteados; uns sem bilhete, outros com, e outros ainda com bilhetes falsos. Naquele que era o maior estádio da Europa, com capacidade para 120 mil espectadores, apinharam-se perto de 140 mil pessoas para ver a final lusófona de juniores entre Portugal e Brasil. Todo o espaço vazio respirava por entre gotículas de suor dissolvidas em corpos outros, coados, fundidos, matizados. Com os meus 12 anos era, naturalmente, de pequena estatura e, à hora a que chegámos, não havia lugar para nós os dois a não ser nos corredores secundários de acesso às bancadas, de onde não se vê o relvado. O meu pai ainda conseguia espreitar, do alto do seu metro e oitenta e um. Eu não teria qualquer hipótese de vislumbre. Preocupado, o meu pai perguntou-me se eu quereria voltar para casa e ver o jogo na televisão. Claro que não queria mas, dadas as circunstâncias, ponderei e acedi. Pelo menos via o jogo. Saímos o mais rapidamente possível, na tentativa de acompanhar os 90 minutos na íntegra pela tv. Quando chegámos ao local onde havíamos deixado o carro, a frustração total e maior da minha curta vida até então: estávamos bloqueados. Não havia saída possível. Dezenas de carros em redor do nosso, em asfixia homóloga àquela dentro do estádio. Resumindo e concluindo, estivemos os 90 minutos, mais os 30 de prolongamento e os restantes, de marcação de grandes penalidades, dentro do carro, junto ao estádio, a ouvir o relato na rádio. Não me poderei esquecer nunca daquela sensação. Não esquecerei o momento de silêncio que precedeu o penalti derradeiro do Rui Costa, e o estrondoso estampido que se seguiu. Não vimos nada. Ouvimos tudo. Foi a primeira de duas vezes que chorei baba e ranho com a bola. Deitei a cabeça no colo do meu pai e ali fiquei, em silêncio, a chorar de emoção e frustração. Mixed feelings. Iluminados pelos holofotes da antiga catedral da Luz, e tendo como pano de fundo sonoro os festejos dentro do estádio, ali ficámos sem dizer uma palavra, à espera que os nossos compatriotas viessem buscar os seus carros e nos deixassem sair dali para fora. Acho que só no dia seguinte consegui ver o resumo do jogo.

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4 Comments:

Blogger Kaiser said...

Vi esse jogo no meu quarto, acompanhado pelo Trigo. Grande vitória!

segunda-feira, junho 27, 2005 3:31:00 da tarde  
Blogger Davi Reis said...

Kaiser, aproveito a tua deixa para mandar aquele abraço ao Trigo, o meu Ary dos Santos. Foi com ele que fiz a primeira música em português. Eram dele os dois primeiros versos. E foi em tua casa, na Parede, que tudo aconteceu. Foi também a minha primeira bebedeira. Lembras-te?

segunda-feira, junho 27, 2005 9:36:00 da tarde  
Blogger Kaiser said...

E Eu poderia esquecer o dia em que também nasceu o "Devil", que depois foi plagiado pelos Pearl Jam?

terça-feira, junho 28, 2005 12:29:00 da tarde  
Blogger Davi Reis said...

Acho que é por estas e por outras que vale mesmo a pena ter um blog.

Aquele abraço

terça-feira, junho 28, 2005 7:44:00 da tarde  

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