terça-feira, abril 19, 2011

Voluntariado há dez quilos atrás na revista Transformar

A imagem captura o excerto de um artigo mais vasto sobre o Voluntariado, no seu ano, escrito pelo Rui Almeida para a 44.ª edição da Transformar - a revista dos associados e amigos do Fórum Abel Varzim. Uma figura particularmente próxima recordou levemente por entre aquelas páginas a sua experiência indelével na Guiné-Bissau há 10 quilos atrás.

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sexta-feira, janeiro 27, 2006

Anamnésias 10 - Tchuba na Tchubi Tchiu

Deslumbre. O céu deixou-se chorar e tomei banho à chuva - gel de banho e shampoo na Avenida principal. E os abutres - djugudé -, deviam dormir lá para os lados do porto, escondidos nalgum casebre ou contentor, mas seguramente na zona fluvial. Bissau abluída, de alegria, apesar de sombria, pé-de-vento, tempo triste, uva seca a duas estações. No coração da capital, gel de banho e shampoo, noite feita e alta, do tamanho de um sorriso de prata e de uma dádiva concreta. Bissau inocente, susceptível, exposta, abriga-se como pode e perdoa. Lembrei-me de quem deixei, de quem amo, admiro, de Lisboa... Bissau sucumbia e prostrava-se a um Iran sem filosofia que castiga sem perdão, ilícito. O Iran, maior que todos os homens, temível, não ouviria uma oração, empedernido. Como num curto Natal sem prendas, as gentes reservavam-se em casa durante as monções e as chuvas. Nós, embriagados, na Avenida principal da capital, sinceros, desobstruídos, livres, sem disfarces, tomámos, entre naturais, um banho ridículo de chuva, realidade e alegria sob a chuva que chove muito.
A Jorge Longa, Nelo Varela e Mário.

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segunda-feira, setembro 05, 2005

Anamnésias 9

O pássaro falou do cimo da árvore, no jardim. A relva acolhe o pato, que se cobre de asas e penas. A manhã rompeu. Falámos uma madrugada e rendemo-nos ao queimar do céu. Na estação, à espera do comboio, aceito a punhalada em mim próprio. Vejo que o meu sangue jorrado agora é o mesmo sangue que tu já cuspiste fora. Como nos poderemos amar?, se foste a única estrela, que até já foi estrela do mar... Somos a página mais clara do livro um do outro. Eu sou a coroa; tu a cara, e sei que outra não encontro. Queria ser forte como um touro e trazer-te no meu dorso, desfazendo o desencontro, mutilando o remorso. Jamais será esquecido o teu mais belo gesto, o teu beijo sentido, tua bondade ao manifesto. Jamais será esquecido o nosso travo adolescente, a descoberta de todos os mapas nos nossos corpos a quente. Pois só com a memória fico, só com o desgosto resto. E o pássaro fala-me, do cimo da árvore; o pato recolhe-se, na relva, no manto das suas asas.

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quarta-feira, agosto 17, 2005

Anamnésias 8

Como se um vaso grego - espécie de cânfora - se entrevisse, se recortasse por entre as duas silhuetas que pareciam prestes a beijar-se, um outro cenário se afigurava real. Duas cabeças posavam estáticas num frente a frente desafiante, esperando o flash da máquina fotográfica. Dos seus olhos, quase se podiam ver farpas de ódio disparado e de rancor por consumar em golpes violentos dentro do ringue. A sala, repleta de suores embrulhados em perfume, chapéus desabados e lantejoulas, estava em polvorosa para a sessão fotográfica de propaganda do grande embate - “o combate do século”, ler-se-ia nos cartazes sobre a fotografia dos dois pugilistas. As cabeças, similares na majestosa forma craniana, sem pêlo que as cobrisse, assentavam directamente sobre os ombros, fazendo esquecer os pescoços, ocultados pela massa muscular dos troncos. Os homens eram negros. De perfil, os narizes achatados revelavam-se por defeito profissional. As frontes protuberantes ganhavam um efeito dramático adicional pelo franzir das sobrancelhas. Parecia não haver medo nos olhares, apenas raiva gratuita. Talvez o medo se condensasse na pressão exercida pelos maxilares inferiores. As bocas, cerradas. Um beijo de Judas.

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sábado, agosto 13, 2005

Anamnésias 7

Premi o botão. Debaixo da gordura e de uma camada escura de sujidade se entrevia o relevo de uma seta ascendente que indicava a subida. Chamara o elevador haviam 11 segundos. No hall da cave que me apeava, o ar rarefeito, rico em monóxido de carbono, carregava a atmosfera. Nisto, abrem-se as portas. A limpeza antiséptica, desinfecta, do interior do elevador, contrastava com a cinzentez poluta das paredes onde, embutidas, as portas automáticas performam a sua mecânica labuta. No interior do elevador, um jogo de espelhos deliciosamente paradoxal reflectia a minha imagem sonolenta, prolongada longinquamente, fazendo quebrar o espaço e o tempo, fazendo-me pensar que, para lá daquele momento, para lá daquele lugar, muitos outros se propagam e se sustentam. Foram 5 segundos pré-programados de limbo levitante até que as portas se fecharam novamente, comigo do lado de fora. Sem ar puro nem luz, perdera a lucidez irreflexiva do automático. Perdera a oportunidade luminosa e fresca da superfície.

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segunda-feira, agosto 08, 2005

Anamnésias 6

... e aos meus olhos, imagens fugazes das correrias, abraços e encontrões explodindo em gargalhadas nos transportes públicos. Eu e a forçosa cidade, exalando odores cinzentos que embaciam as fachadas e enegrecem a abóbada azul dos céus. Perfumes que me viciam, onde confluem interesses mundanos, e o sangue que me inunda o coração. Lisboa, cidade melodiosa de encantos ancestrais, vai perdendo a sua virgindade, levada sem carrego pela máquina invisível dos compromissos inadiáveis, dos relógios que ditam a lei do trabalho. Do desassossego, vidrado como fotografia na minha retina, amparo os cotovelos resignados na ombreira da janela, que é a minha.
n.b. - Numa frequência de Literatura Portuguesa, creio que no ano de 1999, a professora Maria Cavaco Silva lançava, no grupo II do exame, a seguinte questão: 1) Escreva um pequeno texto sobre Lisboa, à maneira de Cesário Verde.
Confesso ainda hoje ter de lê-lo com mais dedicação.

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terça-feira, agosto 02, 2005

Anamnésias 5 - Continuação

Jim, Sofia e a insustentável leveza do ser, Parte 2

A tensão que os aproximava na exiguidade sufocante do elevador, tão sedutora e impossível, tornava os corpos complementares de saciedade; opostos que se atraem inevitavelmente, sem agravo da razão. Jim agarrou na coxa de Sofia e levantou-a à altura da cintura, para que ela pudesse sentir a sua excitação. Quando a mão de Jim, percorrendo as pernas de Sofia, lhe puxou as cuecas, o elevador entra em movimento. Sofia caiu em desequilíbrio. Inesperadamente, haviam estacado no piso de cima. Sofia, no chão do elevador, de cuecas pelos joelhos, vê a expressão incrédula e envergonhada de Jim. Este, com os olhos postos no rosto perplexo do vizinho do andar de cima, que via apenas Jim pela janela da porta do elevador, nu da cintura para baixo e ainda em estado de majestuosidade indecorosa não constrangida, tem tempo apenas para soltar um desesperado “Não abra!”.

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sexta-feira, julho 29, 2005

Anamnésias 4

Jim, Sofia e a insustentável leveza do ser, Parte 1
Jim e Sofia, dois jovens namorados adolescentes, descobriam os segredos do corpo no corpo do outro. Ensinaram-se a amar. Eram longas as horas passadas em casa de Jim, aproveitando a ausência dos pais, que trabalhavam todo o dia, fruindo minuto a minuto de amor novo e sedento. Haviam experimentado juntos todas as formas de amar que a imaginação e as divisões da casa de Jim permitiam. O sofá e a cama deixavam de ser alternativas na expectativa dos sentidos, como se num mundo só deles procurassem novas impressões sem vergonha nem pudismo. Bastava estarem juntos para que a demanda das sensações se sobrepusesse ao preconceito e à razoabilidade castradora da moral instituída. Poder-se-ia dizer que viviam em pecado. Dizia Sofia a Jim, por entre beijos esfaimados:
- Vamos experimentar noutro sítio, um sítio diferente.
- Mas... Sofia, só falta a dispensa, e não me parece que...
- Não, um sítio diferente... perigoso... – os olhos de Jim brilharam, acompanhando um ligeiro sorriso leonardesco no canto da boca.
- O elevador! Vamos para o elevador!
Jim disse o que Sofia queria ouvir mas não dizer, ao jeito tipicamente feminino. A resposta de Sofia foi um salto repentino dos pés da cama de Jim, onde se encontrava, dirigindo-se ao hall de entrada, reluzindo um sorriso convidativo, por segundos inocente. Daí ao elevador, foi um ápice.

(Não perca o segundo e último episódio desta verdadeiramente curta e verde very short story - To be continued on Anamnésias 5)

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quarta-feira, julho 27, 2005

Anamnésias 3

Eis o deserto. Areia tão fina que parece pó. Uma volúpia asceta, eremita e poética se apodera de mim, pequeno como nunca me havia sentido. O céu em tons de laranja. Eis o crepúsculo dos deuses esquecidos. Tenho os pés enterrados na areia intensamente quente, como que pulsando do seu imo um sol que acaso se deita no horizonte. A fina areia, quase branca, como pó se instalou nas minhas vestes, no meu cabelo, nos meus olhos. Com o reflexo do sol, torna-se dourada, e as sombras de pirâmides delirantes, esculpidas pelo vento, conferem-lhe dois tons de castanho. Diante de mim, um mar de areia, ondulações de dunas sem cabo de tormento, qual mar verdadeiro, mais só que o primeiro, sem lua que prateie seu movimento. Sou rei lagarto e águia rapinante nos céus da cúpula visceral das paredes de mim dentro. Sou encantador de serpentes que dançam seduzindo o sedutor, e o feitiço torna ao feiticeiro. Sou dentro e fora por inteiro sem, no deserto desabrigado, saber quem sou eu cá dentro embriagado, além dos poros, dos suores e das entranhas, o verdadeiro. Eis o deserto inconformado de mim dentro cá fora, a mensagem na botelha por defeito escrita, esteiro, estendendo-se pela terra dentro, de rio ou mar braço estreito.

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quinta-feira, junho 30, 2005

Anamnésias 2

Lisboa. Cais das Colunas.
No instante em que a trajectória do velho cacilheiro alinhara o triunfante e augusto arco na protegida retaguarda da estátua de D. José I - qual Gulliver entre Lilliputianos -, sobre o rei se pôde ler: “Virtutibus Maiorum”. Vi a azáfama desvirtuada dos pequenos e mortais seres que aos pés de reis se prostraram e que a cidade edificam. Penetram e coloram-na, tal como a luz única que banha e preenche o amontoado de casas, estendido até não mais se ver; até, altaneiro, à minha direita, ao Castelo de S. Jorge, bastião dos resistentes. Ruínas do Carmo, quase vos vejo despontar à minha esquerda. Está frio e um cheiro desagradável é exalado da margem do rio. O movimento das águas embala a perspectiva desconcertante do estrépito ainda próximo dos veículos terrestres; uma acalmia inquietante, de onde estou, pelo que vejo, em mim se instala.

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segunda-feira, junho 27, 2005

Anamnésias 1

Imagem Memorial - Penalti decisivo do Rui Costa contra o Brasil, na Luz, em 1991

Sob a noite estrelada, aparentemente serena, refulgia de som, luz e cor o monumental estádio, agora defunto, catedral de religiões pagãs e eternamente primitivas. Sobrelotado, perto de 140 mil pessoas ansiosas e unidas por um espírito de comunhão patriótico, solidariedade apaixonada pouco razoável e de todo racional, se acondicionaram no espaço destinado e previsto para 120 mil. Gente de pé, gente que se amparava, alguns sentados ao colo dos outros, muitos de mãos dadas, gente pendurada nas escadas de acesso às bancadas, fazendo lembrar símios acrobáticos e ágeis, esperavam o momento decisivo do penalti de Rui Costa. Uma gota seria o necessário para fazer transbordar o estádio. Rui Costa ajeita os calções, puxa a meia do seu pé direito, cospe para o chão e avança para a bola. O estádio exultou, o resto é história. Portugal era campeão do mundo de juniores.
n.b. - Fui ver o jogo com o meu pai. Tinha, penso eu, 12 anos. Chegámos a cerca de 30 minutos do pontapé de saída, por hora do aquecimento de ambas as equipas, ou seja, demasiado tarde para a maior e irrepetível enchente de sempre num jogo de futebol em Portugal. Contra todas as normas de segurança estipuladas pela FIFA, e à boa maneira portuguesa, entraram amigos, filhos e enteados; uns sem bilhete, outros com, e outros ainda com bilhetes falsos. Naquele que era o maior estádio da Europa, com capacidade para 120 mil espectadores, apinharam-se perto de 140 mil pessoas para ver a final lusófona de juniores entre Portugal e Brasil. Todo o espaço vazio respirava por entre gotículas de suor dissolvidas em corpos outros, coados, fundidos, matizados. Com os meus 12 anos era, naturalmente, de pequena estatura e, à hora a que chegámos, não havia lugar para nós os dois a não ser nos corredores secundários de acesso às bancadas, de onde não se vê o relvado. O meu pai ainda conseguia espreitar, do alto do seu metro e oitenta e um. Eu não teria qualquer hipótese de vislumbre. Preocupado, o meu pai perguntou-me se eu quereria voltar para casa e ver o jogo na televisão. Claro que não queria mas, dadas as circunstâncias, ponderei e acedi. Pelo menos via o jogo. Saímos o mais rapidamente possível, na tentativa de acompanhar os 90 minutos na íntegra pela tv. Quando chegámos ao local onde havíamos deixado o carro, a frustração total e maior da minha curta vida até então: estávamos bloqueados. Não havia saída possível. Dezenas de carros em redor do nosso, em asfixia homóloga àquela dentro do estádio. Resumindo e concluindo, estivemos os 90 minutos, mais os 30 de prolongamento e os restantes, de marcação de grandes penalidades, dentro do carro, junto ao estádio, a ouvir o relato na rádio. Não me poderei esquecer nunca daquela sensação. Não esquecerei o momento de silêncio que precedeu o penalti derradeiro do Rui Costa, e o estrondoso estampido que se seguiu. Não vimos nada. Ouvimos tudo. Foi a primeira de duas vezes que chorei baba e ranho com a bola. Deitei a cabeça no colo do meu pai e ali fiquei, em silêncio, a chorar de emoção e frustração. Mixed feelings. Iluminados pelos holofotes da antiga catedral da Luz, e tendo como pano de fundo sonoro os festejos dentro do estádio, ali ficámos sem dizer uma palavra, à espera que os nossos compatriotas viessem buscar os seus carros e nos deixassem sair dali para fora. Acho que só no dia seguinte consegui ver o resumo do jogo.

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