domingo, setembro 04, 2005

Estórias 3

Caminhámos dias e noites áridas e sufocantes, resistindo à ablepsia de fé que nos tentava. Sabíamos ser rumo Sueste o caminho para longe da inumação incógnita, do esquecimento abnegado no deserto entre El Alamein e os poços de Chebin el Kom. Sedentos, possivelmente tão longínquos da tecnocrática e frívola Europa quanto de coqueiros e palmeiras, oásis refrescantes e outras miragens impossíveis, arrepiávamos caminho por sobre os vértices das dunas, não parando sequer para inspirar o ar morno, ganhando tempo ao tempo que não existe nem resta, e ao espaço, sorvido pelo Espaço, pé ante pé, passos curtos em crescendo extenuado e delirante.
Caía a noite e, no horizonte, a mesma paisagem de há dias de caminhada sobrevivente. À excepção de víboras e escorpiões abespinhados, nem sinais de vida havíamos notado, que o deserto já se ocupara de apagar tais vestígios, engolindo-os.
Preparámo-nos para a tempestade de areia nessa noite, aliás, como em todas as noites. Sahib e eu abraçámo-nos sob uma manta berbere, nosso haver mais precioso - mais ainda que os vinte centilitros de água restantes no cantil. O crepúsculo tinha uma coloração purpúrea, diferente dos outros fins de tarde. A abóbada dos céus parecia fechar-se sobre nós, afectada, constrangida, impiedosa. Um vale de terra fina como pó assobiava uma melodia ondulante e alucinada, num cântico que trazia consigo o rodopio ascético das vozes, das cítaras e dos tambores berberes. Algo no uivo da noite ignota, como um aviso, se manifestava e sobrepunha à preocupação imediata pela desidratação e fraqueza em que estávamos, fincando o solo volátil onde, deitados, em contemplação esquecida, nos entregávamos ao que viesse. Sobre as nossas cabeças pairavam constelações e mitos incontáveis. O zéfiro da tarde se havia transformado em tempestade. As forças que me restavam, empreendia-as em manter Sahib coberto, que abdicara da luta e devaneava algo relacionado com uma mulher que conhecera em Al Moghrab. Sem esquecer o propósito da viagem, confessei-o apenas a Andrómeda, sussurrando sem saber, aninhado no seu ventre terrestre movediço.
n.b. - Graças a Nuno Júdice e ao Professor Luís Carmelo escrevi há algum tempo esta estória descritiva com base na leitura do capítulo V da novela "O tesouro da Rainha de Sabá", do primeiro dos escritores enunciados. Hoje publico o textinho... por estar próximo do ventre nuclear e hipnótico do chão.

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

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sábado, julho 22, 2006 6:28:00 da tarde  

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