sábado, abril 15, 2006

Será Bin Laden o actor mais bem pago de Hollywood?

O texto abaixo publicado, da autoria conjunta de Davi Reis e Saulo Mendes, foi escrito dias após o atentado terrorista de 11 de Março de 2004. Era necessária a entrega de um artigo de opinião sobre tema à nossa escolha, para publicação imediata num jornal regional, na semana em que se deu a tragédia em Madrid. Pusemos de parte as ideias iniciais e seguimos o instinto catártico do choque, aqui tão perto. Assim foi. Dada a extensão do texto, o editor do respectivo jornal optou por parti-lo em dois, tendo sido a primeira parte publicada a 27 de Março de 2004, e a segunda a 15 de Maio do mesmo ano.
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Ainda a propósito do atentado de 11 de Março, inferindo por intuição e bom senso de quem também é povo, rebusca-se a ideia e regista-se o receio e o medo na raíz da esclarecida manifestação impetuosa, desconfiada mas sóbria, de soberania popular, que, nas recentes eleições, em Espanha, resultou na deslocação do eleitorado para a esquerda política. Apesar de haver quem apenas apelide a atitude do PP, partido então em exercício no governo espanhol, de “excessivamente zelosa” quanto à insinuação da mentira ou à declaração de verdades desviantes, apenas verosímeis e nunca verdadeiras, subsistirá também, numa perspectiva social, a ideia de que nada disto teria acontecido com um governo mais comprometido com a linhagem da velha europa da França e da Alemanha. Pois bem, torna-se óbvio, pelo menos aos olhos de quem tenha uma vida dita “normal”; quem, por exemplo, frequente transportes públicos, que o 11 de Setembro é mais uma epidemia política que vem do lado de lá do Atlântico. Zapatero, actual Primeiro-Ministro espanhol e líder do PSOE, afirmou peremptoriamente, na sequência imediata da sua vitória, pretender retirar as tropas do Iraque e modificar a natureza da sua relação com os EUA. A realpolitik americana é uma árvore muito frondosa que já há muito dá frutos azedos que caem, amiúde, em quintal alheio. Sucedem-se a perder de vista os erros estratégicos, os mistérios, os embustes, e, muito grave, a manipulação mediática. Certo é que, com a tecnologia que possuem, os gatekeepers ao serviço do império do dólar não usam lápis azul. Pois bem, chegou a pior das censuras: a do excesso de nada; do emaranhado em que emissores parciais lançam uma informação imperfeita e circular, redundante, muitas vezes a mesma, e sem qualquer fundamento que a contextualize, integre ou explique. É o caso dos noticiários mas também dos boletins propagandistas. Nietzsche diria certa vez que os tratados internacionais eram escritos de modo a que ninguém os compreendesse mesmo... Temos, portanto, cada vez mais mensagens unívocas, mais iguais. Infelizmente, temos também receptores cada vez mais passivos, adormecidos, anestesiados. Mas o fenómeno do decréscimo qualitativo do jornalismo manifesta-se à escala mundial. São, no entanto, novamente os EUA a única hiper-potência mundial, sem país que se lhe equipare em poder bélico, económico, produtivo ou tecnológico, que detém o monopólio informativo, mediático. Enumeram-se, por exemplo, a Internet (e a insegurança provocada pela sua insuficiência normativa e pelo espiolhar informático da vida privada); numerosos canais de tv que emitem mundialmente (em particular, noticiosos), ou o cinema (mais de 70% da produção cinematográfica mundial), como produtos beneméritos do tio Sam.
Ora bem, o americano é sempre o herói. E por vezes até o é. Imagine-se o que pensará um talibã diante de uma tela de linho, seguindo as peripécias de John Rambo. Mas rechaçando a ideia de que este é um discurso anti-americano, em democracia, nunca tanto como agora as aparências encobriram a realidade. Devemos estar alerta para os fenómenos onde se manifesta uma crescente centralização na esfera dos dispositivos comunicacionais e seus agentes, bem como para os conteúdos que são veiculados, as formas de transmissão da mensagem ou os objectivos por detrás dos seus níveis de eficácia. Estamos claramente perante credos totalitários, mesmo que a mensagem visível e explícita possa ser assumidamente antitotalitária.
Confiar em quem? Em quê? Numa democracia por imposição? Os EUA, ao invadirem o Iraque, recorreram a uma justificação falsa por não poderem usar a verdadeira. George Bush e Tony Blair não nos ludibriaram pela tv em comunicados devido a informação ilusória veiculada pelos seus serviços secretos. A invasão era, por certo, um objectivo estratégico premeditado. A ONU e a NATO apenas adiaram o “evento” por dias e, em pouco tempo, se perfilaram ao lado dos EUA mais de uma centena de países, entre os quais Portugal. A informação - ou boato - que já precedia o atentado de 11 de Setembro, confirmava a existência e a produção de armas de destruição maciça. Para alguns, justificação mais do que suficiente para a consumação de um conflito. Desengane-se o espectador. Ainda não foi desta que viu a “guerra em directo”. Talvez tenha visto uma guerra embedded ao estilo simulado hollywoodesco. Esta capacidade comunicacional sem precedentes, monopolizada e propagandeada, permite a realização de utopias orwellianas indesejadas na base de filosofias ditatoriais, onde não esteja prevista a individualidade do ser humano, com a agravante de a tecnologia se encontrar ao serviço dessa mesma perversão. Só considerando os media enquanto verdadeiros difusores das estruturas dominantes do poder, com a capacidade de gerar efeitos de adaptação nas suas audiências, poderemos sobre eles fazer um juízo ou reflexão sérios.
Portugal, anfitrião da Cimeira dos Açores, passou a fazer parte da lista negra da Al-Qaeda. Será que o “Atlantismo” justifica os riscos a que o país está submetido? A gestão da informação com vista à manipulação da opinião pública tornou-se uma pasta ministerial da maior importância, muitas vezes assumida prazenteiramente pelos próprios chefes de estado. A título de exemplo, recordemos Aznar, que, na tentativa de responsabilizar a ETA pelos atentados de 11 de Março, contactou algumas redacções dos media espanhóis, confirmando o envolvimento dos “etarras” no referido atentado, acto que custou as eleições ao seu partido. A vizinha Espanha não estava, até ao dia das eleições, tal como Portugal, muito longe de uma realidade de suspeição e desconfiança. Uma das promessas eleitorais de Zapatero foi precisamente a remodelação dos cargos hierárquicos da cúpula dos colossos mediáticos espanhóis, em particular as estações de tv, dadas a estreitas ligações com o poder político há oito anos instalado em Madrid. Os media são, hoje, uma formação tentacular gigantesca de um polvo com uma cabeça muito pequenina que, no entanto, lança muita tinta deixando tudo difuso e borrado à sua volta. A estereotipização parece ter vindo para ficar e, adiante-se, esta forma de cultura “promocional” tem consequências profundas sobre a estrutura da personalidade individual.
Já talvez nem nos valha especular acerca das coordenadas do paradeiro de Bin Laden, problematizar o terrorismo de Estado perpetrado por Israel, “resolvendo” mudamente o problema palestiniado, ou voltar a crer na ONU e no direito internacional, diante da altivez prepotente do império do momento. Os EUA estão a desperdiçar todo o seu magnífico potencial no atoleiro do Iraque e em todo um pantanal que, custa a crer, não seja visto como um péssimo negócio para qualquer economista, gestor ou corretor de Dow Jones. Os verdadeiros interessados, aqueles que carregam no botão, e os seus propósitos, nunca são, no Wonderland - espécie de paraíso límbico da “cultura Rato Mickey” -, gente com rosto, que tenha que fugir de paparazzis. É um dado adquirido que, nos dias que correm, a indústria cultural e uma estrutura social cada vez mais hierarquizada e autoritária transformam uma mensagem de obediência irreflexiva em valor determinante. O indivíduo não decide autonomamente - adere acriticamente aos valores impostos. Não é ele o sujeito da indústria cultural, mas o seu objecto. Não nos esqueçamos também de que a indústria cultural tem a sensibilidade artística de uma debulhadora, é uma máquina. Prefere a eficácia do produto, determina assim o consumo, tiranizando-o, e, por fim, exclui tudo o que é novo, uma vez que isso representa para si um risco inútil. A sua tendência reside em canalizar a reacção do público para a mediocridade, a inércia intelectual e a estúpida credulidade. Acontece que, por detrás da máscara do controlo social - suposta macro-função de Estados e media contemporâneos -, os Mass Media confundem a unidireccionalidade do processo comunicativo com um simplismo adaptado à própria actividade. O resultado é uma mediocridade instituída que pressupõe uma cultura massificada e a partilha completa e homogénea de um mesmo mapa cognitivo.
Atingimos por fim a ideia de que a fórmula substitui a forma, o que implica que se encontre um denominador comum: qualidade média para um espectador médio, num sincretismo de plástico, excremento do petróleo. É nesta linha que surgem os tais fait divers, naquela franja do real em que o inesperado, o bizarro, o assassínio, o incidente, a aventura, irrompem na vida quotidiana. Puro esquecimento, manobra diversiva. A tv, dita “novo elo social”, e que surge historicamente em substituição da Igreja, não parece cumprir, na sua profundidade, quer o seu objectivo social, quer o objectivo educativo, "espiritual", digamos. Há que compreender que o crescendo totalitário é, há já muito tempo, um fenómeno moderno desenvolvido e não uma qualquer manifestação arcaizante, e que, por isso mesmo, atribui à tecnologia um papel decisivo no controlo político e policial das massas.
Teorizaram-se novas formas de violência nas sociedades democráticas ocidentais. Essa violência revela-se não só em mecanismos interiorizados de auto-repressão, como no “pesadelo climatizado” do mundo tecnocrático, com o seu controlo abusivo, tornado possível pela computorização, ou pela ditadura de consumo massificado. Temos assim uma “cultura de massa” imanente em que um consumismo depredador assume o papel que a mobilização ideológica teria, por exemplo, no comunismo russo, pressupondo um centro produtor dessa cultura massificada, que reduz e “aliena” os seus receptores ao papel de meros joguetes do mercado, absorvendo-se assim todo o potencial de conflitos da sociedade, em favor dos detentores do poder. Foi assim criada uma noção de equivalência entre a violência e a repressão directas (o perigo fisíco e a total dependência do poder) e uma violência interiorizada e reprimida que explica a alienação, mesmo quando existe abundância material e liberdade política. Estas formulações legitimam críticas de sistema das sociedades democráticas, na base das quais as teorias totalitárias se têm desenvolvido. Tudo isto para dizer que é exactamente a alienação das grandes massas, a "passividade existencial do homem comum”, a sua indiferença à história, que o torna o instrumento e a vítima de totalitarismos.

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5 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Este sim, o melhor texto que já escreveste!

domingo, abril 16, 2006 12:40:00 da tarde  
Blogger RS said...

I am impressed!

[A última foto é poderosa.
"Bombing for Peace is like Fucking for Virginity".]

Um abraço,
RS

domingo, abril 16, 2006 3:09:00 da tarde  
Blogger Davi Reis said...

SM: Não me digas que os leste a todos!

RS: We've got to keep on paying attention...

Abraços

segunda-feira, abril 17, 2006 12:16:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Hmm I love the idea behind this website, very unique.
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quinta-feira, junho 08, 2006 9:59:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Your are Nice. And so is your site! Maybe you need some more pictures. Will return in the near future.
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sábado, julho 22, 2006 6:26:00 da tarde  

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