segunda-feira, novembro 11, 2024

Jane (7 de Dezembro de 2008 - 11 de Novembro de 2024)




Foi ASSIM que a Jane chegou. O nome, pode ler-se no primeiro comentário, foi sugerido pelo Irmão João Trigo. Vivemos quase, quase 16 anos juntos. Não fomos tão felizes como eu gostaria, especialmente ela, nestes últimos três anos de decadência física acelerada e de liberdade reduzida. Culpa inteiramente minha. A Jane partiu esta noite. Esteve imóvel, prostrada, incapaz de se alimentar autonomamente, durante uma semana. Mas libertou-se em paz, serena e sem queixas, no seu tempo.

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quarta-feira, maio 22, 2024

Deus Está na Chuva



Deus está na chuva,
no fumo ondulante do cigarro,
formando sombras espectrais,
rostos de sereias e corpos de amantes,
antílopes que brincam na casa do lago,
sem medo e sem pressa,
onde a morte por desventura
seja apenas mito, promessa.

Severin espera-te lá,
onde não há coincidências,
onde cada bala apanhada com os dentes
seja a ilusão que desmente
a morte imaginada.

São gomos de areia molhada
os pés que pisaste, bem-me-quer desfolhado,
no olhar assustado que me lançaste.
Dizem que bebeste a solidão,
que escorreste a garrafa que repousa
em estilhaços, como tu, no chão.
Bendito esquimó que não conhecia
a Deus, pecado ou religião.

Invento mentiras para contar a Verdade.
Deus está na casa do lago,
nas sombras que se desvanecem,
nos sonhos que nunca adormecem
e na vida que, sem desventura,
após a morte eternamente floresce.

N. do A. – Poema composto a partir da reescrita do poema “Ficção”, redigido em Maio de 2009 e publicado em 2012 no livro “Sétima-Feira”, e da letra de uma velha canção, tirulada “Areias de Júpiter”, que nunca chegou a ser gravada. “Ficção” fora dedicado a Kurt Cobain, em parte inspirado por Velvet Underground.

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Mais que Eternidade

Atravessas a sacra via dos corredores do tempo,
melodia transformada em saudade e cântico.
É preciso cantar-te às pedras que não clamem por nós,
é preciso largar um dilúvio que se estanque na pauta,
esquecida sob o tampo da partitura do silêncio,
ao resgate do milagre, da simplicidade mundana,
da descoberta sagrada e da existência profana.
A vida é sempre a perder, mas a música é eterna.

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sábado, março 23, 2024

Anno XIX - O Jantar (convocatória)

Ao 19.º ano, eis a convocatória tardia para O Jantar, que se realiza este ano a 12 de Abril de 2024, no sítio do costume, evitando o período de férias da Páscoa. Como é sabido, o aniversário comemora-se de 26 para 27 de Março (data do aniversário do blogue), mas vem sendo já hábito concretizá-lo em data posterior, de modo a favorecer a comparência do maior número de confrades cordianos. Tragam um Amigo também.

Confirmação requerida na página do evento no Facebook: https://www.facebook.com/events/1182760943105799/ 

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segunda-feira, março 11, 2024

Feliz Agora (Porra!)

DAQUI



Sucedem-se sombras em cadência rápida
e o verso flui na ponta da escrita automática,
corrente como água sem ter para onde.
Na dança acelerada de dias alados,
de clepsidras arenosas como rios secos
e de consumos vorazes em vitrinas expostos,
a vida, subtil, verte-se entre dedos, sabemos
- palco de ilusões, espetáculo frenético
de música apressada e caos poético.
Desumanizado, excedente, o consumidor
perde a essência do gosto, perde o sabor,
despreza lamentos em caligrafia lenta
e versos que abraçam partidas impossíveis.
Num portal para nenhures um poeta sem choro
rascunha a efemeridade de ilusões adiadas.
Num beco urbano um palhaço plange e soluça.
Conhece uma jovem. Ela dá-lhe um arco-íris.

Ideias brilhantes, verdadeiramente geniais,
trariam fama, fortuna e glória se bem executadas,
mas a perícia sensível do virtuoso está muito desvalorizada
perante a tirania do limiar da pobreza
e do trabalho pela sobrevivência,
e não poderíamos ter todos fama, fortuna e glória.
São precisos inúmeros pobres para fazer um rico
e demasiados amenistas para carregar um líder.
Estupendas são as corrupções políticas,
os escândalos financeiros e o chico-espertismo,
mas não chegam para vomitarmos à mesa diante da televisão.
Afinal, eles são da nossa cepa, são os que se chegam à frente,
oportunistas vaidosos, munidos de bandeirolas, panfletos e bonés.

Passez à-la-caisse! Passez à-la-caisse!

A Pessoa, o poeta, cheirava a tinta fresca de tipografia…
Hossanas a quem conhecer o cheiro de cartazes
recentemente impressos, colados a pincel,
e a quem, dentro de pouco tempo,
souber como se folheia um jornal;
como se conduz um camião TIR;
como se atende um cliente a sorrir.
Os armamentos gloriosamente mortíferos
ainda não acabaram connosco de vez.
Ouvi dizer que somos do interesse de extraterrestres.
Mas tudo é vida fascinante, até nas montras brilhantes
com dons curativos de afeções de alma
e de espíritos voluptuosamente errantes,
ainda sabendo que os astros são os mesmos
que inspiraram os mestres de Da Vinci
e que o Sol é o próprio que tisnou Cleópatra.

Ah, e as vidas complexas da gente que aos andaimes sobe
sem outro fito que não a gente que à braguilha desce.
A indigência moral não assenta aos perdedores,
àqueles que, destroçados, desistiram de competir,
incapazes de depredar, derrotar, conquistar ou subjugar;
incapazes sequer de lutar pelo pão na mesa,
de limpar o suor nas mangas estiradas sobre os pulsos,
no entanto sujas de ranho e resíduos alimentares.
A luz do Sol abafa o silêncio das imitações de vida
de pobres, ricos e remediados, das bocas suturadas,
e havemos todos de morrer sem dar por nada.
Cá preciso de Liberdade para depois de velho ou morto.
A vida é mais custosa do que a vida que temos para dar;
é um recurso tão escasso quanto urgente, antes que morra,
e eu só tenho uma certeza: quero ser feliz agora, porra.

Dedicado a José Mário Branco e Fernando Pessoa

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terça-feira, março 05, 2024

Primado Aristotélico

DAQUI










Se buscas algo que pretendes possuir,
cresce o vazio do que te falta,
és outro.
Pelo que não tens, definhas.
Pelo que não és, renasces
como renascem os dias,
Lua após Lua, Sol após Sol,
reconhecendo a fatalidade do destino,
mas ignorando o itinerário da viagem.
Terás aceitado viver
para seres aceite? 
Terás entregado os pontos
para não seres entregue?
Terás matado a sede
para não seres morto?
Ser ou ter?
Ser ou não ser?
Propósito, identidade, realização.
É tua a conjugação.
O verbo define a narrativa
das biografias, da vida.

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sábado, março 02, 2024

Liberdade É Escrever Poemas

DAQUI
Havia crianças radiantes de sorrisos abertos,
olhos brilhantes e sonhadores, despertos.
Impecavelmente alimentadas e vestidas,
corriam para a vida sem ideias preconcebidas.

Cresciam num mundo livre de ódio e racismo,
fome, desigualdade, desperdício e classismo
- palavras desconhecidas, caídas em desuso,
lembradas na História de tempos obusos.

Nada havia senão paz e harmonia,
auroras de Liberdade e alegria,
Liberdade de pensar e de saber,
Liberdade de viver e de morrer.

Nada havia senão contentamento
conformado com a inevitabilidade
da dor, da perda e do tempo,
da insaciabilidade do Amor e da Liberdade.

Havia alvoradas que rompiam em sinfonia
alinhando a Este a Lua e a estrela d’Alva
num prenúncio solar de infinita sabedoria
que ao dia erudia corpos e almas.

Havia Liberdade com responsabilidade.
Liberdade...

Liberdade de ficar e de partir,
Liberdade de falar e de ouvir,
Liberdade do corpo e da mente,
de um voto verdadeiro e consciente.

Havia Liberdade de trabalhar e de brincar,
Liberdade de ganhar e de perder,
Liberdade de escolher e rejeitar, de sonhar
o que ainda não existia em nenhum lugar.

Havia Liberdade de dar e de partilhar,
Liberdade da servidão e da libertação,
Liberdade de acreditar e de orar,
Liberdade de ser numa canção.

-*-

Acordei aturdido desse sonho lindo,
perguntando-me se conhece a Liberdade
quem por herança lhe viu o poder transmitido
ou quem da prisão se liberta com temeridade.

Aquele que reina de berço e vagueia livre
não vislumbra o êxtase da libertação
do que nasceu acorrentado e vive
asfixiado para cantar a tal canção.

Pudessem os mestres da guerra extrair
de escravos ignorantes o ar dos pulmões;
pudessem eles os seus sonhos destruir
com o fogo de bombas e canhões.

Escondidos atrás de exércitos e muros,
sentados a secretárias opulentas,
ei-los altivos em mansões faraónicas, seguros
e legitimados para todos os crimes e violências.

A impunidade é um incentivo vicioso
que perverte irremediavelmente.
O corrompido ainda cobra à morte o preço
do juro tirano das almas de tanta gente.

O rosto do executor é sempre oculto.

Põe armas nas mãos de crianças,
agita o mundo como a um saco de gatos,
atiça ódios e acalenta vãs esperanças,
inventa doenças; rentabiliza os fármacos.

O rosto do executor é sempre oculto.
A Liberdade não virá do gume do medo.
O opressor permanecerá um vulto
movendo-se nos bastidores em segredo.

Resta-nos andar na contramão,
viver de remar contra a maré,
escrever canções de redenção,
depositar no outro a nossa fé,
passar o amarelo, falar na sala de aula
e provar o gosto de ser livre numa jaula.

Livre do medo da anarquia do destino,
mão firme e fria como a morte ao leme,
cumprindo-me desimpedido e libertino,
desobediente e rebelde, mas solene,
empunho o cravo e o caderno do poeta
que acabou morto na sarjeta.

E um voraz apetite infantil me diz da vida
que a cura para os males da Liberdade
é mais Liberdade ainda.

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quarta-feira, fevereiro 21, 2024

O Teu Tempo É Quando

"The Persistence of Memory", Salvador Dalí, 1931











Esquece-te do futuro!

Não adianta morrer.

A vida é uma ordem.

Aos ombros levas o mundo,

nos olhos guardas o mar

e nada esperas de ninguém.

A angústia define um tempo fundo

que tentas agrilhoar, deter

na pulsação de um poema.

 

Por que força, por que muro

podes o tempo suspender

em placidez suprema?

Nenhuma!, nenhum augúrio,

qualquer hipótese de prever

a negra sombra do dilema.

Tens mais passado que futuro

e sabes: o que estás a ser

é deixares de ser o que és.

 

Tiveste o mundo aos pés

quando nada tinhas

e todas as horas perdidas seriam ganhas

se na jarra da cozinha houvesse flores,

soubesses tu viver incauto,

alheio à voracidade do tempo.

 

Por que fica tarde tão cedo?

A noite é demasiado curta

se o tempo é para sempre.

Mas o tempo não existe, é segredo

guardado à dócil força bruta

na gestação longa de um ventre.

O tempo faz o vinho azedo,

mas também cura e transfigura,

nada perde, tudo transforma.

 

Todo o tempo é tempo de fazer o certo,

seja o tempo invenção da morte.

Não basta ir sendo numa cama morna.

O tempo não fez do longe perto

nem nos repisa à sorte

sobre a face da bigorna.

Anda em silêncio a orar no deserto,

regedor do céu e do inferno,

sob crepúsculos de asas pacientes.

 

Implacável, o tempo é presente

e nem perdoa a quem, num átimo de poesia,

conheceu a eternidade inteira num só dia.

Se o tempo remédio fosse, nenhum mal existiria.

Guerra, fome, a discussão lá na cimeira,

provam apenas que a vida prossegue como sempre.

Os imberbes tomam os velhos por tolos;

os velhos sabem que os imberbes o são.

 

Tempo de depuração.

Já te esqueceste do futuro?

Não adianta morrer.

A vida é uma ordem,

não uma saudade fotografada.

De manhã anoiteces,

pastor da madrugada,

de dia tardas

e de noite ardes pela alvorada.

O teu tempo é quando.

 

Para tudo há um momento,

e tempo para cada coisa sob o céu:

tempo de nascer e tempo de morrer;

tempo de plantar e tempo de colher. 


* A última estrofe, a itálico, traduz um excerto de "Turn! Turn! Turn!", dos Byrds, por sua vez uma canção original de Pete Seeger, cuja letra, excepto o título, repetido como refrão, e os dois versos finais, consiste na reprodução exacta dos primeiros oito versos do terceiro capítulo do livro bíblico de Eclesiastes.

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quarta-feira, fevereiro 14, 2024

A Escolha da Rosa

DAQUI








Ruas inacessíveis, becos sem saída,

incontáveis estradas bifurcadas.

Regressas à casa de partida,

dado a esperanças e encruzilhadas.


Quando as ilusões te salvam, meu menino,

predestinam a revelação dos teus segredos,

tendo a Lua por testemunha, iluminando-te o caminho,

deitando a teus pés, sobre a calçada, todos os medos.


Ali, duas estradas divergiam sob Sol candente

num momento imóvel e arrastado

que da paixão fez pressentimento

e abriu dois sulcos de um mesmo fado.


Não podias seguir por ambos,

mas a Roma dão todos os caminhos,

peregrinação de amantes sozinhos

que ao Amor conduzem desencantos.


Observaste o primeiro trilho:

desaparecia no horizonte,

serpenteante como um rastilho

a espoletar destino adiante.


Olhaste o segundo, vereda montanhosa

de subidas e descidas extenuantes,

e, ao fundo, uma única e serena rosa

decidiu por ti, num dramático instante.


Colhida a rosa, guardada húmida no bolso,

seguiste viagem, subiste e desceste,

caíste e duvidaste, temeste o impulso,

desejaste outro troço que não este.


Deste de beber à rosa pelo caminho,

junto à margem do rio, fio fino

de água entre estradas, traço azulino

que te saciou e levou ao destino.


Não podias esperar pela morte,

nem tua nem da flor

que entregaste à consorte

do teu destinado Amor.

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quinta-feira, fevereiro 08, 2024

Nove Dias por Semana

Sebastião Salgado, Serra Pelada Gold Mine, 1986











Eu sei ter uma faca cravada nas costas.
Incomoda-me a paz com que a carrego.
O pão empurra espinhas de magras postas.
Tenho emprego, apraz-me um prego.

Eu sei que a fome se entala na garganta
e se adormece fundo num colchão.
Sei trabalhar nove dias por semana
por direito escravo à habitação.

Eu sei ter a guerra a bater à porta,
a saudinha ameaçada, risco de extinção,
e sei nada saber do que importa.
Duvidar de tudo é a minha educação.

Guerra, fome, relento, doença, ignorância.
Ouço a ladainha desde a minha infância.
A paz, o pão, habitação, saúde, educação.
Bendito seja quem disso fez uma canção.

A Sérgio Godinho

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segunda-feira, janeiro 29, 2024

Melodias Silentes

Profunda a quietude, palavra de som,
suave, pairando sobre poços de tranquilidade
e sobre o deserto, corpo de vento
e de mares vazios em canyons sem idade,
na furtividade de dias e noites de relento.
Palavra-arte a céu limpo e aberto,
dorme sem tempo, sem chão nem verbo,
e dormem corvos à janela
e cães à minha porta
- nenhum sussurro abafado.
Arde, ruidosa, uma vela,
velando o silêncio entre notas
- o silêncio pontuado
que realmente importa.
Há qualidades incorpóreas
cuja existência, dupla, termina e começa
onde uma começa e outra termina,
à frente e atrás do espelho
- uma entidade gémea que desponta
da matéria e da luz, na solidez da sombra.

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quinta-feira, outubro 19, 2023

Aquela Canção

Caminho sem caminho
até que a música me encontra
numa cegueira marejada
de prantos vulcânicos.
Transbordante, toma sentidos
de sentidos sussurrados
à intocada flor da pele.
Como se visse, intangível,
o som conhece-me melhor assim,
fosse tal coisa possível.
Em inspirada melancolia,
torna a tristeza poesia.

Casa é aqui, agora, na penumbra,
sob um lampião fundido.
O uivo da tempestade
e o gemido das ondas na praia
orquestram memórias primitivas
de um canto adâmico de areia
engasgado no diafragma;
de estrelas amarradas ao céu
e de uma face lunar que entoa,
à volta da fogueira,
canções de magma esquecidas há evos.

Vigilante está em tudo
e em toda a parte
uma melodia universal.
A música grava em nós
quando julgamos gravá-la.

Sinto os lábios húmidos e tenros;
o cheiro nectarino do cabelo
mesclado com o odor metálico de um brinco;
o pescoço deleitável e mavioso
ao alcance impossível da boca
quando toca aquela canção.

Regresso à noite em que caminho
sem caminho, de olhos no chão,
e encontro a cassete que me estava destinada
precisamente na noite do abandono,
quando as pedras da calçada pareciam maiores
do que o sono e do que qualquer estrela.
E ainda consigo, aos primeiros acordes,
estar ali de novo, de mãos nos bolsos ruços,
arrepiado, nariz pingado e carapuço,
sob um lampião amarelado da 24 de Julho.

Sou dado a voar no Estádio do Restelo,
libertado por duas pombas antes aninhadas
nas palmas destas mãos frias e suadas.
Sou o Redondo de Sanlúcar de Guadiana
que vinha de Alcoutim para jogar à bola,
e sou-o no nylon surdo de uma viola.
Sou a flauta de Pã e a roda de esmeril
avizinhando-se o amolador, mas sou sobretudo
o odor telúrico e mudo da Rua Martim Vaz,
tingido por roupa lavada a secar nos estendais.
E, como quem faz de nada tudo,
encontro-me eterno no beiral dos avós
a pensar se chamo a Rosário para o dominó.

Foi o som que me trouxe primeiro
o coração sincopado de mãe
e o mundo inteiro lá fora.
Do berço de agora e de todas as horas,
o rádio tocava a canção que me quer bem,
a rima rúnica de um terço anglo-saxónico,
entoada com pronúncia de Liverpool,
urdida num espectro sónico intrauterino
e explosiva num clarão lúcido e transparente
que iluminou de Sol materno ventre.
Misteriosamente, a canção sempre me conhecera,
como outras que pintam paisagens audíveis
em insulamentos fetais de supernovas,
mostrando-nos que somos do mundo.

Numa linguagem que a razão não compreende,
a música exprimiu a mais alta filosofia
além da sagrada ausência de matéria,
dizendo-me que dentro estaria
tudo o que lá fora já era
- um horizonte eterno e infinito
de comoções que habito
numa paisagem cromática audível
de tempo e espaço profundo,
semitonado, subtil, inapreensível.

Vigilante está em tudo
e em toda a parte
uma melodia universal.
A música grava em nós
quando julgamos gravá-la.

Matemático, o som do silêncio
conforta o pobre e apazigua o rico;
comporta os justos e os injustos;
a ave, a vespa, a flor de trigo;
a morsa, o urso e a planta;
a respiração sustida, os seios robustos
de sensuais tágides de granito.
Em tudo alguma coisa canta.

Regresso à doçura de um estio
de sangue, açúcar, sexo e magia no ar
- Peppers em loop no rádio.
Faço uma serenata à beira-mar,
roubo o primeiro beijo à beira-rio
e ainda sinto, ao percutir dos tambores,
o traseiro frio nos degraus do Adamastor
e farejo emanações canábicas
a entreolhar miradas lustrosas e melancólicas,
desesperadas por aceitação,
entregues aos bardos de Baco.

Regresso aos bons velhos tempos,
esquecido de ter tido a cabeça na valeta,
levantada por um sem-abrigo.
Sirenes, mas nunca a silhueta
de uma cara sardenta
a encher-me o olhar.
Talvez a canção do desgosto
tenha encontrado o seu alvo
- um fogo posto, um rei morto,
um cupido alado
com péssima pontaria.

Regresso àquele dia, àquele ano,
atrás da porta, a Salvador da Baía,
a um beijo de Chico e Caetano,
pés cruzados com pés morenos
a ver na TV programas gentios e plebeus.
Nos olhos teus o meu olhar era de adeus.

Há incenso de escalada nos Santos
à conquista da Costa do Castelo
sob um céu vermelho-sangue
de druidas celtas contemporâneos
em noites brancas de trovadores em pelo
na relva interdita de São Pedro de Alcântara.
Em toda a parte alguma coisa canta
- no outono de débeis violetas,
no murmuroso assédio dos insetos.
A efemeridade é probatória
de sinfonias celestiais de Verão.
O som é ontologia da memória
e dança-nos de parte incógnita
quando toca aquela canção.

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quarta-feira, outubro 11, 2023

Ergo Sum

Cueva de las Manos ("Caverna das Mãos"), província de Santa Cruz, Argentina (DAQUI)

Procura-se sequência de palavras mágicas
em melodia que desarme ódios e discórdias.
Procura-se cidade submersa, berço-chave de civilizações,
e registo de diluviais e infinitas abluções.
Um canto diáfano fecundou a poesia imperfeita,
rudimentar e arcaica, rupestre, traduzindo o mundo,
perguntando-te ao que vens e o que és
diante da prudência silenciosa de deuses
que só existem porque se pensam à sua imagem,
egóticos e materialistas, mundanos.
E é esse o seu maior e mais profundo enigma:
a vista desarmada do Jardim onde nos esperam
todas as mães e todos os pais,
num Lugar onde a crença não tem lugar,
pois só a Verdade Ali se conhece.

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segunda-feira, maio 01, 2023

Professor Luís Carmelo (1954-2023)

Soube agora, combalido pela violência da notícia inesperada, do falecimento do profícuo e genial Luís Carmelo (1954-2023), meu eterno professor de Escrita Criativa e mentor da Semiótica que me foi possível. Foi por influência e sugestão dele que criei o Caderno de Corda, em 2005, na plataforma Blogspot, onde pouco antes, no dealbar da blogosfera, havíamos mantido um blogue criado no âmbito da sua cadeira para conduzirmos a análise e a avaliação dos textos discutidos e criados em contexto de sala de aula. Foi com ele que pela primeira vez, há mais de 20 anos, escrevi para o ciberespaço… 
O professor, escritor e intelectual Luís Carmelo foi um dos homens que, cedo, me fez crer sem reservas que também eu podia ensaiar obra literária. Atribuiu-me a melhor nota na cadeira de Escrita Criativa, ajudou-me a navegar pelas águas tortuosas da semiologia, convidou-me para introduzir a sua cadeira na primeira aula que leccionou no ano seguinte àquele de que desfrutámos juntos. Deu-me a mão e acreditou em mim. Não podemos esquecer quem em nós creu e nos deu a mão.
Há demasiado tempo que não falávamos. Na verdade, guardava o telefonema para oportunamente lhe pedir conselhos quando terminasse o livro que, também há demasiado tempo, ando a escrever… Não o quis importunar. Talvez tenhamos estado juntos pela última vez na presença de Joaquim Letria e Urbano Tavares Rodrigues, na recepção da Universidade Autónoma de Lisboa, no pólo da Boavista. Foi um raro privilégio ter podido aprender com tão excepcional académico, mas também pensador e intelectual deambulante, visionário, romancista, poeta e leitor ebuliente.
A escrita do Professor Luís Carmelo é muitas vezes intrincada, de leitura morosa, aplicada; muitas vezes melodiosa e rica, poética, deslizante numa “lagoa invisível”. Os seus textos são quase sempre dotados de complexidades multidimensionais que nos põem em bicos dos pés, espreitando para lá da cerca de texto, subtexto; significado, significante. Como li algures há pouco, numa nota póstuma de alguém que, como eu, se manifestou em memória de Luís Carmelo, nos próximos cem anos estaremos a decifrar os sentidos dos seus sentidos, e sabe quem com ele aprendeu que se deve escrever com os cinco sentidos. Mas Luís Carmelo tinha mais e escrevia mais ainda. Mais do que sempre me pareceu ser humanamente possível. Li também por aí que, nos últimos dois meses, publicou três livros.
Que o devir do seu longo futuro ecluda já e atenue o sentido da sua perda. Obrigado, Professor.

Bibliografia:

• Entre o Eco do Espelho (1986, Peregrinação, Baden-Lisboa; tradução inglesa parcial, Revista New Wave, 20, Universidade do Colorado, Boulder, USA);
• Cortejo do Litoral Esquecido (1988, Vega, Lisboa);
• No princípio era Veneza (1990, Vega; 2ª edição, 1997, Vega, Lisboa);
• Sempre Noiva (1996, Vega, Lisboa);
• A Falha (1998, Editorial Notícias, Lisboa; 2ª edição, 2001, Planeta Agostini, Lisboa; 3ª edição, Editorial Notícias, Lisboa; tradução espanhola, La Grieta, 2002, Hiru Argitaletxea, Hondarribia, Espanha; romance adaptado ao cinema por João Mário Grilo em 2002);
• As Saudades do Mundo (1999, Editorial Notícias, Lisboa);
• O Trevo de Abel (2001, Editorial Notícias, Lisboa);
• Máscaras de Amesterdão (2002, Editorial Notícias, Lisboa);
• O Inventor de Lágrimas (2004, Editorial Notícias, Lisboa);
• E Deus Pegou-me pela Cintura (2007, Editora Guerra e Paz, Lisboa);
• A Dobra do Crioulinho (2013, Quidnovi, Lisboa/ 2022, Jaguatirica, Rio de Janeiro);
• Gnaisse (2015, Abysmo, Lisboa; 2017, Editora Jaguatirica, Rio de Janeiro; Ediciones Uniandes, Bogotá, 2022);
• Por Mão Própria (2016, Abysmo, Lisboa; Ediciones Uniandes, Bogotá, 2022);
• Sísifo (2017, Abysmo, Lisboa; Ediciones Uniandes, Bogotá, 2022);
• Cálice (2020, Abysmo, Lisboa. Romance finalista do prémio PEN/2021);
• Visão Aproximada (2022, Abysmo, Lisboa);
• Trílogia de Sísifo (2023, Ediciones Uniandes, Bogotá).

Ensaios:

• A Tetralogia Lusitana de Almeida Faria (1989, Universidade de Utreque, Holanda; Prémio da Ensaio da Associação Portuguesa de Escritores, 1988);
• La Représentation du Réel dans des Textes Prophétiques (1995 - Tese de Doutoramento -, Universidade de Utreque, Holanda);
• Sob o Rosto da Europa (1996, Pendor, Évora-Lisboa; 2ª edição e tradução inglesa, Ontology Of The South, Sul, Edição dos Encontros de fotografia de Coimbra, 1996);
• Anjos e Meteoros. Ensaio Sobre a Instantaneidade (1999, Editorial Notícias, Lisboa);
• Os jardins da Voyance - tradução inglesa, The Gardens of vision and the bright Ofélias of the Douro (álbum-encomenda Os Jardins de Cristal, edição da Porto-2001 e Roterdão-2001, com o fotógrafo José M. Rodrigues);
• Islão e Mundo Cristão (2001, Editora Hugin, Lisboa);
• Água de Prata (sobre a obra do Prémio Pessoa, José M. Rodrigues; 2002, Casa do Sul, Évora);
• Músicas da Consciência (com prefácio de António Damásio; 2002, Publicações Europa-América, Mem Martins);
• Órbitas da Modernidade (2003, Editorial Mareantes, Lisboa);
• Semiótica - Uma Introdução (2003, Publicações Europa-América, Mem Martins);
• Viragem Profética Contemporânea (2005, Publicações Europa-América, Mem Martins);
• A Comunicação na Rede: o Caso dos Blogues (2008, Magna Editora, Lisboa);
• A luz da intensidade. Figuração e estesia na literatura contemporânea. O caso de José Luís Peixoto (2012, Quetzal, Lisboa);
• Genealogias da Cultura (2013, Arranha Céus, Lisboa);
• Uma Infinita Voz Sobre Exercícios de Humano de Paulo José Miranda (2016, Abysmo, Lisboa);
• Ficcionalidades de Prata (2019, Nova Mymosa, Lisboa);
• Respiração Pensada (2022, Abysmo, Lisboa);
• A Grande Imersão. Pensar o Amor. Pensar a Intimidade (2023, Exclamação, Porto);
• Ourique. O Mito e o Legado das Fake News (2023, Tempus Art, Porto);
• O Encoberto e o Sorriso dos Mitos (2023, Tempus Art, Porto).

Poesia:

• Fio de Prumo (1981, Terramar, Torres Vedras);
• Vão Interior do Rio (1982, Amesterdão, Atelier 18);
• Ângulo Raso (1983, Amesterdão, Atelier 18);
• Mymosidades (2015, Nova Mymosa, Lisboa);
• As Mialgias de Agosto (2015, Nova Mymosa, Lisboa);
• Extintor de Achados (2017, Lisboa, Douda Correria);
• Tratado (2018, Lisboa, Abysmo. Obra Finalista do Prémio Casino da Póvoa/ Correntes d'Escritas 2019);
• Ofertório (2018, Nova Mymosa, Lisboa);
• Anatomia (2019, Nova Mymosa, Lisboa);
• O Pássaro Transparente (2019, Nova Mymosa, Lisboa);
• Lucílio (2022, Nova Mymosa, Lisboa);
• Biografia do Mundo (2022, Abysmo, Lisboa);
• El Asombro Irrealizado (Antologia; 2023, Textofilia, Ciudad de México).

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sexta-feira, março 03, 2023

Anno XVIII - O Jantar (convocatória)

E é chegada a hora d'O Jantar da Maioridade. Ao 18.º ano, eis a convocatória para o nosso encontro, que seguramente marcará muito mais do que apenas a celebração da "adultez" do Caderno de Corda. A maturidade não se exerce, no entanto, sem o uso de responsabilidade, autodeterminação, independência... Liberdade. E tomando uso pleno de autodeterminada e responsável Liberdade, está este ano apontada a data de 25 de Março para realização d'O Jantar, que, é sabido, deveria realizar-se na data tradicional de 26 de Março, véspera da celebração do aniversário do blogue (27 de Março). Com o passar dos anos adequa-se a data em função dos dias de semana mais favoráveis, mas o local mantém-se no restaurante A Valenciana, sendo a participação livre e especialmente dedicada aos indefectíveis Irmãos cordianos e estimados leitores. 'Té já. 

Confirmação requerida na página do evento no Facebook: https://fb.me/e/2aMeCP6WX 

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sexta-feira, agosto 05, 2022

Funcionalismo

Um funcionário apagado e triste,
escondido e envergonhado,
esperando que não lhe dirijam palavra,
planta uma árvore no canteiro da varanda,
debruçada sobre a Estrada Nacional,
onde a luz solar resta ardente no asfalto,
sabendo de antemão que não lhe cabe a fruição
nem do fruto nem da sombra.

Débito e crédito debitado;
toda uma vida de empregado,
operário pontual e exemplar
sem orgulho no cumprimento de um dever
e sem sombra nem fruto,
irremediavelmente cansado,
sem presente e sem futuro.

Como a natureza, trabalha
continuamente e em silêncio,
absorto e conformado,
canário mudo na gaiola,
alimentado a alpista,
no labor desditoso do desejo
único de esquecer-se quem é;
na lida de tudo o que é matemático
e geométrico, assíduo,
inquestionável, previsível,
sem canto nem engano,
sem desvio, prazer nem esperança.

Os músculos lassos e flácidos
sabem de cor o equilíbrio
dos movimentos repetidos,
sendo sua a substância da letargia
no enlace justo dos tendões,
nos dedos como malhos,
nas palmas tectónicas das mãos,
capazes de adormecer paisagens
privatizadas, nunca visitadas.
Pernas como tesouras
recortam sulcos febris
de infindáveis plantios e lavouras;
de trilhos e carreiras fabris,
arquitectando perenes destinos
nas paredes do tempo.

O funcionário recurva-se na secretária
mirando um memorando
como quem contempla a morte
anunciada de um conhecido.
Chegara a requisição de mobiliário de escritório
e o que restava lá fora era a dor da tarde
esperando o hálito moroso das folhas por nascer,
supondo a dúvida de saber
se se é incompletamente infeliz.

Foto DAQUI

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sábado, abril 02, 2022

Anno XVII - O Jantar (convocatória)

O Jantar realizar-se-á no próximo dia 23 de abril, sábado, no sítio do costume. Estão, pois, convocados todos os confrades cordianos e os demais que se nos queiram juntar. Tragam um Amigo também.

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domingo, março 27, 2022

17 anos de Caderno de Corda

Hoje o Caderno de Corda perfaz 17 anos. Ontem, por motivos já explicados, e muito excepcionalmente, não houve jantar, mas o agendamento está prometido para muito em breve. O Jantar acontecerá previsivelmente num sábado de meados de abril. Já foram entabulados os primeiros contactos e a data será definida em questão de dias. 

Foram dois os jantares adiados por força da pandemia, pelo que este 17.º ano exige, além da indispensável presença física da Fraternidade Cordiana, a recuperação do tempo perdido. Assim, por sugestão do Grão-Mestre Cordiano César da Silveira, O Jantar será iniciado mais cedo do que é costume, por volta das 17 horas, configurando um lanche ajantarado, espécie de high tea que redundará num jantar tradicional. 

Enquanto houver estrada para andar.

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domingo, março 20, 2022

Anno XVII - O Jantar (pré-convocatória)

Após interregno forçado de dois anos em razão da famigerada pandemia, está prometido o regresso d'O Jantar Anual do Caderno de Corda em 2022. No entanto, por motivos de força maior (mudança de casa neste mesmo período), O Jantar não se irá realizar na data tradicional de 26 de Março, véspera da celebração do aniversário do blogue (27 de Março), mas em data a definir no curto prazo, expectavelmente para início de Abril. Como sempre, O Jantar realizar-se-á no restaurante A Valenciana, sendo a participação livre e especialmente dedicada aos indefectíveis Irmãos cordianos e estimados leitores. 'Té já.

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sexta-feira, março 26, 2021

16 anos de Caderno de Corda










Pelo segundo ano consecutivo, e devido a imposições do contexto pandémico, muito lamentamos não poder concretizar o Jantar Cordiano de 26 para 27 de Março. Como é seu apanágio, o Caderno de Corda celebraria hoje 16 anos à mesa, entre amigos, abraços e amizade altamente contagiosa. Há um ano escrevia-se: "Serve este post para assegurar aos estimados Confrades Cordianos que o Jantar hoje adiado realizar-se-á assim seja possível com estímulo e intensidade redobrados." Contra todas as expectativas, são já dois os repastos adiados, pelo que O Jantar irá realizar-se plenamente assim seja possível, mas com estímulo e intensidade elevados ao quadrado. O Caderno de Corda não vergará. 

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