quarta-feira, outubro 29, 2008

Crónica de João Castanho

João Castanho vivia nas franjas da cidade.
Tinha prole de cinco e mulher de tenra idade.
Madrugava e saía, a duas horas de caminho.
Chegava cedo à obra, com a marmita e o vinho.

Todo o santo dia a mesma falta de carinho,
o mesmo longo percurso frio de estar sozinho,
pateando duas paragens de autocarro até ao metro,
congelado entre olhares glaciais e férreos.

João Castanho trazia frio no estômago e, às vezes, medo.
Não sabia o que dizer quando lhe chamavam preto
e acabrunhava-se se lhe conhecessem apelido, no operário sonho.
Talvez, troçando, se lembrassem do preto que afinal é Castanho.

João Castanho era homem bom por natureza,
sem que Locke lhe falasse de Rousseau.
Vergado pela profunda iniquidade da pobreza,
não creria em quem, num andaime, o crucificou.

Era adolescente quando saiu de casa.
Uma camisa às costas e, na mão, velhos jornais
que julgava ainda assim vender na praça.
Grudou-se a um cargueiro e não mais escreveu aos pais.

Escrever não era mister que agradasse.
Antes punha pronto mãos à obra,
que o pensamento tartamudo em impasse
- naufrágio de palavras que à eloquência da força soçobram...

No entanto, João Castanho era homem de palavra.
Dormia pouco, no meio quarto da semibarraca.
Comia menos, embora muito feijão com arroz,
mas ligava sempre aos pais, de cartão, tocando-os com a voz.

João Castanho tinha dois varões e uma filha.
Trabalhava para dar-lhes o que não podia.
Honesto, previdente, não esquecia a família.
Por eles era um pai ausente em tristezas e alegrias.

Numa tarde de sol enfurecido, sentado no andaime,
João Castanho parou para pensar com os seus botões
no que fazer para que a vida mais o estime e ame,
e contemplou apenas os sorrisos das suas carnais criações.

João Castanho não sabia se temer mais a dor
ou o dia final dos dias - morrer.
Não sabia se recear não ter feito melhor
ou não ter feito algo que devesse esquecer.

E ia assim João deixando-se envelhecer,
sem actos de revolta nem profunda desilusão,
atenuada por três filhos saudáveis a crescer,
que um dia o chorariam inerte num caixão.

Mas o pai extremoso dera o nome ao primogénito,
primeiro universitário da família, adolescente ainda.
O desejado, o mais custoso, não era génio ou erudito,
nem dos três o mais bonito, mas a esperança faminta.

João Castanho Filho, 18 anos, estudante,
tinha sobre os ombros o futuro da família.
Não era seguidista nem beligerante,
mas teve, certa noite, de fazer uma vigília.

Amigos de infância, do gueto, da circunstância,
exigiram-lhe atenção junto à loja de conveniência.
Dez da noite, vinha das aulas sereno, saído do metro.
Era um assalto e às onze chorava preso, imerso em medo.

Interrogado, pontapeado, humilhado,
o preto confundido com a maralha
afinal era Castanho, filho de emigrado
com risível apelido adequado à canalha.

Morreu ovelha branca do rebanho,
João Castanho Filho, na esquadra da Avenida.
Nascera do amor dos pais Castanho,
para ser preto toda a vida.

No século XXI

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