Conversa da treta entre um benfiquista e um sportinguista - Futurologia Parcial
A noite era ainda uma criança. A uma mesa de café, no Bairro Alto, Zé Gato e Fifi, duas antigas glórias do futebol do Cascalheira F.C., disputavam um campeonato seu, cujas normas estatutárias haviam sido definidas num guardanapo, entre imperiais. Zé Gato, benfiquista inveterado, e Fifi, sportinguista céptico, encontravam-se apenas duas ou três vezes por ano – dependendo do calendário futebolístico – para visionar os embates entre os dois colossos de Lisboa. Em suma, era o futebol que os unia, hoje, no passado e sempre.
- Meu caro amigo, devo dizer-te que já não se joga como antigamente – desabafa Fifi, constatando a superioridade do Benfica.
- Estes gajos correm muito. Às vezes parece que se esquecem da bola.
- D' ”A Bola”? – indaga Fifi que, além de ter dificuldades de audição, tinha-as também de entendimento.
- Sim, da bola, pá. No nosso tempo tínhamos uma coisa em mente: marcar e jogar bonito. Estes tipos são muito físicos. E o Mantorras não sai do banco!
- Mas por que carga de água hão-de eles precisar d’ “A Bola”? Só amanhã, no rescaldo...
Zé Gato olha para Fifi, incrédulo, como quem não se quer entregar ao surrealismo da conversa:
- Está explicado. Se a tua filosofia de jogo tiver paralelo na do teu clube, está evidenciada a cabazada que vocês vão levar hoje no bucho. Já sabes: Pelas nossas contas, cada golo são três imperiais. Já bebi duas e ainda me deves quatro.
Como o leitor terá depreendido, obedecendo a aritmética simples, o Benfica já vencia por dois a zero, decorridos apenas 23 minutos de jogo. E continuava Zé Gato, dirigindo-se, desta feita, ao televisor:
- Mete o Mantorras, pá! Mete o menino! A gente quer é espectáculo.
- Espectáculo... – desvaloriza Fifi – Espectáculo eram os cinco violinos... e o Eusébio, pronto! E não há-de haver outro.
- Nós vivemos esse tempo, mas estes miúdos não sabem nada da vida, de sacrifício, de amor à camisola. Mas tenho uma fé neste Mantorras. Repara: tal como o Eusébio, é dotado de uma velocidade, potência e técnica incomparáveis, acrescendo o facto de saber dar valor ao que tem. Este rapaz jogava descalço na rua, pá!
- Tal como o Eusébio. Lá isso é verdade.
- Este miúdo é uma pérola! E tem bom fundo; é mesmo bom rapaz. E olha que isso é importantíssimo no balneário. Bem diz o Mourinho que não quer pop stars na equipa. Imagina um balneário com cinco Maradonas... ou dois! Era o descalabro - disse, sensaborão, tornando um olhar categórico para o sportinguista: - Sabias que o nome Mantorras lhe foi dado na adolescência, depois de uma vez lhe ter caído em cima uma panela de sopa e ter ficado todo queimadinho? Em Angola, Mantorras quer dizer homem queimado, pá.
- Tu és, de facto, um baú de conhecimento...
- E ficou órfão cedo, aos 15 anos, passando a ser responsável pelos três irmãos mais novos. Isto tem muito que se lhe diga. O nosso menino! - solta Zé Gato, emocionado pela repentina escolha do realizador, que fecha uma câmara no olhar felino de Mantorras, impaciente no banco.
- Mas explica-me cá uma coisa: para que raio precisam eles d’ “A Bola”?
- * -
n.b. - É já amanhã, sábado, que o Campeonato se decide, creio. A atenção de um país inteiro desaguará, à mesma hora, no futebol. Benfica vs Sporting, o Porto e o Braga. 19h45. Dedico a singela antevisão ficcionada ou visionária - amanhã o saberemos - do jogo, passada numa tasquinha de esquina, quiçá no Bairro Alto, Travessa da Queimada ao Alecrim, aos meus prezados camaradas! Um abraço e o diabo a 7 no inferno da Luz!
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Post Scriptum: Uma alma de campeão não se produz. Um espítito ganhador não se treina ou ensina. E não são medalhas que formam o carácter daqueles que nunca venceram, nem tão pouco daqueles que se acostumaram a vencer. Independentemente da ideia criada já perto do final deste Campeonato, de que o campeão por sagrar não o será por mérito próprio mas por demérito dos restantes concorrentes ao título, este Benfica, digo-o com muita pena, não tem fibra de campeão. Simão, Nuno Gomes, Petit e Miguel mereciam ser campeões com a camisola encarnada. Os outros (Moreira, Mantorras, Manuel Fernandes, João Pereira, e Cª) ainda têm tempo para se afirmarem e ajudarem o clube, se não se deixarem seduzir por ofertas milionárias vindas de Itália, Espanha ou Inglaterra. Talvez lá sejam campeões, ou talvez, assim, nunca cheguem a sê-lo. Teriam de trazer a faixa de campeão do lado de dentro da camisola e não de fora. Ricardo Rocha - um jogador que sempre apreciei -, nem o incluo no primeiro grupo de jogadores, até porque há duas épocas que demonstra não ter realizado ainda a dimensão do clube que representa. Recordo que R. Rocha tem esperado, no início e no decorrer das duas épocas transactas, uma oportunidade para jogar em Espanha a todo o custo. Relembro ainda uma afirmação sua, a propósito do suposto interesse da Real Sociedad na sua contratação, na qual afirmava um enorme orgulho pelo interesse demonstrado por essoutro "grande clube".
Nem o facto de, jogando fora, o Benfica ter, por vezes, apoio mais acalorado do público do que na Luz, lança a águia para altos vôos que se traduzam em vitórias e superioridade categórica sobre os seus adversários. O 12º jogador do Benfica - não sendo o Mantorras, que é o 9 - é uma força indomável, dedicada e, como tal, merecedora. O 12 do Benfica enche todos os estádios mas não marca golos, ou já seríamos campeões há muito. Até podíamos pôr os júniores a jogar amanhã, se tudo dependesse dos adeptos. Bem, lads, vamos embora pra cima deles com o que temos! Vamos a eles!, que até os comemos! Só com uma vitória categórica amanhã, num jogo de sonho antológico, esta equipa merece ser campeã. Trap, dois pontas-de-lança de início, por favor! Façam história, rapazes!
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