terça-feira, agosto 05, 2025

Alfa e Ómega

I. Primeiro Pagamento

Nasceu com o nome num papel timbrado
e foi imediatamente vacinado.
Antes do choro, já devia à Caixa.
Antes do leite, já devia ao Estado.
Antes do nome, já tinha número
para repúdio à herança do passado.

Cama de ferro, cloro e manchas nos lençóis.
A mãe sorriu serena ao assinar papéis.
Lá fora, os tios faziam contas e desejos
de não serem os padrinhos —
de não lhes caber a honra dos benfazejos.

O avô estava com mau vinho.
Via na TV que o défice tinha subido.
No ecrã da entrada: inserir novo utente
e o país registou mais um contribuinte.
Como pode um nascimento
ser burocrático e indiferente?

II. Primeira Factura

Aos noventa dias, a mãe foi trabalhar.
O pai andava pelas margens do relógio;
de costas para a proa, de frente para o mar;
pela casa como sombra no soalho.
Morava nas horas de vazio, ao contrário.

Ao miúdo faltou colo, mas houve horário.
Entrou cedo, sem saber despedir-se.
Só à tarde soube estar no infantário.
Chorava todo o dia como quem protesta
e foi entregue à ama com uma tabela.
Um recibo em troca de uma promessa
de afecto, atenção e beijos na testa.

As manhãs chegavam frias, cheiravam a sopa velha.
De olhos esbugalhados, aprendeu a esperar cedo.
Vindo do estômago, acusou na alma um lamento.
À pele tinha já tatuagens por dentro.
Ficou no peito um choro permanente em ponto pequeno.

III. Primeira Lição

Aprendeu a contar antes de brincar
e a levantar a mão, nunca a voz,
que saía engasgada para perguntar.
Sabia o seu lugar, mas não o porquê.
O recreio era curto para um silêncio de pé.

Pintava o sol amarelo no canto direito.
A relva era verde; o céu azul por defeito.
Um dia trocou as cores por pura invenção
e levou um reparo jocoso de reprovação.

Mãos nos bolsos como raízes no solo,
olhos clementes, na cabeça já um nevoeiro,
e no peito um precoce alvoroço,
um medo ansioso do próprio receio.

Distraído e sensível, era um problema,
peça numerada, desencaixada do sistema.
Sempre pessimista o prognóstico.
E num dossiê com nome e diagnóstico,
chamaram-lhe desatento e coisas que tais.
Depois chamaram os pais.

IV. Primeira Nota

Mediam-lhe os lapsos, nunca o sonho.
Pesavam-lhe a voz, o timbre, os gestos.
Não lhe auguravam futuro risonho.
O erro pontuava sempre mais do que o resto.

Imaturo, preguiçoso, sem método, disperso,
cortaram-lhe a dúvida no quadro a giz.
Finda a aula, a equação era o verso
do poema a metro que não escreveu nem quis.

A ferida em pus da comparação,
o silêncio vedado da sobrevivência,
os dedos nus expondo a hesitação
das mãos frias e húmidas da subserviência.
E a vergonha que se fazia identidade,
a evitar os olhos e os conselhos,
desejava apenas a faculdade
de desaparecer nos recreios.

V. Primeira Porta Fechada

Entrou na faculdade como quem entra no mar:
sem saber nadar, mas saturado da margem;
com esperança amarrada a frágil coragem
e uma sentença adiada, por classificar.

Na mochila levava clamores da infância;
nos cadernos o virtuosismo da inocência,
e o mundo parecia quase possível,
num passo novo, mais alto e livre, uma dança
incauta sobre o tabuado da passagem de nível.
O primeiro licenciado da família.

Em casa, o chão tremia.
O pai — que andara anos ao volante,
tendo o camião por cama —,
de alma remendada e corpo exangue,
trazia tostões de vergonha e má fama.

Paletes, verbas e volumes não conferiam.
Folhas por fechar, colunas que não batiam,
planilhas discrepantes, contas erradas,
e o erro vestiu o fato das madrugadas.

Veio o despedimento e depois o silêncio,
o olhar embaciado, o gesto ausente,
a década de trabalho num saco de expediente
e o resumo sumido num último recibo,
a sombra gelada do que não auferiu
em perdão, clemência ou apenas abrigo.

A mãe gritou durante semanas
até que, perante a letargia, deixou de falar —
um dia fez as malas à pressa, sem dramas,
deixou a casa pela de outro; levou o lar.

O filho ficou com o pai, num pacto mudo
entre a culpa e o pudor do abandono.
Era já homem, dizia-se, e isso era tudo,
mas sentia-se cão com trela sem dono.

Faltou o passe. Faltou o mês.
Faltaram livros, sorrisos, jantares.
Venderam-se enciclopédias, vinis e CDs.
Acumularam-se dívidas e pratos por lavar,
currículos enviados inutilmente.
De olhos vagos noutro lugar,
no fundo RGB de um ecrã, ausente,
o pai passava noites brancas a fumar.

O miúdo voltou às aulas, fingiu rotina,
mas os livros pesavam como tijolos na obra.
A vergonha colada à cadeira, vidrada na retina,
e à janela o futuro extinguia-se a cada hora.
A chamada em falta não foi indisciplina,
apenas um dia fora, uma cadeira vazia,
e no anfiteatro ninguém perguntou.

Deixou o curso no segundo outono
para sustentar a casa em colapso.
Não houve anúncio, só abandono
e um nome ausente nas pautas,
frequência da licenciatura por meio ano,
como se nunca ali tivesse estudado,
como se naquelas salas nunca tivesse tido aulas.
Inútil para efeitos profissionais.

VI. Primeiro Recibo Verde

Começou por dias sem nome nem recibo,
horas ao sol de Junho, a ganhar tostões
fora da folha, por baixo da mesa, do vidro.
Dois meses num balcão, três num arquivo,
quatro num escritório a tresandar desinfetante.
Chamavam-lhe rapaz, moço, assistente.
Nunca usavam o nome constante
na ficha que fora para o lixo.
Não lhe conheciam apelido.

Levava pão e papel higiénico na mochila.
Guardava restos de si no bolso, rabiscos,
resumos e esquemas de vidas sonhadas
noutra dimensão de astros e meteoritos –
ideias, poemas curtos num caderno de escritos,
versos, apontamentos e autoavisos,
pedaços de sim e talvez de um longo Inverno
que rompiam terços e fardas de improviso.

Tinha uma camisa para cada semana
e as solas gastas de desventura.
Picava o ponto como quem se ausenta,
sorrindo por compaixão e ternura.
Trabalhou até as palavras sangrarem
e os músculos, silenciados, pararem
com as fotocópias e o toner,
com a síncope de rolamentos,
com as horas extraordinárias
de um esforço nado-morto.
Jazia, ao final do longo dia,
a embalagem de um corpo
reposto, inerte, na prateleira.
Nem o espelho devolvia o rosto
e não haveria outra maneira –
mãos cheias de horas até ao osso,
majoradas como o sono ao tutano –
a vida a boiar no fundo de um poço.

No bolso, o poema insistia:
riscado, rasurado, uma pedra de sal.
No bornal, cadernos gastos onde escrevia histórias
de vidas que já não sabia se eram suas —
às vezes, de tão escritas, pareciam-lhe já memórias.

VII. Primeira Morada

Trabalhava para dois.
Não bastava para o mês —
como um cântaro rachado,
carroça manca de bois,
suor do corpo quebrado,
vazado com o brio da surdez,
silêncio fervido, arroz para três.
Pratos lavados com água da véspera,
moedas escondidas num frasco de vidro,
migalhas de um mapa, ossos de medo –
guardada uma porta por dentro.

O pai, apagado em brasa fria,
e a casa encolhida, sem fôlego,
a respirar sem saber que doía
o ar denso, a roupa a cheirar a mofo,
o tempo parado no fio da travessa,
o vazio sentado à cabeceira da mesa.
Era amor doente, na borda do precipício,
silente, cabeça encostada à parede
e os olhos a meio sem suplício.

Vendeu-se um candeeiro de griffe,
um móvel de sala quase dado,
um conjunto de cama bordado,
e ao jantar houve bife.
Depois da máquina de café,
foi a televisão,
e o mundo deixou de entrar.

Já nada crescia naquele chão gasto.
O afeto pendia de um prego torto.
O amor dormia sem luz de presença.
Mordendo o apelido, enrolou o casaco,
alçou as memórias felizes ao ombro
e deixou a chave, como uma sentença.

Pagou o mês de caução e o mês de renda,
e mais um, adiantado. O poema, inacabado.

Na periferia, um cubículo com eco,
uma janela opaca para o poente
de antenas tortas sem conserto.
Sem estrado, o corpo dormente.
Sobre o colchão, os braços inertes,
as mãos e os olhos secos fechados,
a marcar território de recomeço.
Era sua a chave do desengano.
Seu, o desígnio de rodar a tranca
do cárcere e da liberdade.

Eis a chave, a porta, o ardil.
Eis da vida o maior preço:
a miragem do oásis transariano –
da família nuclear a três
à desdita tragicómica do covil,
saldada mês a mês.

VIII. Primeira Traição

Uma janela sem mundo, uma luz que pendia,
três pratos de vidro, uma colher de plástico
e o silêncio opressivo — espesso, doméstico.
Havia espaço para o tempo, surdo-mudo,
e nenhum lugar onde pousá-lo.
O vagar sem préstimo futuro
corroía-o, tornava-se espelho.

No vazio, teimava o poema,
crescia devagar entre nervuras,
cicatrizes de sal, linhas de fractura,
erva daninha a brotar dos azulejos –
poema escrito sozinho, linha a linha,
tomando-lhe a mão sobre textos
que o desenhavam em liturgia íntima
de salvação penitente, solitária, impossível.
A caneta era cruz, o papel sacrário,
tacteando a luz com dedos de sombra,
soprando cinzas em busca de brasa,
traçando na terra o território.
Às vezes, no lume breve de um verso,
acendiam-se os rostos do pai, da mãe,
e o cabelo de um amor desconhecido.
A mãe sussurrava na presença de um homem.
O pai esquecera-se do próprio nome.
Ninguém viera ainda por ele.

Quando o frio se fez hábito
e já não esperava visita,
viraram-lhe o mundo ao contrário,
chegou um incêndio vestido de brisa.
Ao silêncio que por fim se fez casa,
respondeu uma voz embriagante, sem aviso.
Pensava-se enfim intacto,
e eis que a voz reabriu a ferida.

Outras houvera em noites de bebedeira,
beijos molhados e corpos sem nome,
fogos-fátuos de um desejo sem fome,
mas esta era chama que fingia lareira,
promessa suave com corpo, mãos, língua, enleio.
Conheceu-a online, num dia qualquer,
e tropeçou no que parecia passeio.

Entrou sem bater uma presença de neblina,
ondulante, generosamente feminina.
Era olhar e feitiço, beijo e doutrina,
e ele, ajoelhado, cansado e carente,
rendeu-se ao calor de um regaço.
Beijava-a com o frémito do tempo perdido,
como se o corpo soubesse sempre o caminho,
como quem afaga a ferida e encontra abrigo.
Respiravam-se inteiros, no mesmo compasso,
odor febril a lume húmido, cioso perfume,
disparo certeiro, júbilo e queixume, erro crasso.
Um deus cego pedia-lhes lume
numa vertigem de sombra inteira,
estreitando o cubículo num abraço.
Nela viu um país por fundar.

Mas o país não tinha mapa,
era bruma em manhã sem estrada,
e o riso, outrora fonte, secava as margens
devolutas de sede a cada gesto.
Já não lia poemas até ao fim,
sorria a meio, mudava de tema.
Tudo nela se tornou frio indigesto
onde dantes havia frenesim,
e ele, sem saber, já saíra de cena.
A cama, quente, fazia-se ilha
de um náufrago em corpo ancorado.
Ela ainda lá estava, depois da neblina,
mas algo no gesto ia já longe,
num horizonte que não pedia resposta,
um olhar que não devolvia reflexo.

O coração tornou-se um anexo
onde começou a chover por dentro,
num adeus sinalizado pela ausência de sexo,
espelhado em promessas de vento,
na alteridade do toque que fora abrigo,
agora estéril recusa, castigo.
Quando enfim entendeu o enredo,
era tarde: traíra-se por migalhas de afeto,
fizera-se menos que concubino.
Curvado no altar do talvez,
pedia apenas uma palavra inteira –
bom dia, boa tarde, um sinal cortês,
feito cão à porta, sujeito às probabilidades.
Ela menos falava, e quando o fazia
era como quem dissesse outra coisa.
O amor transacional revelou-se à luz do dia.
Não fora amado, mas usado.
O poema, rasgado, escrevia-se à faca.

IX. Primeira Herança

Veio pequeno, de olhos baços, sem verbo,
um choro sem gramática, um tremor de berço.
Ele viu-o como quem se olha do avesso,
num clarão translúcido de perguntas sem resposta.
A infância reencontrava o silêncio.
No fundo da memória, uma voz de cetim, uma rota.
Uma ternura longeva latejava no pulso,
um instinto sem nome, um abraço perdido.
Recordou o lar que lhe faltara,
o colo adiado, o abrigo prometido.
Sentiu no peito um sopro de alvorada,
promessa de sol depois do nevoeiro,
aroma de Lua nova e terra molhada.
Na pele doce do filho, escrevia o futuro inteiro,
fundava o tal país num só verso,
jardim por regar, fundeado nas entranhas do universo.
Na consciência o profundo receio
de falhar como lhe falharam primeiro.

Enquanto isso, erguiam-se trincheiras no quarto,
beijos conjurados num cerco pós-parto, ventre fechado.
A criança tornou-se penhor de amor taciturno,
cobiçoso, avarento, a medir cada afago como hora de turno.
No berço ele via uma jangada, um contrato assinado no escuro,
um bilhete de resgate ou condenação.
O leite azedava sem lume, a noite rangia nos dentes
e no peito farto, gelado num idioma de fome.
O desejo contrariado, rejeitado, deficitário.
Ali estava, sem nome, a contabilidade da ternura.
Ele dera por si visitante na própria casa,
pagante de uma dívida sem fatura,
credor improvável de desejo lúbrico,
estilhaçado no reflexo de um espelho translúcido.
No poema inacabado, um voto secreto a cada sílaba:
quebrar a sombra antes que a luz se apague.
Mais que nome, sangue, carne, rosto,
herança era sopro de abandono ou esperança,
cisma sem dono, sismo no osso,
e um pacto inexprimível na página branca.
Ali, às grades do berço, germinava a condenação.

X. Primeira Sentença

Rubricou a ausência com a mão tremida
sobrevoando a última cópia em papel timbrado.
Um carimbo sobre a paternidade; sobre a vida.
Sem apelo, estava anulado o contrato.
Pagou a primeira pensão de alimentos
na penumbra dos dias sem volta.
No sigilo da casa, o colapso, a revolta,
o grito mudo dos brinquedos arrumados,
a alucinação de uma criança a correr descalça,
sem chão, sem pátio, sem extrato bancário –
apenas as semanas hipotecadas no calendário.
No poema faltava uma hora para a meia-noite,
por entre recibos e segundas vias sem rumo,
restos de dias vagos guardados no fundo do armário,
pedaços de vácuo e saliva, um expediente de fumo,
envelopes rasgados sem outro destinatário.
Quebrado, sem rosto, sem cais, apenas um nome
com saldo negativo às portas dos tribunais.
A família reduzira-se a dígitos, selos, clausulados
em penumbras facturadas ao mês com código IBAN.
A própria família. Menos que sozinho,
fora-lhe extirpado o coração, amputado o caminho,
sem eco de humanidade devolvido num silvo,
sem memória de arquivo, mendigo administrativo
nas esquinas refundidas da retórica jurídica,
paiol de fantasmas insensíveis das pragmáticas,
a empurrar almas em custódia nas órbitas da compaixão.
Selado num código postal, reduzido a rubrica digital,
observava sem altar um deus de plástico,
como tantos de joelhos, prostrados nos sacrários
das repartições públicas, em súplicas e sermões burocráticos.
No genuflexório fiscal silenciam-se os rumores da insurreição.
Quem decide quem fica, quem parte, quem sobra?
Quem é o traidor, o traído, o réu, o arauto?
Entre códigos e autos, era possível sonhar nova obra,
era ainda a árvore passível de rebentar do asfalto?
Na quietude do verso, germinava a fagulha, a centelha,
um clarão que incendiasse o mundo, o poema.

XI. Primeiro Crepúsculo

Os meses caíam como folhas mortas na tijoleira.
O tiquetaque latejava no pulso um aviso de falência.
O baque à partida do pai ao domingo; da mãe à terça-feira.
O corpo um pergaminho gasto, uma lembrança de linho,
o adeus ao destino, o regresso infame à inocência.
O tempo, na sombra da perda, nunca devolve o início.

O filho calçava os seus velhos sapatos de inglória;
herdada a mesma febre de fantasmas sem nome,
inelutavelmente à sombra do que viria a perder.
Passava menos vezes, sem mágoa, culpa, história.
Na voz arrastada, monossílabos de fome.
O miúdo era já pai sem enredo, reencenando a memória.

O agora avô e órfão via-se passar ao espelho sem reflexo.
Tornara-se vulto nas salas de espera, imprestável
como o relógio de parede parado nas duas horas;
presença decorativa nas reuniões de família.
Espectador de um filme dobrado, lábios desconexos,
comia pré-cozinhado o limiar da lucidez, insanável,
e ninguém batia à porta, o telefone não tocava.
Comprimidos e TV generalista, peça carcomida de mobília.
Já ninguém o reconhecia no quiosque, no café, na farmácia,
ou seria antes o contrário, o ângulo obtuso no átrio da falácia?
Senhas, consultas, corredores, máquinas, vozes automatizadas
numa dança esterilizada de corpos numerados promovidos a utentes,
e um multiverso de outras dores, mais a obsolescência programada.
Árduo é o caminho dos mártires sem promessa de virgens para os crentes.
A alma, diziam, sobrevivia, mas onde? Em que servidor,
se tudo cabia num processo arquivado, razoado no computador?
Quem herdará os restos de uma rotina sem testamento?
A identidade tornara-se documento sem validade, sem leitor,
encerrada numa pasta sem estante ou corredor, um ofício digital
codificado e marcado a negrito de nulidade existencial.
Nada ficou de uma vida garimpada em recibos e diagnósticos
triturados por juristas, call centers, prestamistas e médicos.
A liberdade da escolha múltipla, entre vícios não subsidiados –
e outros, subsidiados, à boca da urna. Votara e pagara sempre,
sem alguma vez lhe ter sido devolvida a pátria, os anos.
Passavam-lhe à frente sem cortesia nos transportes públicos
e na fila de atendimento da Segurança Social, uma carestia visceral,
um alheamento comprometido em anestesia testemunhal.
No bolso do último casaco, gasto e amarelado, um caderno manuscrito.

XII. Primeiro e Último

O filho dobrou o casaco. Não disse nada.
Não sabia o que fazer com o caderno.
Não o abriu nem se desfez dele: guardou-o
no fundo de uma caixa de cartão,
sob uma pilha de documentos e recibos,
sem respirar ao canto de um sótão.

Muitas décadas passaram pelas dobras do calendário
até que o neto o achou, inscrevendo-o numa lista
– um inventário de objetos – sem razão aparente.
Não leu, mas cuidou-o numa caixa-relicário
de um tempo analógico como documento.
Havia peso no silêncio gritante da memória,
uma aura dourada de papel velho, eloquente,
com manchas de café, rasuras, vestígios de saliva, histórias.
Geração após geração, o caderno ficava.
O nome fora apagado das bases de dados,
mas a solenidade mística da matéria teimava.

Três gerações depois, foi o bisneto que, enfim, o leu
pela primeira vez, num gesto profano de curiosidade sagrada.
O texto pulsava, as palavras ardiam intactas, um fogo cresceu
em labaredas inextinguíveis de uma única e íntima chama.
Nunca conhecera o bisavô, mas ouvira dizer que escrevia.
Não quisera ser imperador ou sua senhoria,
mas lembrar que este é um lugar próspero
de abundância e beleza para todos;
que a ganância envenenou os poços
e barricou-se em trincheiras de certeza e ódio.

Homens e mulheres, mulheres contra homens,
e passado tanto tempo dos mesmos no pódio,
repetiam-se os medos, os gritos e as palavras de ordem.
Mas pensamos demais e sentimos de menos.
Se as mãos se dessem, os muros caíam
sem donos, sem deuses, sem a esperteza
que fractura a humanidade e macula a inteligência.
A natureza é violenta sem bondade, sem gentileza,
às mãos de brutos que regimentam a decência.
Não somos máquinas nem gado, mas homens
que lutam contra a escravatura,
quando a luta é pela liberdade!

E mais de um século depois ainda a palavra
a transpirar de um lugar livre sob a pele,
de beleza plantada sobre as cinzas do desespero.
Ainda a tal “democracia” a revolutear numa parada
de armamento imperialista sem quartel,
acesa apenas quando o povo espantar o medo.
Ainda o repto pela demolição das fronteiras,
da intolerância e do ódio; por um mundo de razão
onde o progresso seja fruto de alegria, não um açoite.
Ainda a promessa gorada dos brutos, uma longa noite
de mentiras e gumes afiados pelo jugo da liberdade.

Na contracapa, entre emendas, contas e datas,
encontrava-se um sussurro sublinhado,
um cometa de grafite que aguardava
olhos cadentes no rodapé gasto.
“Não somos o que nos fazem, mas o que fazemos de nós”,
leu em verso quase ilegível, urgente e torto.
O bisavô não estava vivo. Não estava morto.
Dissolveu-se na base de dados, mas o poema resistira,
e com ele uma luta simples pelo que é decente,
por libertar a vida, fazê-la dançar ao vento.

O bisneto, já homem no mundo,
citou-o em discurso diante da assembleia.
A câmara permaneceu em silêncio mudo.
Anos, séculos, milénios e nunca depois, sobreviveu a ideia
e o caderno reapareceu depois de tudo –
da ruína, do arquivo, da arca, do museu, da feira,
do infinito do espaço-tempo profundo.
A ideia fecundada derrubou todos os muros.

A palavra fez-se semente sussurrada,
reinventada, retransmitida, ousada.
Como senha, prece, rumor.
Como se fosse a primeira vez.
Como luz em água,
eco em pedra dura,
chama ao vento,
incendiando o silêncio
ao nascer da aurora.

Jeremias Cabrita da Silva in "Antologia Poética de Hugo Simões" (Edições SIM, 2078)

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