Quando o grito se aquieta
E a revolta se suprime,
Agarra a foice firme,
Separa o joio velho
do trigo mais sublime.
Quando em silêncio aceitas
O cartola que te verga,
Vê lá se lhe acertas
Onde ele não mais se erga.
Se te esgrimes com verdades,
Grunhe fino o bacorinho;
Há-de dar-te as liberdades
Que só terias sozinho.
Bebe o trago do gargalo,
Sôfrego engasgo no vinho;
Vive livre e com embalo;
Segue feliz o caminho.
Comensal, eu não me ralo
Se passas fome de carinho,
Mas não esqueças que o galo
Desperta o pobre e maça o rico.
A turba emerge silenciosa e esguia
Todas as manhãs com o raiar do dia.
Somos peças de xadrez,
Peões fracos, meros actores
Que acabam por, à vez,
Engolir sapos; esquecer valores.
Mais dia menos dia levantam-se os mortos
Pelas nossas dores,
E actores que somos, absortos,
Deixamos vagos os bastidores
Da vida morta que levamos,
De poemas sem cantores,
Da trova brava que levantava clamores.
Bernardo Cunha Simões (Biografia)
Bernardo Cunha Simões escreveu, ao longo da vida, um vasto rol de poemas sobre a sua experiência no Alentejo e na Covilhã, onde nasceu a 21 de Maio de 1920. Bernardo iniciou-se literariamente com um conjunto de escritos sobre os anos passados no Liceu da Covilhã, onde estudou até ingressar no curso de Medicina na Universidade de Coimbra, anos mais tarde. Em Coimbra, foi colega e camarada de outro Bernardo, o Santareno (pseudónimo de António Martinho do Rosário), cuja obra inédita “O Punho”, localizada no quadro revolucionário da Reforma Agrária, em terras alentejanas, terá sido inspirada pelas conversas tardias entre ambos e pelo conhecimento partilhado de Bernardo Cunha Simões sobre o Alentejo, onde amiúde se refugiava, procurando a paz e o sossego que teimavam não abundar.
No início dos anos 40, Bernardo Cunha Simões já apresentava um conjunto vasto de textos políticos, memoriais, de debate social e até esotéricos. No entanto, nenhum fora publicado senão em documentos académicos dos quais se perdeu rasto.
Porque tinha uma avó acamada na Covilhã, padecendo de pneumonia, abandonou o curso para assisti-la, não tendo voltado para concluir o seu percurso académico. Em 1942, após o falecimento da avó nos seus braços, procurou novas experiências e lugares, tendo encontrado no Alentejo a serenidade que buscava.
Foi em Évora que Cunha Simões conheceu, na década de 50, o poeta alentejano autodidacta Jeremias Cabrita da Silva, com quem privou e passou temporadas de boémia em Cuba do Alentejo, fugido da repressão crescente de que ia sendo alvo pela parte do regime vigente. Considerado pela PIDE/DGS um “comunista indefectível” e líder encapotado de movimentos estudantis, foi desde cedo perseguido pela polícia política, para quem representava uma séria ameaça enquanto fazedor de opinião no seio académico, mesmo após o abandono de Coimbra. Escreveu para diversos fins panfletários e revolucionários, muito antes de se sonhar com o 25 de Abril. Fê-lo, no entanto, sob pseudónimos vários, pelo que é hoje quase impossível atribuir-lhe com precisão a grande parte dos textos políticos que publicou clandestinamente.
“Procurou desde criança perceber o porquê das desigualdades entre os homens”, afirmou ao Caderno de Corda o amigo Jeremias Cabrita da Silva, fiel depositário da obra poética do autor - toda ela inexplicavelmente inédita até hoje, apesar das diligências levadas a cabo por Jeremias junto de editores vários do Sul do País.
Em 1963, sob disfarce – óculos, barba e roupas que o aparentavam mais velho -, Bernardo Cunha Simões estava de regresso à sua cidade natal, depois de exilado em Paris por um ano. Percorria o emaranhado de ruelas da zona histórica da Covilhã quando foi abordado por um agente da GNR que o viu acender um cigarro com um isqueiro. Na ausência de licença de porte de isqueiro, Bernardo Cunha Simões foi descoberto e levado, algemado e pontapeado, pelo caminho da Rua Direita até à esquadra, donde nunca mais se soube do seu paradeiro ou estado de saúde. O desaparecimento foi notado, mas a preocupação de amigos e familiares mantida sigilosa, precavendo represálias. Estava travada a luta clandestina do autor, cuja obra nunca conheceu letra de forma.
O poema que hoje aqui se publica, gentilmente cedido por Jeremias Cabrita da Silva, é o primeiro texto alguma vez tornado público de Bernardo Cunha Simões. Segundo consta, foi escrito em Cuba do Alentejo, no alpendre da casa de Jeremias Cabrita da Silva.
Ontem, durante uma longa conversa telefónica com o octogenário Jeremias – que lhe permitiu ditar-me este poema -, soube da sua disponibilidade para divulgar no Caderno de Corda a obra do amigo Bernardo, facto que mais uma vez muito honra e enriquece este blogue.
Ao Gonçalo Cunha e descendência
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