sexta-feira, agosto 05, 2022

Funcionalismo

Um funcionário apagado e triste,
escondido e envergonhado,
esperando que não lhe dirijam palavra,
planta uma árvore no canteiro da varanda,
debruçada sobre a Estrada Nacional,
onde a luz solar resta ardente no asfalto,
sabendo de antemão que não lhe cabe a fruição
nem do fruto nem da sombra.

Débito e crédito debitado;
toda uma vida de empregado,
operário pontual e exemplar
sem orgulho no cumprimento de um dever
e sem sombra nem fruto,
irremediavelmente cansado,
sem presente e sem futuro.

Como a natureza, trabalha
continuamente e em silêncio,
absorto e conformado,
canário mudo na gaiola,
alimentado a alpista,
no labor desditoso do desejo
único de esquecer-se quem é;
na lida de tudo o que é matemático
e geométrico, assíduo,
inquestionável, previsível,
sem canto nem engano,
sem desvio, prazer nem esperança.

Os músculos lassos e flácidos
sabem de cor o equilíbrio
dos movimentos repetidos,
sendo sua a substância da letargia
no enlace justo dos tendões,
nos dedos como malhos,
nas palmas tectónicas das mãos,
capazes de adormecer paisagens
privatizadas, nunca visitadas.
Pernas como tesouras
recortam sulcos febris
de infindáveis plantios e lavouras;
de trilhos e carreiras fabris,
arquitectando perenes destinos
nas paredes do tempo.

O funcionário recurva-se na secretária
mirando um memorando
como quem contempla a morte
anunciada de um conhecido.
Chegara a requisição de mobiliário de escritório
e o que restava lá fora era a dor da tarde
esperando o hálito moroso das folhas por nascer,
supondo a dúvida de saber
se se é incompletamente infeliz.

Foto DAQUI

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segunda-feira, abril 09, 2012

Esquecidos

Havia alguém a fumar à janela,
mas a calçada já não sacudia dos estendais
o mesmo cheiro a roupa lavada.
O asfalto cobrira a pedra preta do godo
- uma epiderme granítica de seixos
que escondera outra cidade
em valas comuns no topo de uma encosta.
Aqui, onde a memória ainda estanca o Tejo
e a menagem da Praça do Comércio;
aqui, onde a cidade nasceu, amou e morreu mil vezes,
morrem como nunca morreram,
esquecidos seus corpos por meses,
netos, filhos, pais e avós de Lisboa.

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quarta-feira, março 28, 2012

Dominó

O corpo encostado à parede.
A meio da tarde, na cama,
nada melhor que observar
a dança de partículas suspensas no ar,
tornadas visíveis por raios de sol primaveril.
Toda a liberdade de ser velho
com 180 euros por mês.
A um canto do quarto divorciado,
numa caixa, um conjunto de peças de dominó
ainda cantava a música chilreada do jardim
onde dantes, almoçados, amigos se juntavam
aos pássaros, aos gatos, aos cães
e à brisa da tarde numa canção de Paz.

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domingo, fevereiro 19, 2012

Que Geração?

Os cotovelos acordavam magoados
e a pele, entre o nariz e as maçãs do rosto,
seca, escamada e encarnecida
por um longo sono
que evitasse pensar, sentir, comer, fumar.
Duas salsichas no frigorífico desligado
e a fome crua de uma dor de alma
por uma realidade outra
que aos homens deixasse puxar da terra o alimento
e viver sem prestar contas.
As salsichas, devoradas com as mãos
sem degustação nem prazer.
Prazer em nada.
Depressão. Sem actividade paroxística.
Disfunção pré-frontal.
Quadro difuso, demencial.
Alterações cognitivas e operativas.
Deterioração. Decadência. Solidão.
Alzheimer.
Prazer em nada.
As duas últimas salsichas de um desempregado só,
58 anos, jovem demais para a reforma;
velho demais para o trabalho.

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