quarta-feira, julho 13, 2005

O instinto de Eusébio

Passavam poucos minutos das nove e Jeremias dirigia-se, como habitualmente, ao “Tony das Fintas”, café da esquina. Era hora da bica, injecção final de cafeína. Jeremias trazia vestido o fato de treino novo que a avó Palmira lhe oferecera, indumentária de fins de semana e saídas nocturnas corriqueiras. Ao botar o pé no empedrado, à saída do prédio, Jeremias sentiu o passo amortecido. Sem olhar, que se o tivesse feito, tal não aconteceria, apercebe-se do que acaba de pisar, desata a praguejar e socorre-se de um canteiro próximo para limpar a sola do sapato desafortunado. Enquanto procede à dita operação, levanta a cabeça, olha em redor, e procura o responsável pela obra que, ainda fumegante, indiciava um tempo recente. Nesse instante, os olhos de Jeremias põem-se num cão preso pela trela a um banco de jardim onde, sentados, dois homens de meia-idade discutiam os casos da jornada futebolística. Jeremias renitiu quanto a uma abordagem agressiva. Afinal, que sabia o cão de civismo? Por isso, a sua atenção voltou-se para os dois homens, que parolavam distraidamente. Ambos suspeitos, um deles era responsável pela infâmia inocente do animal. Jeremias dirigiu-se aos homens contendo o seu desagrado e lançou:
- O bicho aliviou-se junto àquela porta?
- O bicho, salvo seja: Eusébio - respondeu com ironia o assumido dono.
- O bicho cagou junto à minha porta! Isto parece a Palestina, está tudo minado, não pode ser! – disse Jeremias, perdendo de vez a paciência.
A discussão prosseguiu num crescendo de entoação até atingir um paroxismo de animosidade que impossibilitava a conversa construtiva. Quando Jeremias, depois de insultada a sua maternidade, se aproxima do homem para o atingir com a sua direita, Eusébio, despertado o instinto fiel e protector, lança-se ferozmente às calças de fato de treino novas, como se não houvesse mundo para além delas. Abocanhou-as até as deixar em farripas e, rábido, ia provando os tornozelos de Jeremias sem palavra do dono, que observava. Jeremias esbracejava tentando manter o equilíbrio, livrar-se do cão, pontapeá-lo sem ortodoxia, mas as calças, essas, já não tinham salvação possível.

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