terça-feira, setembro 04, 2007

Bastidores (Bernardo Cunha Simões, 1920-1963?)

Quando o grito se aquieta
E a revolta se suprime,
Agarra a foice firme,
Separa o joio velho
do trigo mais sublime.
Quando em silêncio aceitas
O cartola que te verga,
Vê lá se lhe acertas
Onde ele não mais se erga.
Se te esgrimes com verdades,
Grunhe fino o bacorinho;
Há-de dar-te as liberdades
Que só terias sozinho.
Bebe o trago do gargalo,
Sôfrego engasgo no vinho;
Vive livre e com embalo;
Segue feliz o caminho.
Comensal, eu não me ralo
Se passas fome de carinho,
Mas não esqueças que o galo
Desperta o pobre e maça o rico.
A turba emerge silenciosa e esguia
Todas as manhãs com o raiar do dia.
Somos peças de xadrez,
Peões fracos, meros actores
Que acabam por, à vez,
Engolir sapos; esquecer valores.
Mais dia menos dia levantam-se os mortos
Pelas nossas dores,
E actores que somos, absortos,
Deixamos vagos os bastidores
Da vida morta que levamos,
De poemas sem cantores,
Da trova brava que levantava clamores.


Bernardo Cunha Simões (Biografia)

Bernardo Cunha Simões escreveu, ao longo da vida, um vasto rol de poemas sobre a sua experiência no Alentejo e na Covilhã, onde nasceu a 21 de Maio de 1920. Bernardo iniciou-se literariamente com um conjunto de escritos sobre os anos passados no Liceu da Covilhã, onde estudou até ingressar no curso de Medicina na Universidade de Coimbra, anos mais tarde. Em Coimbra, foi colega e camarada de outro Bernardo, o Santareno (pseudónimo de António Martinho do Rosário), cuja obra inédita “O Punho”, localizada no quadro revolucionário da Reforma Agrária, em terras alentejanas, terá sido inspirada pelas conversas tardias entre ambos e pelo conhecimento partilhado de Bernardo Cunha Simões sobre o Alentejo, onde amiúde se refugiava, procurando a paz e o sossego que teimavam não abundar.
No início dos anos 40, Bernardo Cunha Simões já apresentava um conjunto vasto de textos políticos, memoriais, de debate social e até esotéricos. No entanto, nenhum fora publicado senão em documentos académicos dos quais se perdeu rasto.
Porque tinha uma avó acamada na Covilhã, padecendo de pneumonia, abandonou o curso para assisti-la, não tendo voltado para concluir o seu percurso académico. Em 1942, após o falecimento da avó nos seus braços, procurou novas experiências e lugares, tendo encontrado no Alentejo a serenidade que buscava.
Foi em Évora que Cunha Simões conheceu, na década de 50, o poeta alentejano autodidacta Jeremias Cabrita da Silva, com quem privou e passou temporadas de boémia em Cuba do Alentejo, fugido da repressão crescente de que ia sendo alvo pela parte do regime vigente. Considerado pela PIDE/DGS um “comunista indefectível” e líder encapotado de movimentos estudantis, foi desde cedo perseguido pela polícia política, para quem representava uma séria ameaça enquanto fazedor de opinião no seio académico, mesmo após o abandono de Coimbra. Escreveu para diversos fins panfletários e revolucionários, muito antes de se sonhar com o 25 de Abril. Fê-lo, no entanto, sob pseudónimos vários, pelo que é hoje quase impossível atribuir-lhe com precisão a grande parte dos textos políticos que publicou clandestinamente.
“Procurou desde criança perceber o porquê das desigualdades entre os homens”, afirmou ao Caderno de Corda o amigo Jeremias Cabrita da Silva, fiel depositário da obra poética do autor - toda ela inexplicavelmente inédita até hoje, apesar das diligências levadas a cabo por Jeremias junto de editores vários do Sul do País.
Em 1963, sob disfarce – óculos, barba e roupas que o aparentavam mais velho -, Bernardo Cunha Simões estava de regresso à sua cidade natal, depois de exilado em Paris por um ano. Percorria o emaranhado de ruelas da zona histórica da Covilhã quando foi abordado por um agente da GNR que o viu acender um cigarro com um isqueiro. Na ausência de licença de porte de isqueiro, Bernardo Cunha Simões foi descoberto e levado, algemado e pontapeado, pelo caminho da Rua Direita até à esquadra, donde nunca mais se soube do seu paradeiro ou estado de saúde. O desaparecimento foi notado, mas a preocupação de amigos e familiares mantida sigilosa, precavendo represálias. Estava travada a luta clandestina do autor, cuja obra nunca conheceu letra de forma.
O poema que hoje aqui se publica, gentilmente cedido por Jeremias Cabrita da Silva, é o primeiro texto alguma vez tornado público de Bernardo Cunha Simões. Segundo consta, foi escrito em Cuba do Alentejo, no alpendre da casa de Jeremias Cabrita da Silva.
Ontem, durante uma longa conversa telefónica com o octogenário Jeremias – que lhe permitiu ditar-me este poema -, soube da sua disponibilidade para divulgar no Caderno de Corda a obra do amigo Bernardo, facto que mais uma vez muito honra e enriquece este blogue.
Ao Gonçalo Cunha e descendência

Etiquetas: , , , , , , ,

8 Comments:

Blogger RASTINOV said...

Os meus sinceros parabéns pela divulgação deste poeta e da sua poesia.
Como ele houve muitos outros que foram silenciados. O mais triste até nem é isso; é a "lavagem" constante e permanente que os poderes dominantes tem efectuado para que esta situação perdure.

terça-feira, setembro 04, 2007 7:30:00 da tarde  
Blogger Davi Reis said...

Obrigado, Rastinov. Em breve, espero ter mais trabalhos do ilustre desconhecido Bernardo Cunha Simões para revelar.

Um abraço fraterno

terça-feira, setembro 04, 2007 10:53:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

é uma ideia engraçada, esta de criar um heterónimo no passado e inédito, apresentado por um outro heterónimo octogenário, mas ainda no presente.
mas o poema está cheio de lugares comuns neo-realistas, à mistura com solipsismos banais e básicos. soa demasiado evidentemente a patchwork para ser verosímil. tem que ler mais e aprofundar mais os hábitos e a mentalidade da época...
o pormenor da captura por causa da licença de isqueiro é muito saborosa... mas quem a terá contado de tal forma se tudo leva a crer que o Simões se encontrava sozinho e depois disso não se soube do seu paradeiro??
e que dizer de ter conhecido Bernardo Santareno, como colega de Medicina, em Coimbra, se conta que em 1942 já estava ausente do círculo académico e o dramaturgo só lá ingressou em 1944, concluindo o curso em 1950??

uma história boa só não basta; dá trabalho remexer nos pormenores.

quarta-feira, setembro 05, 2007 12:50:00 da tarde  
Blogger Davi Reis said...

A ideia seria de facto meramente engraçada, caso a sua interpretação saliente na articulação do braço com o antebraço correspondesse à realidade. Espero que Jeremias Cabrita da Silva, que me forneceu os dados biográficos transcritos, não chegue alguma vez a ler este seu comentário, vendo negada a sua própria existência e temendo que a memória de Bernardo seja beliscada... E lamento que um rebelde, um homem livre do nosso século passado seja desta forma desacreditado, bem como a sua obra.
Se bem que Bernardo nunca se assumiu perante si mesmo e os outros como um génio literário, devo ainda assim sair em sua defesa. Indique-me um bom poema (mas bom mesmo, daqueles que provocam pele de galinha) que não contenha lugares-comuns – pois são esses os elementos que despoletam a identificação sensível com o escrito. Sobre o neo-realismo, não percebo de todo as suas reticências, se, de facto, Bernardo Cunha Simões viveu a pós-adolescência na época profícua dessa mesma corrente… Já o solipsismo não identifico neste poema de Cunha Simões…
Acerca dos hábitos da época, aceito a sugestão, obviamente: a leitura é sempre construtiva, ao contrário do seu comentário. No entanto, aproveito para lhe ensinar algo que pode vir a fazer-lhe falta nas deambulações negativistas pela blogosfera: “Nada tem QUE; tudo tem DE”. Seja uma história verosímil ou não, escrever escorreitamente é isso mesmo e não outra coisa.
Quanto ao pormenor do isqueiro, supostamente saboroso, espero não lhe ter deixado um travo acre, pois qualquer transeunte que se passeie pelas ruelas da Covilhã se apercebe de que seria quase impossível realizar-se em plena Rua Direita uma detenção com vozearia e algum alarde próprio da situação sem que as comadres comentassem. E é sabido como os acontecimentos sussurrados pelas bocas de comadres se desmultiplicam por exponenciais pares de ouvidos. Na Covilhã, não havia na Rua Direita quem não soubesse do sucedido.
E que dizer de Bernardo Santareno?! Pois bem: É verdade que Santareno se transferiu de Lisboa para Coimbra, mas em 1945 e não em 1944. No entanto, o caríssimo comentador não pode descurar o facto de que Cunha Simões tinha um tio em Lisboa e que, enquanto frequentador de reuniões estudantis em todo o País, conhecia gente dos quatro cantos de Portugal… Jeremias adiantou-me ainda ter Cunha Simões e Santareno estado juntos em casa do tio do primeiro, a propósito da “Exposição do Mundo Português”, em 1940, Lisboa - além de que ambos, enquanto estudantes de Medicina, seriam colegas e, enquanto pensadores livres insatisfeitos, camaradas.
Agradeço-lhe que volte a comentar a poesia do Caderno de Corda, mas faça-o em quadra ou em soneto, e sobre poemas da minha autoria, que eu responder-lhe-ei no mesmo formato com prontidão. A mim, Davi Reis, tem carta branca para criticar, pois posso replicar perfeitamente, ao contrário do falecido Bernardo.
Ah!, e... João Alfacinha da Silva não faleceu em 2007? Não me diga que criou um pseudónimo sobre o nome de um escritor que infelizmente já não está entre nós! Muito pouco verosímil!

Um abraço fraterno e obrigado pela participação

quarta-feira, setembro 05, 2007 5:31:00 da tarde  
Blogger Davi Reis said...

Mas, Alfacinha, apesar da impertinência, o seu comentário é muito interessante e bem-vindo. Volte sempre, camarada. Espicaçou-me.

(Deu um excelente contributo)

Outro abraço sincero

quarta-feira, setembro 05, 2007 10:45:00 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Continuo sem perceber como foram colegas, se Jeremias saiu do curso antes de 1942 e Santareno só entrou em 1945 (tem razão, a data é essa; 1944 é a data da sua saída do seminário). São pouco verosímeis as andanças que conta de Santareno em Lisboa, pois nesta cidade ele viveu sempre em regime de internato no seminário dos Olivais, de onde foi "raptado" (é uma estória bem interessante, pena não dar para a contar aqui) pelo pai, em 1944, como já disse.
A peça "O Punho" não está inédita; foi publicada pela Caminho em 1987, no 4º volume da obra completa de Bernardo Santareno. E muito menos está "localizada no quadro revolucionário da Reforma Agrária". Passa-se, de facto, no Alentejo, antes do 25 de Abril, e o tema central é (resumindo muito e toscamente) o impacto da guerra colonial nas famílias do soldados mortos. Obviamente que o contexto é a miséria alentejana, mas nem de longe nem de perto há "quadro revolucionário" ou "reforma agrária".

Quanto ao "ter que", tem toda a razão - a rapidez da escrita às vezes trai. Mas não deixa de ser incorrecção.

E obrigado pelo bom acolhimento.

sexta-feira, setembro 07, 2007 11:20:00 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Reformas agrárias e guerras coloniais à parte, estou muito curiosa com este Bernardo Cunha Simões. Gostaria de ver novos desenvolvimentos.

sexta-feira, setembro 07, 2007 2:24:00 da tarde  
Blogger Davi Reis said...

Caríssimo Abílio:

Creio que acredita se lhe disser que, ao ler o seu segundo comentário, esbocei um sorriso de satisfação e simpatia. Não pela desdita ou imprecisão comezinha, mas porque leitores (e, por consequência, comentadores) interessados, conhecedores e exigentes enobrecem e prestigiam o Caderno de Corda.

:)

Ah!, e... Abílio, por acaso não é familiar de João Alfacinha da Silva?

Um abraço fraterno

P.S. - No seu mais recente comentário, trocou os nomes: Foi Bernardo quem abandonou o curso e não Jeremias.

Maria Rita:

Penso que é a segunda vez que leio um comentário seu no Caderno de Corda... Quando voltar ao contacto com Jeremias, procurarei garantir um punhado de novos (velhos) poemas publicáveis. Obrigado pelo apoio. Volte mais. Sempre bem-vinda.

Beijinho

sexta-feira, setembro 07, 2007 8:32:00 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home