quarta-feira, abril 25, 2012

25 de Abril - Um Olhar Para a Memória, 30 anos depois



"A revolução, se quiser resistir, deve permanecer revolução. Se se transforma em governo, já está falida... Os lugares que deixaram de ter uma revolução permanente recuperaram a tirania."

in "Aprire il Fuoco", L. Bianciardi (1922-1971)

Oito anos depois chega à Web o documentário fotográfico em filme que realizei em 2004 a propósito do trigésimo aniversário do 25 de Abril de 1974, quando pensava ter perdido definitivamente o seu registo, produzido no âmbito dos trabalhos da cadeira de Fotojornalismo, curso de Comunicação Social da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), leccionada por Luiz Carvalho.
Reencontrei uma cópia do original há dias, durante arrumações, e finalmente pude salvar a empreitada a que me dei, contando com a dádiva genial e incansável do excelente fotógrafo e jornalista Tiago Valente, meu prezado amigo cujo rasto perdi há uma mão cheia de anos, no seu regresso de Roma. É de elementar justiça referir que o Tiago fez a maior parte das fotos que posteriormente seleccionei para a composição narrativa.
Sem pregar olho nessa noite, eu e o Tiago encontrámo-nos para fotografar, 30 anos depois, in loco, desde a alta madrugada, o ponto de chegada de Salgueiro Maia a Lisboa, à hora exacta, até final do dia, calcorreados entretanto os caminhos e os palcos fulcrais, replicados, de um golpe de Estado absorvido, como que por osmose, por uma revolução dos cravos nascida da natureza da participação popular verificada. O trabalho foi misturado nos estúdios da UAL por Ricardo Sant'Ana e Hugo Simões a contra-relógio, com Carlos Paredes como pano de fundo. Adverte-se que, num olhar prismático, o 25 de Abril de 2004 pode eventualmente parecer tão ou mais longínquo do que o outro, de 74.
Mais uma vez, concluo levando de empréstimo uma frase de Zeca Afonso e, por fim, um poema do Grande Mestre Jorge de Sena. "Para se ser cidadão era necessário mais alguma coisa do que meter um voto numa urna."


"NÃO, NÃO, NÃO SUBSCREVO,..."

(JORGE DE SENA)

Não, não, não subscrevo, não assino
que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,
como se golpes, contra-golpes, intentonas
(ou inventonas - armadilhas postas
da esquerda prá direita ou desta para aquela)
não fossem mais que preparar caminho
a parlamentos e governos que
irão secretamente pôr ramos de cravos
e não de rosas fatimosas mas de cravos
na tumba do profeta em Santa Comba,
enquanto pra salvar-se a inconomia
os empresários (ai que lindo termo,
com tudo o que de teatro nele soa)
irão voltar testas de ferro do
capitalismo que se usou de Portugal
para mão-de-obra barata dentro ou fora.
Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:
infantilmente doentes de esquerdismo
e como sempre lendo nas cartilhas
que escritas fedem doutras realidades,
incompetentes competiram em
forçar revoluções, tomar poderes e tudo
numa ânsia de cadeiras, microfones,
a terra do vizinho, a casa dos ausentes,
e em moer do povo a paciência e os olhos
num exibir-se de redondas mesas
em televisas barbas de falácia imensa.
E todos eram povo e em nome del' falavam,
ou escreviam intragáveis prosas
em que o calão barato e as ideias caras
se misturavam sem clareza alguma
(no fim das contas estilo Estado Novo
apenas traduzido num calão de insulto
ao gosto e à inteligência dos ouvintes-povo).
Prendeu-se gente a todos os pretextos,
conforme o vento, a raiva ou a denúncia,
ou simplesmente (ó manes de outro tempo)
o abocanhar patriótico dos tachos.
Paralisou-se a vida do país no engano
de que os trabalhadores não devem trabalhar
senão em agitar-se em demandar salários
a que tinham direito mas sem que
houvesse produção com que pagá-los.
Até que um dia, à beira de uma guerra
civil (palavra cómica pois que do lume os militares seriam quem tirava
para os civis a castanhinha assada),
tudo sumiu num aborto caricato
em que quase sem sangue ou risco de infecção
parteiras clandestinas apararam
no balde da cozinha um feto inexistente:
traindo-se uns aos outros ninguém tinha
(ó machos da porrada e do cacete)
realmente posto o membro na barriga
da pátria em perna aberta e lá deixado
semente que pegasse (o tempo todo
haviam-se exibido eufóricos de nus,
às Africas e às Europas de Oeste e Leste).
A isto se chegou. Foi criminoso?
Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião
do filme que as direitas desejavam,
em que como num jogo de xadrez a esquerda
iria dando passo a passo as peças todas.
É tarde e não adianta que se diga ainda
(como antes já se disse) que o povo resistiu
a ser iluminado, esclarecido, e feito
a enfiar contente a roupa já talhada.
Se muita gente reagiu violenta
(com as direitas assoprando as brasas)
é porque as lutas intestinas (termo
extremamente adequado ao caso)
dos esquerdismos competindo o permitiram.
Também não vale a pena que se lave
a roupa suja em público: já houve
suficiente lavar que todavia
(curioso ponto) nunca mostrou inteira
quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano
usada foi por tanto entusiasta,
devotamente adepto de continuar ao sol
(há conversões honestas, sim, ai quantos santos
não foram antes grandes pecadores).
E que fazer agora? Choro e lágrimas?
Meter avestruzmente a cabeça na areia?
Pactuar na supremíssima conversa
de conciliar a casa lusitana,
com todos aos beijinhos e aos abraços?
Ir ao jantar de gala em que o Caetano,
o Spínola, o Vasco, o Otelo e os outros,
hão-de tocar seus copos de champanhe?
Ir já fazendo a mala para exílios?
Ou preparar uma bagagem mínima
para voltar a ser-se clandestino usando
a técnica do mártir (tão trágica porque
permite a demissão de agir-se à luz do mundo,
e de intervir directamente em tudo)?
Mas como é clandestina tanta gente
que toda a gente sabe quem já seja?
Só há uma saída: a confissão
(honesta ou calculada) de que erraram todos,
e o esforço de mostrar ao povo (que
mais assustaram que educaram sempre)
quão tudo perde se vos perde a vós.
Revolução havia que fazer.
Conquistas há que não pode deixar-se
que se dissolvam no ar tecnocrata do oportunismo à espreita de eleições.
Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,
que ao povo seja dito de uma vez
como nas suas mãos o seu destino está
e não no das sereias bem cantantes
(desde a mais alta antiguidade é conhecido
que essas senhoras são reaccionárias,
com profissão de atrair ao naufrágio o navegante intrépido).
Que a esquerda nem grite, que está rouca, nem invente
as serenatas para que não tem jeito.
Mas firme avance, e reate os laços rotos
entre ela mesma e o povo (que não é
aqueles milhares de fiéis que se transportam
de camioneta de um lugar pró outro).
Democracia é isso: uma arte do diálogo
mesmo entre surdos. Socialismo à força
em que a democracia se realiza.
Há muito socialismo: a gente sabe,
e quem mais goste de uns que dos outros.
É tarde já para tratar do caso: agora
importa uma só coisa - defender
uma revolução que ainda não houve,
como as conquistas que chegou a haver
(mas ajustando-as francamente à lei
de uma equidade justa, rechaçando
o quanto de loucuras se incitaram
em nome de um poder que ninguém tinha)
E vamos ao que importa: refazer
um Portugal possível em que o povo
realmente mande sem que o só manejem,
e sem que a escravidão volte à socapa
entre a delícia de pagar uma hipoteca
da casa nunca nossa e o prazer
de ter um frigorifico e automóveis dois.
Ah, povo, povo, quanto te enganaram
sonhando os sonhos que desaprenderas!
E quanto te assustaram uns e outros,
com esses sonhos e com o medo deles!
E vós, políticos de ouro de lei ou borra,
guardai no bolso imagens de outras Franças,
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,
ou de Estados Unidos que não crêem
que latinada hispânica mereça
mais que caudilhos com contas na Suíça.
Tomai nas vossas mãos o Portugal que tendes
tão dividido entre si mesmo. Adiante.
Com tacto e com firmeza. E com esperança.
E com um perdão que há que pedir ao povo.
E vós, ó militares, para o quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar
ao ponto de não serdes o que deveis ser:
garantes de uma ordem democrática
em que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem democracia).
E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste a quem quiser ouvir-te.
E se os puristas da poesia te acusarem
de seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de linguagem,
manda-os àquela parte.
Não é tempo para tratar de poéticas agora.


Santa Bárbara, Fevereiro de 1976
(aniversário de uma tentativa heróica de conter uma noite que duraria décadas)
(de Quarenta Anos de Servidão, 1979)

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sábado, abril 25, 2009

:R.

Ainda não é desta que assinalo o dia do golpe de Esta... er... quero dizer... Revolução com a publicação de um documentário fotográfico em filme que realizei em 2004, pelo trigésimo aniversário do 25 de Abril de 1974... Pedi há já longo tempo a um amigo para converter o filme em formato adequado, de modo a que eu pudesse fazer o respectivo upload no You Tube, mas o encontro ainda não foi possível, apesar de morarmos tão perto!...
O famigerado filme teve a genial e indispensável contribuição do excelente fotógrafo e jornalista Tiago Valente, meu bom amigo, recentemente regressado de Roma, onde permaneceu nos últimos dois ou três anos.
As três fotografias que aqui publico - não demonstrativas do intenso trabalho fotográfico que eu e o Tiago fizemos desde as 5 horas da manhã até às 20 da noite de há cinco anos - foram recuperadas de um conjunto de CD's dos quais apenas consigo aceder ao breve conteúdo de um...
Em cima, uma das muitas centenas de fotos do Tiago Valente, esta no Largo do Carmo (creio que tirámos, os dois, mais de duas mil); a meio, uma foto minha, no Terreiro do Paço a alvorecer, e, em baixo, eu mesmo, fotografado pelo Tiago, quando disparava a foto do meio.
Termino, levando de empréstimo uma frase de Zeca Afonso lida hoje no Poesia Distribuída na Rua e, por fim, um poema do Grande Mestre Jorge de Sena. "Para se ser cidadão era necessário mais alguma coisa do que meter um voto numa urna."
«NÃO, NÃO, NÃO SUBSCREVO,...»
(JORGE DE SENA)
Não, não, não subscrevo, não assino
que a pouco e pouco tudo volte ao de antes,
como se golpes, contra-golpes, intentonas
(ou inventonas - armadilhas postas
da esquerda prá direita ou desta para aquela)
não fossem mais que preparar caminho
a parlamentos e governos que
irão secretamente pôr ramos de cravos
e não de rosas fatimosas mas de cravos
na tumba do profeta em Santa Comba,
enquanto pra salvar-se a inconomia
os empresários (ai que lindo termo,
com tudo o que de teatro nele soa)
irão voltar testas de ferro do
capitalismo que se usou de Portugal
para mão-de-obra barata dentro ou fora.
Tiveram todos culpa no chegar-se a isto:
infantilmente doentes de esquerdismo
e como sempre lendo nas cartilhas
que escritas fedem doutras realidades,
incompetentes competiram em
forçar revoluções, tomar poderes e tudo
numa ânsia de cadeiras, microfones,
a terra do vizinho, a casa dos ausentes,
e em moer do povo a paciência e os olhos
num exibir-se de redondas mesas
em televisas barbas de falácia imensa.
E todos eram povo e em nome del' falavam,
ou escreviam intragáveis prosas
em que o calão barato e as ideias caras
se misturavam sem clareza alguma
(no fim das contas estilo Estado Novo
apenas traduzido num calão de insulto
ao gosto e à inteligência dos ouvintes-povo).
Prendeu-se gente a todos os pretextos,
conforme o vento, a raiva ou a denúncia,
ou simplesmente (ó manes de outro tempo)
o abocanhar patriótico dos tachos.
Paralisou-se a vida do país no engano
de que os trabalhadores não devem trabalhar
senão em agitar-se em demandar salários
a que tinham direito mas sem que
houvesse produção com que pagá-los.
Até que um dia, à beira de uma guerra
civil (palavra cómica pois que do lume os militares seriam quem tirava
para os civis a castanhinha assada),
tudo sumiu num aborto caricato
em que quase sem sangue ou risco de infecção
parteiras clandestinas apararam
no balde da cozinha um feto inexistente:
traindo-se uns aos outros ninguém tinha
(ó machos da porrada e do cacete)
realmente posto o membro na barriga
da pátria em perna aberta e lá deixado
semente que pegasse (o tempo todo
haviam-se exibido eufóricos de nus,
às Africas e às Europas de Oeste e Leste).
A isto se chegou. Foi criminoso?
Nem sequer isso, ou mais do que isso um guião
do filme que as direitas desejavam,
em que como num jogo de xadrez a esquerda
iria dando passo a passo as peças todas.
É tarde e não adianta que se diga ainda
(como antes já se disse) que o povo resistiu
a ser iluminado, esclarecido, e feito
a enfiar contente a roupa já talhada.
Se muita gente reagiu violenta
(com as direitas assoprando as brasas)
é porque as lutas intestinas (termo
extremamente adequado ao caso)
dos esquerdismos competindo o permitiram.
Também não vale a pena que se lave
a roupa suja em público: já houve
suficiente lavar que todavia
(curioso ponto) nunca mostrou inteira
quanta camisa à Salazar ou cueca de Caetano
usada foi por tanto entusiasta,
devotamente adepto de continuar ao sol
(há conversões honestas, sim, ai quantos santos
não foram antes grandes pecadores).
E que fazer agora? Choro e lágrimas?
Meter avestruzmente a cabeça na areia?
Pactuar na supremíssima conversa
de conciliar a casa lusitana,
com todos aos beijinhos e aos abraços?
Ir ao jantar de gala em que o Caetano,
o Spínola, o Vasco, o Otelo e os outros,
hão-de tocar seus copos de champanhe?
Ir já fazendo a mala para exílios?
Ou preparar uma bagagem mínima
para voltar a ser-se clandestino usando
a técnica do mártir (tão trágica porque
permite a demissão de agir-se à luz do mundo,
e de intervir directamente em tudo)?
Mas como é clandestina tanta gente
que toda a gente sabe quem já seja?
Só há uma saída: a confissão
(honesta ou calculada) de que erraram todos,
e o esforço de mostrar ao povo (que
mais assustaram que educaram sempre)
quão tudo perde se vos perde a vós.
Revolução havia que fazer.
Conquistas há que não pode deixar-se
que se dissolvam no ar tecnocrata do oportunismo à espreita de eleições.
Pode bem ser que a esquerda ainda as ganhe,
ou pode ser que as perca. Em qualquer caso,
que ao povo seja dito de uma vez
como nas suas mãos o seu destino está
e não no das sereias bem cantantes
(desde a mais alta antiguidade é conhecido
que essas senhoras são reaccionárias,
com profissão de atrair ao naufrágio o navegante intrépido).
Que a esquerda nem grite, que está rouca, nem invente
as serenatas para que não tem jeito.
Mas firme avance, e reate os laços rotos
entre ela mesma e o povo (que não é
aqueles milhares de fiéis que se transportam
de camioneta de um lugar pró outro).
Democracia é isso: uma arte do diálogo
mesmo entre surdos. Socialismo à força
em que a democracia se realiza.
Há muito socialismo: a gente sabe,
e quem mais goste de uns que dos outros.
É tarde já para tratar do caso: agora
importa uma só coisa - defender
uma revolução que ainda não houve,
como as conquistas que chegou a haver
(mas ajustando-as francamente à lei
de uma equidade justa, rechaçando
o quanto de loucuras se incitaram
em nome de um poder que ninguém tinha)
E vamos ao que importa: refazer
um Portugal possível em que o povo
realmente mande sem que o só manejem,
e sem que a escravidão volte à socapa
entre a delícia de pagar uma hipoteca
da casa nunca nossa e o prazer
de ter um frigorifico e automóveis dois.
Ah, povo, povo, quanto te enganaram
sonhando os sonhos que desaprenderas!
E quanto te assustaram uns e outros,
com esses sonhos e com o medo deles!
E vós, políticos de ouro de lei ou borra,
guardai no bolso imagens de outras Franças,
ou de Germânias, Rússias, Cubas, outras Chinas,
ou de Estados Unidos que não crêem
que latinada hispânica mereça
mais que caudilhos com contas na Suíça.
Tomai nas vossas mãos o Portugal que tendes
tão dividido entre si mesmo. Adiante.
Com tacto e com firmeza. E com esperança.
E com um perdão que há que pedir ao povo.
E vós, ó militares, para o quartel
(sem que, no entanto, vos deixeis purgar
ao ponto de não serdes o que deveis ser:
garantes de uma ordem democrática
em que a direita não consiga nunca
ditar uma ordem sem democracia).
E tu, canção-mensagem, vai e diz
o que disseste a quem quiser ouvir-te.
E se os puristas da poesia te acusarem
de seres discursiva e não galante
em graças de invenção e de linguagem,
manda-os àquela parte.
Não é tempo para tratar de poéticas agora.

Santa Bárbara, Fevereiro de 1976
(aniversário de uma tentativa heróica de conter uma noite que duraria décadas)
(de Quarenta Anos de Servidão, 1979)

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quinta-feira, janeiro 08, 2009

I'm Still Here

domingo, novembro 16, 2008

Lábio Cortado

Como Alegre, também o Rui porventura acredita que cada palavra contém o universo; que o equilíbrio cósmico pode ser alterado por um verso errado. Como amigo desta casa blogosférica, o poeta fulgurante Rui Almeida, autor do estimado blogue "Poesia distribuída na rua", merece este indispensável post de congratulações por lhe ter sido atribuído o Prémio Manuel Alegre, na sua primeira edição, pela Câmara Municipal de Águeda.
Já disse ao Rui que estou ansioso por ler "Lábio Cortado", o livro leporino de universos por palavra que deixou pelo beicinho um júri constituído por individualidades como Lídia Jorge ou Nuno Júdice.

Um abraço fraterno, Rui. Muitos parabéns.

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terça-feira, setembro 16, 2008

"O Sono", de Salvador Dalí


"But only in their dreams can men be truly free. 'Twas always thus, and always thus will be."
John Keating (Dead Poets Society)

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segunda-feira, julho 14, 2008

(...) "It's ok, girl, we'll
____make it
Till the sun goes down forever
And until then what you got
______to lose
But the losing? We're fallen
___angels
Who didnt believe
That nothing means nothing."

in Book of Blues, Desolation Blues (8TH CHORUS), de Jack Kerouac

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terça-feira, setembro 18, 2007

Ser Benfiquista



Sou do Benfica
E isso me envaidece
Tenho a genica
Que a qualquer engrandece

Sou de um clube lutador
Que na luta com fervor
Nunca encontrou rival
Neste nosso Portugal.

Ser Benfiquista
É ter na alma a chama imensa
Que nos conquista
E leva à palma a luz intensa
Do sol que lá no céu
Risonho vem beijar
Com orgulho muito seu
As camisolas berrantes
Que nos campos a vibrar
São papoilas saltitantes.

No dia em que o Glorioso regressa a San Siro, mas desta feita com o maestro de águia ao peito, eis a muito procurada história do hino do Sport Lisboa e Benfica, inesquecivelmente cantado para a posteridade pelo grande Luís Piçarra:

Paulino Gomes Júnior era o director do jornal do clube. E também ele queria dar ao Benfica uma coisa especial. Uma canção, por exemplo. Uma canção que entrasse no ouvido e no coração e servisse de encorajamento para a caminhada que havia pela frente. Escreveu a letra, a música, e ensaiou tudo a preceito com Luís Piçarra, que ofereceu a sua voz sem par. A estreia em público ficou aprazada para a noite de 16 de Abril, no Pavilhão dos Desportos, por ocasião de um sarau com a receita a reverter pró-Estádio. Seis mil benfiquistas responderam à chamada, enchendo o recinto. A canção de Paulino Gomes Júnior e de Luís Piçarra seria a surpresa da noite. Desconhecendo como o público iria reagir, autor e intérprete aceitaram que a sua actuação acontecesse, discretamente, entre o número musical da artista paraguaia Sarita Antuñez, vedeta do Teatro Apolo, e a exibição do conjunto da «dinâmica e revolucionária» Alzirinha Camargo. Nervosos, os dois homens subiram ao palco. Paulino Gomes Júnior dirigiu-se ao piano, Piçarra ao microfone. A assistência agitou-se naquela desconfiança que sempre suscita a apresentação de uma novidade. Mas quando Piçarra entoou as notas finais de Ser Benfiquista a casa veio abaixo.Conta o jornal O Benfica o que se passou: «O sarau acabou por provocar manifestações clubistas como raras vezes temos visto. Vibrantes, apoteóticas, plenas de euforia, como foi a primeira audição de Ser Benfiquista, culminando em êxito tão clamoroso que o público ovacionou longamente, de pé, autor e intérprete. O próprio maestro, Vítor Bonjour, cederia a batuta ao dr. Paulino Gomes Júnior para que este dirigisse a orquestra na repetição do número.»Nasceu, assim, inspirada pela construção do Estádio da Luz, a canção que ainda hoje se ouve quando o Benfica entra no seu campo. A emoção dessa noite de estreia, há quase meio século, contagiou até os polícias de serviço. «Era de 363$00 a importância da folha de serviço dos guardas destacados para o pavilhão. Tal quantia, porém, foi entregue ao clube pelo senhor Domingos Ribeiro, polícia municipal que, em nome dos seus colegas, afirmou prescindirem dela com muita satisfação, dado o fim a que se destinava – engrossar a lista de dádivas pró-Estádio do Sport Lisboa e Benfica.»

Texto DAQUI

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terça-feira, setembro 04, 2007

Bastidores (Bernardo Cunha Simões, 1920-1963?)

Quando o grito se aquieta
E a revolta se suprime,
Agarra a foice firme,
Separa o joio velho
do trigo mais sublime.
Quando em silêncio aceitas
O cartola que te verga,
Vê lá se lhe acertas
Onde ele não mais se erga.
Se te esgrimes com verdades,
Grunhe fino o bacorinho;
Há-de dar-te as liberdades
Que só terias sozinho.
Bebe o trago do gargalo,
Sôfrego engasgo no vinho;
Vive livre e com embalo;
Segue feliz o caminho.
Comensal, eu não me ralo
Se passas fome de carinho,
Mas não esqueças que o galo
Desperta o pobre e maça o rico.
A turba emerge silenciosa e esguia
Todas as manhãs com o raiar do dia.
Somos peças de xadrez,
Peões fracos, meros actores
Que acabam por, à vez,
Engolir sapos; esquecer valores.
Mais dia menos dia levantam-se os mortos
Pelas nossas dores,
E actores que somos, absortos,
Deixamos vagos os bastidores
Da vida morta que levamos,
De poemas sem cantores,
Da trova brava que levantava clamores.


Bernardo Cunha Simões (Biografia)

Bernardo Cunha Simões escreveu, ao longo da vida, um vasto rol de poemas sobre a sua experiência no Alentejo e na Covilhã, onde nasceu a 21 de Maio de 1920. Bernardo iniciou-se literariamente com um conjunto de escritos sobre os anos passados no Liceu da Covilhã, onde estudou até ingressar no curso de Medicina na Universidade de Coimbra, anos mais tarde. Em Coimbra, foi colega e camarada de outro Bernardo, o Santareno (pseudónimo de António Martinho do Rosário), cuja obra inédita “O Punho”, localizada no quadro revolucionário da Reforma Agrária, em terras alentejanas, terá sido inspirada pelas conversas tardias entre ambos e pelo conhecimento partilhado de Bernardo Cunha Simões sobre o Alentejo, onde amiúde se refugiava, procurando a paz e o sossego que teimavam não abundar.
No início dos anos 40, Bernardo Cunha Simões já apresentava um conjunto vasto de textos políticos, memoriais, de debate social e até esotéricos. No entanto, nenhum fora publicado senão em documentos académicos dos quais se perdeu rasto.
Porque tinha uma avó acamada na Covilhã, padecendo de pneumonia, abandonou o curso para assisti-la, não tendo voltado para concluir o seu percurso académico. Em 1942, após o falecimento da avó nos seus braços, procurou novas experiências e lugares, tendo encontrado no Alentejo a serenidade que buscava.
Foi em Évora que Cunha Simões conheceu, na década de 50, o poeta alentejano autodidacta Jeremias Cabrita da Silva, com quem privou e passou temporadas de boémia em Cuba do Alentejo, fugido da repressão crescente de que ia sendo alvo pela parte do regime vigente. Considerado pela PIDE/DGS um “comunista indefectível” e líder encapotado de movimentos estudantis, foi desde cedo perseguido pela polícia política, para quem representava uma séria ameaça enquanto fazedor de opinião no seio académico, mesmo após o abandono de Coimbra. Escreveu para diversos fins panfletários e revolucionários, muito antes de se sonhar com o 25 de Abril. Fê-lo, no entanto, sob pseudónimos vários, pelo que é hoje quase impossível atribuir-lhe com precisão a grande parte dos textos políticos que publicou clandestinamente.
“Procurou desde criança perceber o porquê das desigualdades entre os homens”, afirmou ao Caderno de Corda o amigo Jeremias Cabrita da Silva, fiel depositário da obra poética do autor - toda ela inexplicavelmente inédita até hoje, apesar das diligências levadas a cabo por Jeremias junto de editores vários do Sul do País.
Em 1963, sob disfarce – óculos, barba e roupas que o aparentavam mais velho -, Bernardo Cunha Simões estava de regresso à sua cidade natal, depois de exilado em Paris por um ano. Percorria o emaranhado de ruelas da zona histórica da Covilhã quando foi abordado por um agente da GNR que o viu acender um cigarro com um isqueiro. Na ausência de licença de porte de isqueiro, Bernardo Cunha Simões foi descoberto e levado, algemado e pontapeado, pelo caminho da Rua Direita até à esquadra, donde nunca mais se soube do seu paradeiro ou estado de saúde. O desaparecimento foi notado, mas a preocupação de amigos e familiares mantida sigilosa, precavendo represálias. Estava travada a luta clandestina do autor, cuja obra nunca conheceu letra de forma.
O poema que hoje aqui se publica, gentilmente cedido por Jeremias Cabrita da Silva, é o primeiro texto alguma vez tornado público de Bernardo Cunha Simões. Segundo consta, foi escrito em Cuba do Alentejo, no alpendre da casa de Jeremias Cabrita da Silva.
Ontem, durante uma longa conversa telefónica com o octogenário Jeremias – que lhe permitiu ditar-me este poema -, soube da sua disponibilidade para divulgar no Caderno de Corda a obra do amigo Bernardo, facto que mais uma vez muito honra e enriquece este blogue.
Ao Gonçalo Cunha e descendência

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sexta-feira, julho 06, 2007

Preso Numa Frase

Dei por mim no soluço,
Dança de rodas, gemido.
Contínuo, o socalco pontua
Uma frase de bruços
E de dentes postiços.
Preso numa frase,
Pendente num suspiro,
Tento pôr tanto no mundo
Como quanto tiro.

Cheque ao rei dado certo,
Preso numa frase embalo o salão,
Danço com a calçada,
Beijo preto e prata o chão.

Largasse porto brando
Para uma ilha qualquer,
Levando o livro da noite pálida...
Fujo com ele... já fugi...
Na recta ilusória da alegoria
Quente de um lençol macio,
preso na frase que não li.

Nota Autoral: O poema “Preso Numa Frase” foi baseado num poema do Gonçalo Cunha (“uma brincadeira” para comigo, segundo ele), meu colega nos tempos de academismo e, curiosamente, actual colega de trabalho. Depois de comentarmos que “preso numa frase” seria um bom título de poema, foram poucos os minutos até que eu recebesse via e-mail uma “brincadeira” poética do Gonçalo. A verdade é que gostei e apeteceu-me adaptá-la. Seja como for, Gonçalo, este será sempre dos dois. Um abraço fraterno.

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quinta-feira, maio 17, 2007

Do comentário ao post... (parte II)

Pela mais saudável emulação para com o meu Irmão Trigo - e, de novo, claro está, pela desgarrada poética em tempo real na caixa de comentário do post anterior, com título homólogo -, vejo-me impelido a publicar em letra de forma a parada-resposta. Assim foi:
... diz que dói o osso ao morder,
gane de tristeza e agonia.
Pior que copiar é não saber
que ter ideias próprias alivia.
Quarta-feira, Maio 16, 2007 11:19:00 AM
-*-
Davi Reis said...
... Alivia não saber,
mais do que a sapiência.
Feliz daquele que antes quer
manter-se na ignorância!
Quarta-feira, Maio 16, 2007 3:40:00 PM
-*-
Ladrões de fato e gravata,
caneta em punho, sim senhor!
São reis com coroas de lata,
feudos sem qualquer valor...
Quarta-feira, Maio 16, 2007 3:50:00 PM
-*-
Davi Reis said...
Tenho colarinho branco e botões de punho...
Poso para tanto; tiro um mês em Junho...
Arquitecto um império; voto tristeza ao mundo,
e tudo sem sair do sério; sem sentir por um segundo.
Quarta-feira, Maio 16, 2007 4:15:00 PM
-*-
Sinto-me triste ao ouvir
a voz de quem foi roubado.
Amigo, dou-te a seguir
aquele abraço apertado.
Quarta-feira, Maio 16, 2007 4:22:00 PM
-*-
Davi Reis said...
E eu retribuo-o com muito grado.
Quarta-feira, Maio 16, 2007 4:27:00 PM

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sexta-feira, maio 11, 2007

Cereja

No capitólio do montículo de chantilly,
guardei lugar para sonhos tantos.
Foram muitas as estradas que não vi
para tomar uma cereja em verdes campos.


Inspirado num momento poético do Mestre Luís Alves de Fraga em plena aula

- * -


"Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!"

"Só vou por onde me levam meus próprios passos..."

(José Régio)

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quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Nunca é tarde para se ter uma infância feliz...

É com sincera satisfação que noto o surgimento de um número considerável de blogues que brotam das terras férteis de Algés, Cruz Quebrada e Dafundo, onde em tempos também eu criei raízes e amizades que floriram para não mais definhar. Em breve, depois de uma observação mais ou menos aturada deste epifenómeno localizado, novos links serão adicionados à lista do Caderno de Corda. O acto merecerá post cerimonial...
A fechar, para vós, a lírica de Jorge Palma, sempre apropriada:
Nunca É Tarde Para Se Ter Uma Infância Feliz

A gente já não sabe o que há-de fazer com a lua
Gerou-se um curto-circuito no canal telepático
E a caverna clandestina por detrás da cascata
Onde os amantes se entregavam à eternidade
Hoje não passa dum moderno armazém de sucata
.
Existem mil produtos para encher o vazio
Criámos computadores para ampliar a memória
E todos nós temos disfarces para aumentar a confusão
Só não sabemos como fazer o amor durar
O grande enigma continua a dar-nos cabo do coração
.
"Olá, a que horas parte o teu comboio?
O meu é às cinco e trinta e três
Ainda falta um bom bocado,
Queres contar-me a tua história?
Espera, deixa-me adivinhar,
Vais recomeçar noutro lado...
Trazes escrito na bagagem
Que a coisa aqui não deu...
Quanto a mim, também me sinto um pouco desenraízado... "
.
Também o amor se adapta às leis da economia
Investe-se a curto prazo e reduz-se a energia
E quando o barco vai ao fundo ninguém quer ser culpado
Mas nunca é tarde para se ter uma infância feliz
O cavaleiro solitário ainda sonha acordado

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quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Pequeno excerto de "Tabacaria" (Álvaro de Campos - Fernando Pessoa)

(...)

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência,
Por ser inofensivo,
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

(...)

Álvaro de Campos, 15-1-1928

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domingo, janeiro 29, 2006

O poeta, as quadras, a cachupa e o derby

Ontem, noite alta no Bairro Alto, depois de um jantar de aniversário e de alguns reencontros felizes, desembocámos - eu e creio que mais nove pessoas - no segundo andar de um prédio aparentemente abandonado onde, a qualquer hora da noite, se pode comer a exótica feijoada conhecida como cachupa. Não me recordo nem do nome do sítio (não se poderá apelidar restaurante, até porque é clandestino) nem do da rua, que, no entanto, não deixa de ser nas imediações próximas do Bairro. Em ambiente comunitário, dissipados preconceitos sociais de qualquer espécie, comemos e bebemos com satisfação. Junto a uma parede da sala, sem termos dado conta, estaria a nós atento um poeta, senhor dos seus sessenta e tal, setenta anos. Barba filosofal mais branca do que negra, tal como o cabelo, que aureolava o crânio, quimérico em cima, numa calvície monacal. A certa altura, éramos apenas três, se bem me recordo: eu, o Gaspar e o Dantas, e o poeta abeirou-se de nós com uma folha A5 de papel listado. Apresentou-se cordialmente, disse ter observado o grupo, que o inspirara a escrever uma quadra, a qual no-la leu de pé:

«Uma dezena de amigos
na 'Caxupa' se sentou;
eram verdes e vermelhos
numa paz que ali pousou!»

Agradecemos-lhe o gesto. O poeta, Zé Fernandes - assim soube, uma vez que a quadra vinha atribuída com respectiva assinatura legível -, trocou comigo algumas palavras, qualquer coisa acerca de escrever versos de sete sílabas, e voltou a sentar-se. O verso onde se referia ao facto de os amigos serem «verdes e vermelhos», reportava-se à preferência clubística de alguns de nós, que traziam ainda, horas depois do nefando derby entre Benfica e Sporting (1-3), cachecóis de ambos os clubes ao peito. De imediato, Dantas e Gaspar tiveram oportunidade de saciar curiosidade quanto ao papel, e leram a quadra. O Gaspar lançou, prontamente: «Então, agora escreve tu um para ele!» Assim fiz e, em um ou dois minutos, a contra-resposta:

Um poeta de nós se abeirou
quando à mesa estávamos dez.
Que poema sublime nos dedicou!;
A liberdade ditou-lhe o que fez.

Levantei-me da mesa, fui ter com o senhor Zé Fernandes e disse-lhe: «Escrevi-lhe agora uma pequena quadra. Apreciei o seu gesto. Se não se importar, publicá-las-ei no meu blogue com devida atribuição de autoria...» O poeta fez uma careta, disse não ter acesso ou familiaridade com a Internet, pelo que não teria possibilidade de consultar o Caderno de Corda, mas acedeu. Leu a minha quadra, pareceu ter gostado muito, e não se fez rogado: nova resposta, ali mesmo, comigo em pé, que esperei pacientemente em silêncio a redacção pausada do poeta:

«Esboroaram-se os dez da mesa
deixando um perfume ridente.
São amigos que p'ra sempre
minh'alma não pesa!»

Cumprimentámo-nos e voltei para junto do Gaspar, já noutra mesa do estabelecimento, onde estava também o Guiller. Daqui endereço, portanto, um abraço fraterno ao senhor Zé Fernandes, que àquela hora estava naquele local só com as suas quadras e os seus botões.
p.s. - Se algum dos presentes por acaso ler este post, recordem-me o nome do local e, se possível, a rua, ok? Por uma questão de rigor...
n.b. - Aquele abraço para o Guiller, que respondeu à chamada, completando o post na respectiva caixa de comentário.

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sábado, janeiro 14, 2006

Nota Autoral 2 - "Photopoiesis" e "Cartas de Amor Ridículas"

Iniciei, na passada quarta-feira, nova empreitada poética: a série composta em tempo real "Photopoiesis" - poemas súbitos e instantâneos, em pleno desenvolvimento, com base inspiracional numa fotografia ou imagem. Hoje, introduzirei a novel série "Cartas de Amor Ridículas", também na forma poética, assinalando a óbvia influência de um poema de Fernando Pessoa (sob o heterónimo Álvaro de Campos) no tocante à titulação do compêndio amorável. Não poderia deixar de encetar ambas as séries poéticas sem uma palavra. Seguem-se, portanto, algumas mais - e apropriadas - do egrégio e sublime revérbero parcial de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos:
Todas as cartas de amor são ridículas

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos, 21 de Outubro de 1935

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quinta-feira, dezembro 01, 2005

Aniversário (Álvaro de Campos)

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa-o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), 15/10/1929

Fernando Pessoa faleceu no dia 30 de Novembro de 1935. A curiosidade não se queda por aqui: Que melhor poema do que este para eu publicar no Caderno de Corda, hoje, um dia depois do meu aniversário?

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terça-feira, outubro 04, 2005

Trecho do poema "O Amor, Quando se Revela", de Fernando Pessoa

(...)

Quem quer dizer o que sente
Não sabe o que há-de dizer
Fala: parece que mente...
Cala: parece esquecer...

(...)

Fernando Pessoa

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domingo, agosto 21, 2005

Resposta à questão de Saulo Mendes, ontem, no Mensagem na Botelha: "Quem somos?"

Não somos os mesmos a cada segundo que passa, a cada gota de suor vertido, a cada repetido esgar vaidoso na vidraça de um carro brilhante que já fora outro antes de ter batido. Éramos outros antes do cão ter morrido e deixado a casa vazia de um olhar ternurento; antes de, dia após dia, termos visto tanta gente ter perdido e ganho um sorriso de contente. Eles eram outros - são outros! - sempre que agora deixa de ser presente. Meu amigo de sempre!, nossa amizade é constante! Mas nós somos outros.
"Je est un autre", Arthur Rimbaud

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terça-feira, agosto 09, 2005

Quadras de Agostinho da Silva 1

A face oculta da lua
só banha de seu luar
aqueles que não o vendo
o sabem imaginar.

Agostinho da Silva

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sexta-feira, junho 24, 2005

Cântico Negro (José Régio)

Não foi e não será meu costume fazer do Caderno de Corda um placard de afixação, trasladação ou reprodução de obra alheia. Se tal já se verificou, deve-se à espontaneidade singular e inigualável de algo que vale por si. Um poema, por exemplo, e nenhum outro. "O" poema. Hoje, é esse o caso. Pimenta, esta é para ti. Penso saberes porquê:

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio
José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta, que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estreia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

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