sábado, março 04, 2006

"Jorge Palma, O artista português", Parte 6 e última (Entrevista integral, uncut, ao jornal Impress, 2003)

Mesmo gravando discos, e tendo atingido alguma notoriedade em Portugal, “fugias” para o estrangeiro, onde não raras vezes tocaste nas ruas e no metro. Eras ou és um homem em fuga? De quê?

J.P. – Aproveitei enquanto tinha pernas para andar. Às vezes, tenho encontrado a solução em mudar de ambiente. Muitas vezes na minha vida, quando me senti desconsolado, insatisfeito, a minha solução era fazer a mala e abalar, com a guitarra...

Mesmo sem rede... fugias de quê?

J.P. – Mesmo sem rede. Fugia em virtude do meu desagrado em relação à vida que estava a levar, e achava que a melhor maneira era ir dar uma curva.

Isso acabou? Agora já não podes fugir da mesma maneira...

J.P. – Eu não sei se acabou, quer dizer, para já, pela idade. Já não tenho a elasticidade, a paciência ou pedalada para...

Também já não precisavas de dormir na rua...

J.P. – Pá, se fosse preciso... Quer dizer, vemos aí muito boa gente... e nem é preciso ir para o Iraque. Em Lisboa vês aí gente a dormir na rua e alguns bastante velhos, já. Portanto isso... a necessidade, às vezes, a isso obriga. Mas, por outro lado, criei responsabilidades. Os filhos... e a relação com a editora (os contratos são de outra forma), com o meu manager... Há uma máquina montada de modo que eu, neste momento, acho que não tinha coragem de ir para as Bahamas... Para as Bahamas!, para Timor ou... mas nunca se sabe. De qualquer maneira, como tenho tão boas relações com o público, com todo o establishment, no fundo, com os músicos... tenho a minha banda, neste momento há o projecto Cabeças no Ar, estamos na estrada, começámos na semana passada e, sei lá, estão sempre coisas a acontecer, há imensa gente a pedir-me letras e músicas e, portanto, neste momento não me passa pela cabeça, embora vá mudar de casa, fazer essas saídas. Também acho que há uma idade para tudo... Aos cinquenta e tal anos há pessoas que fazem mas...

Ainda hoje trabalhas por encomenda. Encaras isso como uma forma de sustento ou nem por isso? Ou seja, quando passas 14 anos sem gravar, e apesar do reconhecimento que já te era devido e as solicitações, isso seria mais uma forma de sustento, ou o que propriamente gostarias de fazer?

J.P. – Nem por isso porque, normalmente, essas coisas não são bem pagas. Eu não ganhei muito dinheiro nem nada que se pareça, ou seja, não poderia sobreviver do meu trabalho em peças de teatro ou...

Era mesmo por prazer e pelas pessoas?

J.P. – Para já, pelas pessoas que envolve, desde o Jorge Silva Melo ao Rui Madeira, ao Manuel Sintra. Depois, pelos actores: a Maria Velho da Costa, a Regina Guimarães, as pessoas com quem trabalhei, o João Barreto... Todas essas pessoas me ensinaram qualquer coisa. Era uma questão até de prestígio e de uma aprendizagem fundamental. É daquelas coisas a que eu nunca diria não e, por exemplo, quando faço letras ou músicas para alguém, como para o Gonzo ou gravo com a Né Ladeiras, não me vem praticamente dinheiro daí. É mais pelo gozo. O dinheiro vem sobretudo de espectáculos.

Mas, com essa dispersão, podias não conseguir dedicar-te a fundo ao mais sublime da tua criação...

J.P. – Isto é uma questão de saber gerir o tempo porque, às vezes, curiosamente, quando eu estou empenhado em qualquer coisa que me dá muito trabalho, como foi o caso das canções de Brecht, ou quando surge “Os Filhos de Rimbaud”, por exemplo, em que eu tive de, repentinamente, escrever quatro músicas, isso estimula as minhas células cinzentas e, portanto, a minha actividade, a minha capacidade de trabalho, aumenta. É uma questão de se saber gerir, de se aproveitar o balanço, a inércia, a velocidade a que vou, e aí consigo muitas vezes desdobrar-me e escrever canções para mim. Eu não tenho uma caixa de velocidades ajustada para... isto é um bocado ao sabor do que vai acontecer. Sou capaz de estar aparentemente sem fazer nada, sem sequer estudar piano durante uns tempos...

Está aí sempre a fervilhar qualquer coisa...

J.P. – Pois. Isto está em ebulição. E normalmente não me preocupa. Parece que, de facto, passou muito tempo entre dois discos de originais. Agora vai passar menos.

De forma sintetizada, consegues identificar uma mensagem predominante, ou várias, que subjazam na tua obra?

J.P. – Sê quem tu és (risos). E procura sê-lo o melhor possível, descobrir a força para te afirmares não de uma forma prepotente, mas com jeito e com espírito humanista, se quiseres. Os valores da liberdade e da justiça, da verdade...

Dada a clara consciência crítica e social que a tua obra também revela, com que olhos vês a presente conjuntura internacional, os tempos que correm? Tens posição política?

J.P. – Há uma certa desilusão, mas tu tens consciência das tuas próprias limitações a esse nível porque...

Não és um Super-Homem...

J.P. – Não, e há muita gente com boa vontade, por diversos métodos, desde os pacifistas, que se manifestam, até pessoas bem intencionadas que foram para lugares de poder. Acaba por ser cada vez mais nítida para mim, e acho que para toda a gente que queira olhar, a grande fraude institucionalizada por todo o lado, as ambiguidades, as ganâncias, a febre do poder...

Tu não almejas um papel na consciencialização das massas, como um Zeca Afonso ou outros?... As revoluções são sempre necessárias.

J.P. – Pois, epá, eu procuro dizer o que penso e o que sinto...

Mas tens um bocadinho disso, de revolucionário...

J.P. – Eu acho que sim, mas, quando faço alguma coisa, procuro fazer reflectir o que estou a sentir nessa fase, as coisas de que entretanto me apercebi; tento reflectir aquilo que sinto e penso. É a minha maneira de contribuir para que as consciências possam ser alertadas.

Não pensas na “internacionalização”, em dar o salto, ter visibilidade além fronteiras?

J.P. – Eu sei que em Espanha, Salamanca, há pessoal que me curte, sei que há italianos em Florença, em Cambridge há núcleos estudantis que conhecem a minha música. Sei que tenho coisas que são utilizadas por professores para ensinar a língua portuguesa.

Voltando, e para terminar, tens posição política?

J.P. – Não é por acaso que são os partidos de esquerda que me solicitam, mas se organizações de centro-direita me convidarem profissionalmente, eu não recuso desde que não haja censura. O importante para mim é que não interfiram naquilo que tento dizer.

FIM

Etiquetas:

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

"Jorge Palma, O artista português", Parte 5 (Entrevista integral, uncut, ao jornal Impress, 2003)

Quanto à “nova” música portuguesa e novas tendências, o que recomendas?

J.P. – Adoro os Clã, gosto dos Toranja, dos Terrakota, gosto muito dos Blind Zero, dos Ornatos Violeta... Xutos for ever, 'né?

E lá fora?

J.P. – Olha, eu continuo a ouvir o Tom Waits e... mas não tenho acompanhado muito. Isto tem sido uma fase de grandes mudanças na minha vida e eu vou sair desta casa [n.d.r. - Rua de São Bento], os discos estão... epá, alguns dentro de sacos ainda desde o Verão, e não tenho comprado música um bocado por isso também.

Pela descoberta, tens ouvido alguma coisa que seja mesmo “aquilo”?

J.P. – Por acaso não. Não tenho seguido muito. Continuo a ouvir rock. De Red Hot Chili Peppers a Tom Waits e Dylan e...

Porquê um vazio de 14 anos sem gravar um único album de inéditos?

J.P. – Foram quatorze?

Foram. Tipo Sporting... (risos) Gravaste coisas mas nada de inéditos.

J.P. - Estive sempre a trabalhar. Houve coisas que me deram muito trabalho.

É que parecias ter uma certa angústia. Querias gravar mas havia sempre qualquer coisa...

J.P. – Não, eu não tinha... aqui há várias coisas: houve trabalho efectuado de facto, que me ocupou bastante, como acabar o curso de piano, que ainda foram uns anos a estudar. Portanto, aquilo deu trabalho e demorou tempo.

E quando acabaste o Conservatório, gravaste o “Só”, voz e piano em simultâneo...

J.P. – Exacto. Se me enganasse no fim da música, voltava-se ao princípio - ou mesmo que não me enganasse. Aí, contei com a produção sobretudo do José Manuel Fortes e também do Francis, que não deixavam passar nada; quer dizer: se aquilo estivesse um bocado mortiço ou não sei quê. Mas depois começaram a convidar-me para cenas de teatro que também me deram trabalho. Escrever e trabalhar letras, textos, neste caso.

Mas tu também te associaste ao teatro um pouco pelo gosto que lhe tens... Brecht...

J.P. – Tenho gosto e... pois, depois houve as canções do Brecht, e cá está a tal influênciazinha não é? [n.d.r. - referindo-se a uma certa erudição clássica] Mas eu tive de estudar uma data de partituras do Kurt Weil e do Heisler, que me deram um trabalhão, claro! Estudar aquilo tudo para tocar ao piano, algumas para cantar, se bem que a maior parte fosse cantada pela Lia Gama e pelos outros actores. Foi muito trabalho. Noutra peça do Brecht trabalhei com a Regina Guimarães e com a Maria Velho da Costa. Também adorei trabalhar com ela a parte do texto, transformar aquilo em canções, e tive cada vez mais espectáculos. Fui tendo trabalho e, portanto, eu não sentia nem necessidade económica nem... porque estava entretido, estive sempre entretido. Depois havia as noitadas também e uma certa dispersão na minha vida toda, a minha indisciplina atingiu assim um cume, um clímax. Mas também ia adiando, talvez por um certo medo de não ser capaz de fazer uma coisa... um disco ao meu sabor.
Brevemente, a Parte 6. Não perca os próximos capítulos.

Etiquetas: ,

domingo, fevereiro 19, 2006

"Jorge Palma, O artista português", Parte 4 (Entrevista integral, uncut, ao jornal Impress, 2003)

Inicialmente, cantavas em inglês. Sei que tiveste alguma dificuldade em “converter” as tuas letras para português... Como é que entra o Ary dos Santos nessa história?

J.P. – Pois, foi o meu mestre em termos de técnica. Eu chegava lá, cantava-lhe uma melodia, eventualmente uma letra em inglês ou fazia lá-lá-lá, ele ouvia e começava a escrever coisas sem nexo, mas já com a métrica. Ia pensando e ouvindo, ia mudando esta palavra, aquela frase, e, de repente, tinhas ali uma canção com sentido. Ele era um mestre, de facto. Aprendi em muitas sessões, a trabalhar comigo ou com outros, porque ele gostava de trabalhar com muita gente à volta, gostava de sentir a atenção, de ter a casa cheia. Fui aprendendo a vê-lo trabalhar.

E o teu método criativo, como se processa?

J.P. – Não tenho método. É uma coisa um bocado anárquica; não tenho um processo, uma disciplina, um método disciplinado de trabalhar. É conforme calha...

E quando tens mesmo de fazer, como já te aconteceu, para o dia seguinte?

J.P. – Acontece muitas vezes alguém pedir-me uma letra ou uma música e, como eu estava a dizer, é-me mais fácil musicar uma letra já feita do que inserir uma letra numa música pré-existente. Demoro mais tempo a construir uma letra para uma música já feita do que o oposto. Musicar uma letra é à primeira ou à segunda porque a letra conduz-me logo para um tipo de música, para um ambiente mais calmo, mais agitado, tom menor ou tom maior, mais linear ou com maior variedade em termos de tempos, de ritmos, portanto, mais simples ou mais complicado...

Mas tu tens coisas que são bastante complexas, que não se fazem assim à primeira...

J.P. – Pois, há músicas em que eu exploro a parte rítmica, a parte harmónica, a variação de compassos inclusivamente... Influências do rock sinfónico, dos Genesis, do Zappa - o Zappa não é propriamente rock sinfónico, mas, portanto, desse tipo... -, Gentle Giant, Soft Machine, etc... E grupos de fusão: os Chicago, os Blood Sweat and Tears, influências do jazz, sei lá... Houve uma altura em que me dava imenso gozo fazer músicas, algumas, de oito minutos...

Autores como Sérgio Godinho, José Mário Branco, Bob Dylan, Paul Simon, Led Zeppelin, Zappa, Lou Reed, etc, foram influências incontornáveis na tua música... Por vezes tu tentaste mesmo imitá-los, num bom sentido...

J.P. – E muitas músicas surgiram assim. Olha, digo-te já: a “Terra dos Sonhos”, que gravei em '79, saiu em '80, é à partida uma tentativa de imitar o Sérgio, e foi por isso que o convidei para gravar comigo. E foi porreiro. É evidente que, quando o tento imitar, eu já sei que não vai sair igual (risos). Portanto, não tenho problema nenhum nisso. Já ouve canções que surgiram a tentar imitar o Neil Young ou o David Bowie... Se eu te disser que o “Bairro do Amor” é uma tentativa de imitação do Lou Reed, também de nenhuma canção em particular mas...

Podia ser o “Satélite do Amor”...

J.P. – (risos, trauteando Sattelite of Love, de Lou Reed)

Agora, tens uma parceria com o Sérgio Godinho. Porque é que os dois não se juntaram mais vezes antes?

J.P. – Eu estava a falar do individualismo... mas não é o caso. Por exemplo, o Sérgio, já num espectáculo grande que fez, não me lembro se no Coliseu se na Aula Magna, convidou-me para participar. E eu tenho convidado - tenho um bocado tendência para convidar muita gente - os meus amigos para participarem em espectáculos e nos discos. O Sérgio já me convidou para fazer coros em discos dele, convidou-me para cantar. Não me lembro como é que se chama a canção agora, de repente, nem me estou a lembrar da canção... É uma balada muito bonita. Não é das mais conhecidas... Mas, de facto, não sei..., há um certo individualismo, falando da parte de composição, sobretudo. Acho que nós gostamos de trabalhar sozi... não!, o Sérgio já tem trabalhado bastante com os brasileiros, por exemplo. Com o Milton, esse pessoal todo. E agora, neste disco [n.d.r. - O Irmão do Meio], está o Milton, está o Zeca Baleiro, que ele convidou para a Festa do Avante e que eu estive a ver, acho que há dois anos. Olha, não sei pá, a gente encontra-se sistematicamente. Para já, nos palcos, e na rua. Aliás, é giro porque, quando eu estava a viver baseado em Paris, não é?, encontrei o Sérgio para aí três ou quatro vezes na rua, assim ao virar da esquina, a comprar tabaco. Também porque se frequentava o mesmo tipo de zona... Quartier Latin, Babylon ...

Andavam os dois fugidos?

J.P. – Pois! Mas fartei-me de encontrar portugueses. Até o Zeca Afonso pá! (risos) O Júlio Pereira, sei lá, o Pedro Osório...

O Júlio Pereira tocou contigo...

J.P. – Gravou comigo muitas vezes. No “Té Já”, no “Bairro do Amor”... O Rão também está lá... Ah, nisso tenho tido muita... por acaso nunca tive um «não» de ninguém e tenho convidado os melhores... Para mim, não é?

Um álbum contigo é um momento histórico!

J.P. – Mas eu nunca escrevi uma canção com o Sérgio, estava a lembrar-me disso. Nunca aconteceu, nunca calhou. Com o Vitorino já. Também nunca escrevi nenhuma canção com o Fausto. O Fausto, então, acho que gosta muito de trabalhar sozinho...
Brevemente, a Parte 5. Não perca os próximos capítulos.

Etiquetas: ,

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

"Jorge Palma, O artista português", Parte 3 (Entrevista integral, uncut, ao jornal Impress, 2003)


Esta tem alguma malícia: Se hoje tivesses 18 anos, inscrevias-te numa “Operação Triunfo”? Tendo em conta as directrizes que regem programas deste género, crês ser possível ver saltar Jorges Palmas, Godinhos, Zecas ou Dylans de lá para a ribalta? Ou seja, será que indivíduos com capacidades realmente acima da média e não simplesmente boas vozes...

J.P. – Pois, pelos vistos... mas já desde o “Chuva de Estrelas” que de lá saíram... Sara Tavares, por exemplo...

Mas... raros casos...

J.P. – São raros casos...

Também com o apoio que tinham na retaguarda... tendo presença e uma boa voz não seria tão difícil mas...

J.P. – Pois...

No teu caso, vocês que tiveram de lutar por um lugar ao sol e o conseguiram por mérito próprio...

J.P. – Bom, repara, há um bocado estávamos a falar de a gente se conhecer, os músicos, as bandas, não é?, e os cantores como o Paulo de Carvalho, o Fernando Tordo, o Carlos Mendes... Havia uma...

Um certo espírito comunitário?

J.P. – Havia um espírito de comunicação muito aberto, de entreajuda, e, por outro lado, com o pessoal dos meios de comunicação. Olha, o Carlos Cruz, por exemplo; o Thilo Krassman, o Júlio Isidro... As pessoas que já nessa altura estavam em controlo das poucas editoras que havia... Tratávamo-nos todos por tu e, de certo modo, eu, por exemplo, tocava... benzinho, não é?, e então todo o pessoal do meio me conhecia. Portanto, não me foi muito difícil gravar os primeiros discos. E nunca tive problema, de facto. Quando eu tinha material, nunca me preocupei com uma regularidade de se fazer um disco por ano ou...

Quase automaticamente, as pessoas do meio reconheciam-te valor...

J.P. – Sim, desde os primeiros discos.

Achas sinceramente que, hoje, um indivíduo com o talento do Sérgio Godinho ou do Bob Dylan, por exemplo, com vozes nada por aí além, passavam num casting a imitar outro? É por isso que estou a fazer esta pergunta.

J.P. – Exacto. Vêem-se ali óptimas vozes, muitas delas já bastante seguras e bem trabalhadas... Agora isso não chega porque, sobretudo a nível de letras e de composição num modo geral, letras e músicas...

Eles assim são como receptáculos...

J.P. – Exacto. Reproduzem mas não produzem a matéria prima. E, nesse aspecto, temos algum défice. Por outro lado, há bandas a escrever muito bem, até em inglês, como é o caso dos Blind Zero, entre outros... Temos aí os Clã, temos muita gente a fazer coisas muito porreiras. Mas eu não estou a tentar fugir à questão da “Operação Triunfo” e do “Chuva de Estrelas” e não sei quê...

Mas não seria muito mais produtivo ter também gente a tocar realmente?; grupos, projectos, ao vivo?...

J.P. – Repara numa coisa: Para todos os efeitos, esses programas são operações de marketing, máquinas de construir audiências, e eu prefiro qualquer desses programas, até pelo pessoal que envolve - a Maria João, os professores e não sei que mais -, mas aquilo não é uma academia de facto, ou seja, a maior parte daqueles putos não vai tendo apoio à medida que vão saindo. Conquistam alguma visibilidade, aprendem alguma coisa. Embora para alguns possa ser eventualmente um trampolim, é uma questão de sorte também, de jeito para se mexerem, e de talento! Eu acho que o que conta no fim é o talento e a vontade.

Não me oponho à existência desses programas, nem pouco mais ou menos.

J.P. – Se comparares com “Big Brothers” e não sei quê, mil vezes este...

Nem acredito que, num programa deste género, os tipos que têm um talento nato, que queiram escrever e que queiram fruir a liberdade de fazer coisas como tu fizeste, o Sérgio Godinho, ou outros, e que tenham coisas para dizer, se os há, sequer concorram a um programa destes pela mera questão da visibilidade...

J.P. – Pois... eu, sinceramente, acho que não é por aí que se vai construir um tecido artístico... Para criar estruturas, não é por aí. É evidente que o que faz falta é, para já, locais como o Johnny Guitar...

Hoje em dia não temos sítios para tocar...

J.P. – Não há, não há... isso é uma grande lacuna. Falta a prática de ver disseminadas coisas assim.

Nunca pensaste em fazer uma coisa do tipo Johnny Guitar?

J.P. – Epá, eu acho que sou um desastre para gerir um negócio desses (risos). Mas voltando, sobretudo a rádio... Tu ouves a maior parte das estações de rádio, as mais importantes, com maiores audiências, parece que estás em Inglaterra ou nos Estados Unidos, e a passar temas ou “muita” velhos ou mesmo mauzinhos... Nem sequer é a melhor música anglo-americana que é passada, de um modo geral. E na televisão, que é que tens? Tens talk-shows, vais lá fazer um playback ou tocar uma musiquinha e pronto. Saiu um álbum...
Tu não te dás muito aos playbacks ...

J.P. – Prefiro tocar ao vivo, é evidente. Uma coisa são os programas que nos anos oitenta havia, programas de uma hora, semanais, com o pessoal português, que deixaram de existir. Hoje, quando o rei faz anos, aparecem os Madredeus, mas não há essa prática, o que é um desconsolo, acho que é ridículo. A única hipótese que tu tens de aparecer na televisão e mostrares uma canção ou duas do teu novo álbum, é ires ao Herman. Mas normalmente não há condições sequer para tu tocares ao vivo. O Herman, por acaso, é uma excepção. A maior parte das bandas que lá vão até fazem... como é uma série de convidados, em tempo real, para montares o backline, para não sair um som de merda, tu jogas pelo seguro e fazes o playback. Isso, nesse aspecto, não está nada facilitado.
Brevemente, a Parte 4. Não perca os próximos capítulos.

Etiquetas: ,

terça-feira, fevereiro 14, 2006

"Jorge Palma, O artista português", Parte 2 (Entrevista integral, uncut, ao jornal Impress, 2003)


Por volta de ´70, andaste à boleia, sabe Deus como, um pouco por toda a Europa, a tocar na rua. Os tempos eram difíceis e conturbados. As drogas proliferavam e chegaram a perguntar-te, na tua própria casa, quem eras tu.

J.P. – Isso é já na segunda metade dos anos setenta.

Pois, é mais para a frente. Hoje já não manténs esse andamento...

J.P. – Não, em termos de drogas, não. A minha abstinência de bebida é bastante recente. Já fiz várias tentativas, sobretudo o ano passado, que deram em recaída e, neste momento (2003), acho que já ultrapassei essa fase.

E agora? Assentaste? A saúde é uma preocupação tua ou ainda te dás a alguns excessos? (uma vez que era uma chatice perdermos prematuramente um criador como tu)

J.P. – É verdade. Estou a fumar desalmadamente... senti-me... sobretudo... (é evidente que já tenho 52 anos e essas coisas sentem-se) ... eu bebia em excesso, as ressacas eram horríveis, e comecei a sentir-me deprimido porque não estava a construir...

Não eras tu que tinhas mão nas coisas...

J.P. – Não, às tantas já não era. Não tinha força de vontade, não tinha energia para construir coisas. Quando estava bêbedo não fazia nada de jeito, não é? Nem escrita... Houve mesmo situações de concertos em que eu saía de lá a sentir que podia ter dado muito melhor, ou me esquecia da letra ou, sei lá, que isso pode acontecer (acontece a muito boa gente), mas a sentir que a minha prestação, a minha dádiva, a minha oferta, estava muito aquém daquilo que eu podia fazer, e nas ressacas, então, era uma inactividade total.

Boémia e noites brancas... Para aproveitar o escasso tempo de viver? Consideras que, de alguma forma, o teu intenso desejo de liberdade foi alcançado ou, por outro lado, te prejudicou?

J.P. – Digamos que, na relação com as drogas, incluindo o álcool, há fases em que eu escrevi coisas que considero bastante interessantes e bem feitas sob a influência do álcool ou... sobretudo. O álcool, digamos que tem sido a minha droga - droga na medida em que consumia em demasia, sem controlo, porque é bom beber um bom vinho, um bom champanhe ou...

Nesse caso, pões de parte as drogas leves...

J.P. – Não, eu não tenho nada contra fumar um cigarro de haxe ou de erva, mas não sinto necessidade, percebes? Não é uma coisa que me ocorra frequentemente. Se estiver num círculo de amigos em que me passam um charro, eventualmente até fumo. Nesta altura do campeonato, estou a evitar tudo isso. A evitar não, estou mesmo afastado desses consumos. Estou a fumar muito e a beber muito café. São as coisas que neste momento me poderão estar a prejudicar do ponto de vista da saúde. Acontece que eu tenho um organismo de ferro, pelos vistos, não é? Senão, podia muito bem já não estar aqui... Mas há outra coisa fundamental em relação a isso, porque há aquele engano de que podes pensar que a criatividade se pode esgotar caso não tenhas o auxílio dessa bengala. Não sinto nada isso, pá! É um medo injustificado. Sinto a minha cabeça muito mais leve e livre. Essas experiências todas, aconteceram, tinham de acontecer e foram experiências. Podiam ter dado para o torto; felizmente não deram.

Tocaste no 1º Vilar de Mouros. Como sopravam os ventos nessa época em termos de oportunidades artísticas e mentalidades, comparativamente ao panorama musical hoje estabelecido?

J.P. – Bom, o Festival de Vilar de Mouros foi um acontecimento à escala nacional muito, muito importante porque vivíamos numa ditadura. Para todos os efeitos, o regime era o mesmo - era o Marcelo Caetano, já não o Salazar -, mas foi um recriar do Woodstock à escala portuguesa.

Dois anos depois...

J.P. – Exacto, e isso foi muito giro porque foi de facto muito pouco tempo depois. Foi uma lufada de ar fresco enorme. Passei lá o tempo todo. Acampei, como aliás quase toda a gente, porque não havia infraestruturas, e foi muito bom. Houve muitas bandas, aquilo funcionou maravilhosamente, o espírito... as pessoas despiam-se, queriam... os guardas não chateavam, a população local ficava um bocado de boca aberta, as lojas esgotavam tudo, não havia pão...
Brevemente, a Parte 3. Não perca os próximos capítulos.

Etiquetas: ,

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

"Jorge Palma, O artista português", Parte 1 (Entrevista integral, uncut, ao jornal Impress, 2003)


Na infância, o teu brinquedo foi um piano. Começaste a ter aulas aos seis anos. Aluno de vintes na primária, seguiu-se o “descalabro” no Liceu Camões e, consequentemente, o colégio interno. Eras um miúdo meio revoltado?

J.P. – Eu não diria revoltado, eu diria rebelde, inconformista ou... epá...

A que é que se isso se devia?

J.P. – Era um miúdo com... havia uma série de coisas de que eu não gostava, a sociedade em que se vivia era uma... portanto, havia uma repressão e opressão, sentia-se a opressão, uma sociedade muito antiquada, conservadora. Há sociedades conservadoras que não são necessariamente retrógradas, ou seja, conservam os seus valores e têm brio na tradição e não sei quê... No nosso caso era uma estagnação pura e simples, era um país cinzento, o ensino, a educação, tudo era desconfortável, desagradável e, portanto, é natural que um miúdo de dez ou onze anos, que vai para o liceu, começa a conhecer os amigos, uns mais vivos que outros, mais vivaços... e eu tinha tendência para alinhar com os mais vivaços, não é? (risos)

Nunca tiveste no horizonte o curso, seguir os estudos?

J.P. – Não, era um dado adquirido. Era uma coisa que nem sequer dava para eu me interrogar ou pôr em causa porque estava decidido que eu acabava o liceu e depois ia para a Universidade e, não sei porquê, mas o pessoal - o pessoal, quer dizer, a minha mãe, o meu pai, a família - achava que o menino tinha muito jeito para Engenharia Electrotécnica (risos), e eu, “tá bem, porque não, tudo bem”, lá porque sabia fazer umas ligações e tinha apanhado uns choques, desmontado uns brinquedos e voltado a montá-los e não sei quê... Depois sobravam sempre peças mas... pronto, foi uma coisa que eu naturalmente segui. Por exemplo, quando acabo o quinto ano e é preciso decidir se vou para letras ou ciências, naturalmente fui para ciências porque ia ser engenheiro. Se calhar, se tivesse pensado, fazia mais sentido ir para letras. Como no fundo havia uma relação com a música, que se manteve desde sempre, tão espontânea, tão natural, acho que nunca pus em causa que a música faria parte da minha vida, que eu iria sempre funcionar com a música. Tirar um curso paralelo, tudo bem! E mesmo assim ainda fui até ao segundo ano, mas então houve uma série de mudanças políticas, uma grande agitação estudantil, eu comecei a ganhar o primeiro dinheiro - aliás, o primeiro dinheiro foi ainda com as bandas -, mas comecei a ganhar dinheiro a solo, portanto, a fazer orquestrações, gravei o primeiro disco (single)...

Como é que tu conseguiste...

J.P. - Comecei a perceber que dava para sobreviver com a música e cada vez mais...

Conhecias pessoas...

J.P. – Sim, era um meio pequeno... eu conheci os músicos praticamente todos, de Lisboa, Porto, Algarve...

Paravam todos nalgum sítio? Vá-Vá?

J.P. – O Vá-Vá, por exemplo, era um sítio de referência.

Os “Sheiks”?

J.P. – Os “Sheiks”...

Que te levaram ao Ary dos Santos...

J.P. – Exacto, o Fernando Tordo foi quem me deu o telefone do Ary... mas conhecíamos todo o pessoal. No primeiro festival de Vilar de Mouros, estive lá com a minha banda e toda a gente se conhecia.

A tua banda era o Sindikato...

J.P. – Sim. A gente tocava sobretudo covers.

Mas eram conhecidos, já na altura...

J.P. – Éramos conhecidos sobretudo no meio estudantil. Fazíamos as festas dos liceus e... fartámo-nos de tocar.

Em álbuns como o “´Té Já”, de ´77, reuniste uma série de músicos de calibre... Rão Kyao, Júlio Pereira, Armindo...

J.P. – O Armindo gravou bastante comigo.

Tu conhecia-los todos ou era a editora que...

J.P. – A gente conhecia-se. Por exemplo, se eu precisava de um Hammond - um órgão que quase não havia em Portugal -, o Zé Cid, que tinha um, emprestou-mo várias vezes. Havia no Porto também o Miguel Graça Moura (maestro). Esse era um dos que tinham um Hammond também. Eram raros os que existiam em Portugal. Mas havia um intercâmbio... Haviam os Vox também...
Brevemente, a Parte 2. Não perca os próximos capítulos.

Etiquetas: ,

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Nota Autoral 3 - "Jorge Palma, O artista português" (Entrevista ao jornal Impress, Maio de 2003)

É curioso. Escrevi ter reencontrado, no dia 20, por duas vezes em meia hora, O músico português vivo, o verdadeiro e virtuoso, o último artista, um amigo, uma referência. Tinha ficado de lhe ligar. Assim fiz, pouco mais de uma semana depois. No dia 5, fim de tarde no Pão de Açúcar (ou será Pingo Doce?) das Amoreiras, pegava eu num cacho de bananas e, logo ali, de olhar remoto nos congelados - lulas, Jorge? -, com um pequeno papel na mão - a lista de compras -, lá estava ele de novo. Tocara na noite anterior no Maxim. Parece que ficou por lá a tocar até às 6 da manhã, também na companhia «do pessoal dos Rádio Macau», que apareceram como amigos, fãs e músicos. Disse-me ter tido a impressão de ter contado, uncut, 4 horas de concerto. Estava rejuvenescido às 18 horas do dia seguinte, reificado um sorriso genuíno, tranquilo, e óbvia a sensação de dever cumprido mas, antes de mais, fruído, desfrutado, que as maiores e mais incessantes alegrias são aquelas que partilhamos com os outros...
Atirava eu, no início do texto, que algo é curioso. Os sucessivos reencontros com o Jorge são curiosos, bem como as circunstâncias... Mas mais curiosa creio eu ser, por ser pecado nunca tê-la publicado na íntegra, uma entrevista que fiz ao Jorge, a 14 de Abril de 2003, na casa dele de então, na Rua de São Bento, mesmo em frente da casa onde Amália Rodrigues viveu grande parte da sua vida e morreu. Dizia então que a entrevista - ou conversa informal - fora realizada para o primeiro número do já defunto jornal Impress, fundado por meia dúzia de alunos de jornalismo da Universidade Autónoma de Lisboa, em Maio de 2003, entre os quais eu era um. Tanto feliz acaso iluminou, num recanto frio e pardacento do meu pensamento, a ideia: publicar, no Caderno de Corda, por partes, a entrevista na íntegra, na toada verbal, oral, escorreita em que ocorreu, evitando editar ou modificar os termos; evitando alterar estruturalmente o natural decorrer da conversação. Está prometido. Por hoje fica apenas o anúncio. Sempre quis dizer isto: Não perca os próximos capítulos!

Etiquetas: , ,