À chegada ao último lanço de escadas do edifício velho da Universidade Católica de Lisboa, Mateus, estudante de filosofia, encontra um colega de Ciências da Comunicação, macambúzio e pensativo, sentado num degrau.
- O que é que tens? Pareces tão tristonho…
- Nada, pá; não tenho nada.
- Ninguém tem “nada”, man. A própria negação de “nada” significa, por justaposição das cargas de sinais negativos, “tudo”. “Nada” é, por definição, a negação de tudo o que existe. Além disso, não passa da ideia que se tem da inexistência de coisa alguma, que chega a ser paradoxal em si mesma. Vá, diz lá, que é que tens?
- Epá, Mateus, ‘tás a ver se me atrofias mais?
- Atrofio? Como assim, se “não tens nada”? No “nada” não existe espaço. Não há coisa alguma, um lugar vazio onde caiba algo e muito menos matéria atrofiável. O “nada” é um não-lugar, topas?
- Chiça...
- Boa… sintagmático, ao jeito da representação linguística do que se pensa ser o “nada”. Pensa lá comigo: fisicamente, é preciso distinguir o vácuo, o vazio e o nada. O primeiro é um espaço não preenchido por qualquer matéria, seja ela sólida, líquida, gasosa ou outra, mas pode conter campos eléctricos, magnéticos, gravitacionais, luz, etc… O segundo, no entanto, sendo um espaço sem matéria e nenhuma outra coisa – nem campos, nem luz, nem ondas -, compreende, ainda assim, o espaço vazio, ou seja, a capacidade para albergar algo. Como o vaso dá forma ao vazio e a música ao silêncio, o coração precisa de encher-se de alegrias ou dores. Tanto umas como outras o alimentam. O que o coração não suporta é o vácuo. O que sentes, se calhar, é um vazio…
- Olha, tenho tudo, porra. Vai ver se estou ali na esquina.
Dedicado ao Mateus Brás
Nos idos anos '90, o Matatas ouvia, com todo o fervor, Pantera, Nine Inch Nails e Danzig, imagine-se! "Sorri com um dente preto" foi uma frase que se tornou dele indissociável.
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“As nossas maiores dissimulações são desenvolvidas não para esconder o que há de ruim e feio em nós, mas o nosso vazio. A coisa mais difícil de esconder é aquilo que não existe.”
Eric Hoffer
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“De vez em quando, a eternidade sai do teu interior e a contingência substitui-a com o seu pânico. São os amigos e conhecidos que vão desaparecendo e deixam um vazio irrespirável. Não é a sua ‘falta’ que falta – é o desmentido de que tu não morres.”
Vergílio Ferreira
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