Manual de Desobediência para um País por Fazer
não foi bem isto que Abril prometeu.
Havia cravos; hoje há ecrãs,
selfies sem Marcelo, silêncio nos cafés.
A revolução saiu diagonal do telejornal,
feita de molduras e retrovisores.
Enquanto isso, os merceeiros
aprenderam a ser CEOs.
e Kafka espera em linha no call center
sem previsão de atendimento.
O processo é automático
e a culpa é tua, cidadão 405-B.
A felicidade tem código de barras.
Automatizaram a empatia
e empatizaram os automatismos.
Seja como for, mentiram-te sempre.
Chamaram-te livre,
mas só te deram turnos.
Não há censura, há viralidade,
um eco tão ruidoso
que oblitera a voz do pensamento.
O futuro foi vendido à prestação,
com juros de desilusão a longo prazo.
A terceira vaga rebentou
num tsunami de notificações,
uma greve geral de sentido
em que nos adiamos.
Nós cantámos,
coreografámo-nos à beira do abismo.
Nós escrevemos,
demos murros no ar e beijos na lama.
Nós andámos à pancada com a esperança.
Quase perdemos. Perdemos?
E ainda assim — ainda assim —
trazemos Abril nos bolsos, amarrotado,
como quem esconde um poema perigoso
num país habituado a não ler.
Mas um dia acordam —
e nesse dia, meu Irmão,
não será com tanques de guerra, mas com versos,
com mãos sujas de tinta, de giz e de terra,
com vozes afinadas como dentes afiados
que faremos a Revolução
por fim —
inteira,
com todas as letras.
e comer duas refeições mediterrânicas por dia.
Paremos tudo, sine die —
as fábricas, os códigos, os turnos, os ecrãs.
Fechemos os bancos,
os supermercados,
a boca dos donos do mundo.
Não queremos esmola,
queremos o justo:
tudo repartido.
A igualdade não se negoceia.
E se for preciso arder tudo,
que arda.
Mas que nasça, por fim,
um país vertical impossível
de paisagens horizontais,
nosso.
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