quarta-feira, março 22, 2006

Cartas de Amor Ridículas 5

De novo junto ao Tejo,
o mesmo mote se repete.
Tu, longe, desinteressada,
mostrando-me não apenas
a distância que nos separa,
que me impede, me proíbe
de abrir o coração,
soltar o vendaval
que tenho no peito,
de voar junto às nuvens
de mão dada contigo.
E tudo lá em baixo seria tão pequeno
e insignificantemente perfeito.
Sedento, mas como quem não se rende de qualquer jeito,
quero ser par, aprender e ensinar,
ser mais do que amigo, pseudo-poeta,
lírico, mero conhecido.
Já lá devia ir o tempo do sentimento descartável.
Já lá vai a carne e o osso.
Foi-se definitivamente o acessório.
Amorável amoroso só por ti.
Mesmo que mal amado.
Desarmas-me triste, aqui frio, perigoso.
Entrincheirados, o tiroteio mudo,
entre nós um fosso.
Onde estás? Liga-me.
Vou aí ter agora.
Vamos ouvir música, passear,
conversar durante horas;
apanhar o sol com a mão,
agarrá-lo e jogar na praia com ele, dentro de água;
apagá-lo num mar imenso
onde se evapora a dimensão
da nossa entrincheirada mágoa.
Ah! Seríamos só alma e dois corpos bons e possíveis.
Ouvíamos o Palma abraçados,
cantávamos à viola os hits de que mais gostamos,
fazia-te uns versos incríveis e, depois,
novamente abraçados, amávamos.
Porque já lá vai o tempo de o amor ser dispensável;
já lá vai a solidão e o ódio.
Foi-se definitivamente o acessório.
Estivemos num promontório
arquitectado num penhasco elevado sobre o mar.
E sabes que tenho vertigens,
atracção involuntária pelo abismo,
desequilíbrio sem vara.
Sem ti sou fuligem,
gravilha projectada e pisada,
pouco transtornante,
na berma da estrada.
Pensas tu: "Que falta de amor-próprio."
Não me interessa. Pouco me importa o meu amor
se não és tu.
Onde estará ele? Andará bem de saúde?
Abro a porta de um armário e espreito.
Nunca vejo o meu amor,
e tu és, assim,
o que me torna próprio do amor de mim.
És a luz que se acende no meu quarto escuro.
És, do que me falta, tudo.
E, já te disse, é neste tempo
em que sou pouco mais do que inútil,
em que te procuro, que quase te beijo,
que me cultivo nesta folha de papel;
me lanço numa garrafa ao mar,
melhor dizendo, ao Tejo.
Abro a porta e espreito...
Um quarto de silêncio. Vazio. Breu. É o que vejo.
Seria perfeito...
ouvirmos o Palma abraçados,
cantarmos à viola os hits de que mais gostamos,
fazer-te versos incríveis e, depois,
novamente abraçados, amarmos.

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quarta-feira, março 15, 2006

Cartas de Amor Ridículas 4

À minha frente o Tejo
e um quadro nocturno,
a lua e um espelho ondulante de prata.
Luzes ao fundo e o mote está dado.
Mãos vazias, lágrimas que rejeitei,
que se foram como se eu não quisesse.
Rasgam as luzes as lágrimas rejeitadas,
choradas por tudo e por nada.
Somos homens e mulheres para a eternidade
breve deste corpo.
Em essência, somos um, o mesmo.
Depois de fundidas nossas almas,
será tão difícil caminharmos juntos,
percorrermos a mesma estrada?

(...)

E se tudo o que quisemos e pensámos
já não é rico nem fecundo,
seremos nada,
fugindo do obstáculo que somos para connosco;
seremos para sempre ímpares na mesma estrada,
agora bifurcada.
O destino é um programa que nos sintoniza
se não nos encontrarmos,
se vivermos apenas segundo os próprios interesses.
Muitas são as oportunidades para nos entregarmos
na mais profunda solidão.
É eterna a minha mão,
mas uma vez negada tão cabalmente,
não me resta sequer nestas palavras inspiração.
E que dura a tarefa de escrever para não estar só;
para te roubar um pouco do tempo que também perdi...
Tento sublimar e não consigo.
A água segue o caminho de menor resistência, menor oposição,
e eu, fogo, não a posso conduzir nem perto do meu moinho.
Conduzo nada sequer. Sou inútil sozinho.
Estou abafado e sem ar, incapacitado de ser como bem quiser,
de amar o que vejo, saudar a manhã.
Mas sei que posso ser tudo o que desejas...
talvez amanhã.
Talvez nalgum dia enevoado eu apareça.
Talvez nalgum dia soalheiro tu desse pedestal desças.
Talvez seja eu quem então franza o sobrolho.
Talvez o Verão me traga a velha dor no joelho.
Mas não é o joelho que tenho entalado na garganta,
ou que me obstrui o peito.
Seja eu o sincero, seja eu bom,
seja eu verdadeiro, profeta do idílico impossível e perfeito,
tão atraente quanto suspeito.
Seja eu sem receio.
Sou mais que o momento e a memória;
eu sou dias inteiros.
n.b. - Nem toda a poesia pode ser luminosa e inspirada. A Carta de Amor Ridícula 4 é disso exemplo. Fica, no entanto, o registo. Melhores poemas virão.

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quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Cartas de Amor Ridículas 3

Ao invés de atenuares a minha dor,
salgaste as minhas feridas,
temperaste-as com o teu suor,
para me deixares em promessas devidas,
remexendo o meu ardor.

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sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Cartas de Amor Ridículas 2

Gostava de ser pescador,
debatendo-me com o mar,
lançando uma rede à minha dor
e voltando a terra com o ar
de quem extirpou o seu terror.
De braços abertos, o sol no corpo,
recebo a gente em meu redor.
Dou-vos a minha gratidão
por ter chegado salvo e são;
dou-vos o último sopro,
mas que é feito do meu amor?,
que mesmo com tamanha recepção
em terra, sinto um tal desgosto...
sem meu amor à minha espera,
tamanha solidão.

n.b. - Com agradecimento aos Waterboys...

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domingo, janeiro 15, 2006

Cartas de Amor Ridículas 1

Daqui, de junto ao mar,
segredos se escondem,
silvados da torrente.
Sorrir eu quase lamento;
não consigo esconder o que sinto.
Como se isso te interessasse,
não fosse esse o problema.
Não prestes atenção
se nem rimas de bolso tenho;
se o vácuo imo consome
desejo, desígnio tamanho.
Tenho nada senão vazio na mão,
previsivelmente, no coração.
Se precisares de mim,
esfarrapo-me pelo chão,
passo fome, faço-me fim,
deslizo sôfrego como um cão.
Subo as escadas estreitas, vertiginosas.
Não têm corrimão.
Vou muito depressa,
sem olhar para baixo.
Não pertenço, não me vendo,
não me encaixo.
Se oprimo, sinto que não possuo,
e morrendo e chorando, continuo.
Sou em ti tudo, sem ti nada,
e mesmo sendo, estou no sentido inverso da estrada,
venho em contramão.
Às vezes és o sim e eu o não.
Para ti, agora sou todo senão.
Assim, mais uma vez,
previsível, eu sou agora todo Inverno
e tu Primavera que nos alaga em Abril,
mas queres ser Verão.
Mas sou em ti tudo, sem ti nada,
e mesmo sendo, sou o trajecto inverso da estrada.
Sou meio, menos que isso,
sou parte dispensada, de ti apartada.

Chove junto ao Tejo.
Suponho que tenhas o último sorriso.
A ti não vejo.
Vejo gaivotas que não conseguem comer.
Vejo cacilheiros vomitar gente sem implorar por carinho.
Vejo Cristo, que não nos poupa a adversidade do caminho,
nem às gaivotas a árdua tarefa,
o mar frio, crispado, revolto,
a chuva, o peixe fugidio...
e as gaivotas não conhecem mito ou destino.
Sou todo para mim.
Sou todo sozinho.

n.b. - O Blogger tem vindo a apresentar problemas para os quais não tenho resposta. Esta breve nota serve apenas o propósito de informar o estimado leitor de que o Caderno de Corda vê a publicação pausada por motivos eventualmente técnicos a que o autor é totalmente alheio.

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sábado, janeiro 14, 2006

Nota Autoral 2 - "Photopoiesis" e "Cartas de Amor Ridículas"

Iniciei, na passada quarta-feira, nova empreitada poética: a série composta em tempo real "Photopoiesis" - poemas súbitos e instantâneos, em pleno desenvolvimento, com base inspiracional numa fotografia ou imagem. Hoje, introduzirei a novel série "Cartas de Amor Ridículas", também na forma poética, assinalando a óbvia influência de um poema de Fernando Pessoa (sob o heterónimo Álvaro de Campos) no tocante à titulação do compêndio amorável. Não poderia deixar de encetar ambas as séries poéticas sem uma palavra. Seguem-se, portanto, algumas mais - e apropriadas - do egrégio e sublime revérbero parcial de Fernando Pessoa, Álvaro de Campos:
Todas as cartas de amor são ridículas

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

Álvaro de Campos, 21 de Outubro de 1935

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