quarta-feira, agosto 06, 2025

Alfa e Ómega. Imagem gerada por inteligência artificial (Sora) a partir do poema homónimo de Jeremias Cabrita da Silva.

terça-feira, agosto 05, 2025

Alfa e Ómega

I. Primeiro Pagamento

Nasceu com o nome num papel timbrado
e foi imediatamente vacinado.
Antes do choro, já devia à Caixa.
Antes do leite, já devia ao Estado.
Antes do nome, já tinha número
para repúdio à herança do passado.

Cama de ferro, cloro e manchas nos lençóis.
A mãe sorriu serena ao assinar papéis.
Lá fora, os tios faziam contas e desejos
de não serem os padrinhos —
de não lhes caber a honra dos benfazejos.

O avô estava com mau vinho.
Via na TV que o défice tinha subido.
No ecrã da entrada: inserir novo utente
e o país registou mais um contribuinte.
Como pode um nascimento
ser burocrático e indiferente?

II. Primeira Factura

Aos noventa dias, a mãe foi trabalhar.
O pai andava pelas margens do relógio;
de costas para a proa, de frente para o mar;
pela casa como sombra no soalho.
Morava nas horas de vazio, ao contrário.

Ao miúdo faltou colo, mas houve horário.
Entrou cedo, sem saber despedir-se.
Só à tarde soube estar no infantário.
Chorava todo o dia como quem protesta
e foi entregue à ama com uma tabela.
Um recibo em troca de uma promessa
de afecto, atenção e beijos na testa.

As manhãs chegavam frias, cheiravam a sopa velha.
De olhos esbugalhados, aprendeu a esperar cedo.
Vindo do estômago, acusou na alma um lamento.
À pele tinha já tatuagens por dentro.
Ficou no peito um choro permanente em ponto pequeno.

III. Primeira Lição

Aprendeu a contar antes de brincar
e a levantar a mão, nunca a voz,
que saía engasgada para perguntar.
Sabia o seu lugar, mas não o porquê.
O recreio era curto para um silêncio de pé.

Pintava o sol amarelo no canto direito.
A relva era verde; o céu azul por defeito.
Um dia trocou as cores por pura invenção
e levou um reparo jocoso de reprovação.

Mãos nos bolsos como raízes no solo,
olhos clementes, na cabeça já um nevoeiro,
e no peito um precoce alvoroço,
um medo ansioso do próprio receio.

Distraído e sensível, era um problema,
peça numerada, desencaixada do sistema.
Sempre pessimista o prognóstico.
E num dossiê com nome e diagnóstico,
chamaram-lhe desatento e coisas que tais.
Depois chamaram os pais.

IV. Primeira Nota

Mediam-lhe os lapsos, nunca o sonho.
Pesavam-lhe a voz, o timbre, os gestos.
Não lhe auguravam futuro risonho.
O erro pontuava sempre mais do que o resto.

Imaturo, preguiçoso, sem método, disperso,
cortaram-lhe a dúvida no quadro a giz.
Finda a aula, a equação era o verso
do poema a metro que não escreveu nem quis.

A ferida em pus da comparação,
o silêncio vedado da sobrevivência,
os dedos nus expondo a hesitação
das mãos frias e húmidas da subserviência.
E a vergonha que se fazia identidade,
a evitar os olhos e os conselhos,
desejava apenas a faculdade
de desaparecer nos recreios.

V. Primeira Porta Fechada

Entrou na faculdade como quem entra no mar:
sem saber nadar, mas saturado da margem;
com esperança amarrada a frágil coragem
e uma sentença adiada, por classificar.

Na mochila levava clamores da infância;
nos cadernos o virtuosismo da inocência,
e o mundo parecia quase possível,
num passo novo, mais alto e livre, uma dança
incauta sobre o tabuado da passagem de nível.
O primeiro licenciado da família.

Em casa, o chão tremia.
O pai — que andara anos ao volante,
tendo o camião por cama —,
de alma remendada e corpo exangue,
trazia tostões de vergonha e má fama.

Paletes, verbas e volumes não conferiam.
Folhas por fechar, colunas que não batiam,
planilhas discrepantes, contas erradas,
e o erro vestiu o fato das madrugadas.

Veio o despedimento e depois o silêncio,
o olhar embaciado, o gesto ausente,
a década de trabalho num saco de expediente
e o resumo sumido num último recibo,
a sombra gelada do que não auferiu
em perdão, clemência ou apenas abrigo.

A mãe gritou durante semanas
até que, perante a letargia, deixou de falar —
um dia fez as malas à pressa, sem dramas,
deixou a casa pela de outro; levou o lar.

O filho ficou com o pai, num pacto mudo
entre a culpa e o pudor do abandono.
Era já homem, dizia-se, e isso era tudo,
mas sentia-se cão com trela sem dono.

Faltou o passe. Faltou o mês.
Faltaram livros, sorrisos, jantares.
Venderam-se enciclopédias, vinis e CDs.
Acumularam-se dívidas e pratos por lavar,
currículos enviados inutilmente.
De olhos vagos noutro lugar,
no fundo RGB de um ecrã, ausente,
o pai passava noites brancas a fumar.

O miúdo voltou às aulas, fingiu rotina,
mas os livros pesavam como tijolos na obra.
A vergonha colada à cadeira, vidrada na retina,
e à janela o futuro extinguia-se a cada hora.
A chamada em falta não foi indisciplina,
apenas um dia fora, uma cadeira vazia,
e no anfiteatro ninguém perguntou.

Deixou o curso no segundo outono
para sustentar a casa em colapso.
Não houve anúncio, só abandono
e um nome ausente nas pautas,
frequência da licenciatura por meio ano,
como se nunca ali tivesse estudado,
como se naquelas salas nunca tivesse tido aulas.
Inútil para efeitos profissionais.

VI. Primeiro Recibo Verde

Começou por dias sem nome nem recibo,
horas ao sol de Junho, a ganhar tostões
fora da folha, por baixo da mesa, do vidro.
Dois meses num balcão, três num arquivo,
quatro num escritório a tresandar desinfetante.
Chamavam-lhe rapaz, moço, assistente.
Nunca usavam o nome constante
na ficha que fora para o lixo.
Não lhe conheciam apelido.

Levava pão e papel higiénico na mochila.
Guardava restos de si no bolso, rabiscos,
resumos e esquemas de vidas sonhadas
noutra dimensão de astros e meteoritos –
ideias, poemas curtos num caderno de escritos,
versos, apontamentos e autoavisos,
pedaços de sim e talvez de um longo Inverno
que rompiam terços e fardas de improviso.

Tinha uma camisa para cada semana
e as solas gastas de desventura.
Picava o ponto como quem se ausenta,
sorrindo por compaixão e ternura.
Trabalhou até as palavras sangrarem
e os músculos, silenciados, pararem
com as fotocópias e o toner,
com a síncope de rolamentos,
com as horas extraordinárias
de um esforço nado-morto.
Jazia, ao final do longo dia,
a embalagem de um corpo
reposto, inerte, na prateleira.
Nem o espelho devolvia o rosto
e não haveria outra maneira –
mãos cheias de horas até ao osso,
majoradas como o sono ao tutano –
a vida a boiar no fundo de um poço.

No bolso, o poema insistia:
riscado, rasurado, uma pedra de sal.
No bornal, cadernos gastos onde escrevia histórias
de vidas que já não sabia se eram suas —
às vezes, de tão escritas, pareciam-lhe já memórias.

VII. Primeira Morada

Trabalhava para dois.
Não bastava para o mês —
como um cântaro rachado,
carroça manca de bois,
suor do corpo quebrado,
vazado com o brio da surdez,
silêncio fervido, arroz para três.
Pratos lavados com água da véspera,
moedas escondidas num frasco de vidro,
migalhas de um mapa, ossos de medo –
guardada uma porta por dentro.

O pai, apagado em brasa fria,
e a casa encolhida, sem fôlego,
a respirar sem saber que doía
o ar denso, a roupa a cheirar a mofo,
o tempo parado no fio da travessa,
o vazio sentado à cabeceira da mesa.
Era amor doente, na borda do precipício,
silente, cabeça encostada à parede
e os olhos a meio sem suplício.

Vendeu-se um candeeiro de griffe,
um móvel de sala quase dado,
um conjunto de cama bordado,
e ao jantar houve bife.
Depois da máquina de café,
foi a televisão,
e o mundo deixou de entrar.

Já nada crescia naquele chão gasto.
O afeto pendia de um prego torto.
O amor dormia sem luz de presença.
Mordendo o apelido, enrolou o casaco,
alçou as memórias felizes ao ombro
e deixou a chave, como uma sentença.

Pagou o mês de caução e o mês de renda,
e mais um, adiantado. O poema, inacabado.

Na periferia, um cubículo com eco,
uma janela opaca para o poente
de antenas tortas sem conserto.
Sem estrado, o corpo dormente.
Sobre o colchão, os braços inertes,
as mãos e os olhos secos fechados,
a marcar território de recomeço.
Era sua a chave do desengano.
Seu, o desígnio de rodar a tranca
do cárcere e da liberdade.

Eis a chave, a porta, o ardil.
Eis da vida o maior preço:
a miragem do oásis transariano –
da família nuclear a três
à desdita tragicómica do covil,
saldada mês a mês.

VIII. Primeira Traição

Uma janela sem mundo, uma luz que pendia,
três pratos de vidro, uma colher de plástico
e o silêncio opressivo — espesso, doméstico.
Havia espaço para o tempo, surdo-mudo,
e nenhum lugar onde pousá-lo.
O vagar sem préstimo futuro
corroía-o, tornava-se espelho.

No vazio, teimava o poema,
crescia devagar entre nervuras,
cicatrizes de sal, linhas de fractura,
erva daninha a brotar dos azulejos –
poema escrito sozinho, linha a linha,
tomando-lhe a mão sobre textos
que o desenhavam em liturgia íntima
de salvação penitente, solitária, impossível.
A caneta era cruz, o papel sacrário,
tacteando a luz com dedos de sombra,
soprando cinzas em busca de brasa,
traçando na terra o território.
Às vezes, no lume breve de um verso,
acendiam-se os rostos do pai, da mãe,
e o cabelo de um amor desconhecido.
A mãe sussurrava na presença de um homem.
O pai esquecera-se do próprio nome.
Ninguém viera ainda por ele.

Quando o frio se fez hábito
e já não esperava visita,
viraram-lhe o mundo ao contrário,
chegou um incêndio vestido de brisa.
Ao silêncio que por fim se fez casa,
respondeu uma voz embriagante, sem aviso.
Pensava-se enfim intacto,
e eis que a voz reabriu a ferida.

Outras houvera em noites de bebedeira,
beijos molhados e corpos sem nome,
fogos-fátuos de um desejo sem fome,
mas esta era chama que fingia lareira,
promessa suave com corpo, mãos, língua, enleio.
Conheceu-a online, num dia qualquer,
e tropeçou no que parecia passeio.

Entrou sem bater uma presença de neblina,
ondulante, generosamente feminina.
Era olhar e feitiço, beijo e doutrina,
e ele, ajoelhado, cansado e carente,
rendeu-se ao calor de um regaço.
Beijava-a com o frémito do tempo perdido,
como se o corpo soubesse sempre o caminho,
como quem afaga a ferida e encontra abrigo.
Respiravam-se inteiros, no mesmo compasso,
odor febril a lume húmido, cioso perfume,
disparo certeiro, júbilo e queixume, erro crasso.
Um deus cego pedia-lhes lume
numa vertigem de sombra inteira,
estreitando o cubículo num abraço.
Nela viu um país por fundar.

Mas o país não tinha mapa,
era bruma em manhã sem estrada,
e o riso, outrora fonte, secava as margens
devolutas de sede a cada gesto.
Já não lia poemas até ao fim,
sorria a meio, mudava de tema.
Tudo nela se tornou frio indigesto
onde dantes havia frenesim,
e ele, sem saber, já saíra de cena.
A cama, quente, fazia-se ilha
de um náufrago em corpo ancorado.
Ela ainda lá estava, depois da neblina,
mas algo no gesto ia já longe,
num horizonte que não pedia resposta,
um olhar que não devolvia reflexo.

O coração tornou-se um anexo
onde começou a chover por dentro,
num adeus sinalizado pela ausência de sexo,
espelhado em promessas de vento,
na alteridade do toque que fora abrigo,
agora estéril recusa, castigo.
Quando enfim entendeu o enredo,
era tarde: traíra-se por migalhas de afeto,
fizera-se menos que concubino.
Curvado no altar do talvez,
pedia apenas uma palavra inteira –
bom dia, boa tarde, um sinal cortês,
feito cão à porta, sujeito às probabilidades.
Ela menos falava, e quando o fazia
era como quem dissesse outra coisa.
O amor transacional revelou-se à luz do dia.
Não fora amado, mas usado.
O poema, rasgado, escrevia-se à faca.

IX. Primeira Herança

Veio pequeno, de olhos baços, sem verbo,
um choro sem gramática, um tremor de berço.
Ele viu-o como quem se olha do avesso,
num clarão translúcido de perguntas sem resposta.
A infância reencontrava o silêncio.
No fundo da memória, uma voz de cetim, uma rota.
Uma ternura longeva latejava no pulso,
um instinto sem nome, um abraço perdido.
Recordou o lar que lhe faltara,
o colo adiado, o abrigo prometido.
Sentiu no peito um sopro de alvorada,
promessa de sol depois do nevoeiro,
aroma de Lua nova e terra molhada.
Na pele doce do filho, escrevia o futuro inteiro,
fundava o tal país num só verso,
jardim por regar, fundeado nas entranhas do universo.
Na consciência o profundo receio
de falhar como lhe falharam primeiro.

Enquanto isso, erguiam-se trincheiras no quarto,
beijos conjurados num cerco pós-parto, ventre fechado.
A criança tornou-se penhor de amor taciturno,
cobiçoso, avarento, a medir cada afago como hora de turno.
No berço ele via uma jangada, um contrato assinado no escuro,
um bilhete de resgate ou condenação.
O leite azedava sem lume, a noite rangia nos dentes
e no peito farto, gelado num idioma de fome.
O desejo contrariado, rejeitado, deficitário.
Ali estava, sem nome, a contabilidade da ternura.
Ele dera por si visitante na própria casa,
pagante de uma dívida sem fatura,
credor improvável de desejo lúbrico,
estilhaçado no reflexo de um espelho translúcido.
No poema inacabado, um voto secreto a cada sílaba:
quebrar a sombra antes que a luz se apague.
Mais que nome, sangue, carne, rosto,
herança era sopro de abandono ou esperança,
cisma sem dono, sismo no osso,
e um pacto inexprimível na página branca.
Ali, às grades do berço, germinava a condenação.

X. Primeira Sentença

Rubricou a ausência com a mão tremida
sobrevoando a última cópia em papel timbrado.
Um carimbo sobre a paternidade; sobre a vida.
Sem apelo, estava anulado o contrato.
Pagou a primeira pensão de alimentos
na penumbra dos dias sem volta.
No sigilo da casa, o colapso, a revolta,
o grito mudo dos brinquedos arrumados,
a alucinação de uma criança a correr descalça,
sem chão, sem pátio, sem extrato bancário –
apenas as semanas hipotecadas no calendário.
No poema faltava uma hora para a meia-noite,
por entre recibos e segundas vias sem rumo,
restos de dias vagos guardados no fundo do armário,
pedaços de vácuo e saliva, um expediente de fumo,
envelopes rasgados sem outro destinatário.
Quebrado, sem rosto, sem cais, apenas um nome
com saldo negativo às portas dos tribunais.
A família reduzira-se a dígitos, selos, clausulados
em penumbras facturadas ao mês com código IBAN.
A própria família. Menos que sozinho,
fora-lhe extirpado o coração, amputado o caminho,
sem eco de humanidade devolvido num silvo,
sem memória de arquivo, mendigo administrativo
nas esquinas refundidas da retórica jurídica,
paiol de fantasmas insensíveis das pragmáticas,
a empurrar almas em custódia nas órbitas da compaixão.
Selado num código postal, reduzido a rubrica digital,
observava sem altar um deus de plástico,
como tantos de joelhos, prostrados nos sacrários
das repartições públicas, em súplicas e sermões burocráticos.
No genuflexório fiscal silenciam-se os rumores da insurreição.
Quem decide quem fica, quem parte, quem sobra?
Quem é o traidor, o traído, o réu, o arauto?
Entre códigos e autos, era possível sonhar nova obra,
era ainda a árvore passível de rebentar do asfalto?
Na quietude do verso, germinava a fagulha, a centelha,
um clarão que incendiasse o mundo, o poema.

XI. Primeiro Crepúsculo

Os meses caíam como folhas mortas na tijoleira.
O tiquetaque latejava no pulso um aviso de falência.
O baque à partida do pai ao domingo; da mãe à terça-feira.
O corpo um pergaminho gasto, uma lembrança de linho,
o adeus ao destino, o regresso infame à inocência.
O tempo, na sombra da perda, nunca devolve o início.

O filho calçava os seus velhos sapatos de inglória;
herdada a mesma febre de fantasmas sem nome,
inelutavelmente à sombra do que viria a perder.
Passava menos vezes, sem mágoa, culpa, história.
Na voz arrastada, monossílabos de fome.
O miúdo era já pai sem enredo, reencenando a memória.

O agora avô e órfão via-se passar ao espelho sem reflexo.
Tornara-se vulto nas salas de espera, imprestável
como o relógio de parede parado nas duas horas;
presença decorativa nas reuniões de família.
Espectador de um filme dobrado, lábios desconexos,
comia pré-cozinhado o limiar da lucidez, insanável,
e ninguém batia à porta, o telefone não tocava.
Comprimidos e TV generalista, peça carcomida de mobília.
Já ninguém o reconhecia no quiosque, no café, na farmácia,
ou seria antes o contrário, o ângulo obtuso no átrio da falácia?
Senhas, consultas, corredores, máquinas, vozes automatizadas
numa dança esterilizada de corpos numerados promovidos a utentes,
e um multiverso de outras dores, mais a obsolescência programada.
Árduo é o caminho dos mártires sem promessa de virgens para os crentes.
A alma, diziam, sobrevivia, mas onde? Em que servidor,
se tudo cabia num processo arquivado, razoado no computador?
Quem herdará os restos de uma rotina sem testamento?
A identidade tornara-se documento sem validade, sem leitor,
encerrada numa pasta sem estante ou corredor, um ofício digital
codificado e marcado a negrito de nulidade existencial.
Nada ficou de uma vida garimpada em recibos e diagnósticos
triturados por juristas, call centers, prestamistas e médicos.
A liberdade da escolha múltipla, entre vícios não subsidiados –
e outros, subsidiados, à boca da urna. Votara e pagara sempre,
sem alguma vez lhe ter sido devolvida a pátria, os anos.
Passavam-lhe à frente sem cortesia nos transportes públicos
e na fila de atendimento da Segurança Social, uma carestia visceral,
um alheamento comprometido em anestesia testemunhal.
No bolso do último casaco, gasto e amarelado, um caderno manuscrito.

XII. Primeiro e Último

O filho dobrou o casaco. Não disse nada.
Não sabia o que fazer com o caderno.
Não o abriu nem se desfez dele: guardou-o
no fundo de uma caixa de cartão,
sob uma pilha de documentos e recibos,
sem respirar ao canto de um sótão.

Muitas décadas passaram pelas dobras do calendário
até que o neto o achou, inscrevendo-o numa lista
– um inventário de objetos – sem razão aparente.
Não leu, mas cuidou-o numa caixa-relicário
de um tempo analógico como documento.
Havia peso no silêncio gritante da memória,
uma aura dourada de papel velho, eloquente,
com manchas de café, rasuras, vestígios de saliva, histórias.
Geração após geração, o caderno ficava.
O nome fora apagado das bases de dados,
mas a solenidade mística da matéria teimava.

Três gerações depois, foi o bisneto que, enfim, o leu
pela primeira vez, num gesto profano de curiosidade sagrada.
O texto pulsava, as palavras ardiam intactas, um fogo cresceu
em labaredas inextinguíveis de uma única e íntima chama.
Nunca conhecera o bisavô, mas ouvira dizer que escrevia.
Não quisera ser imperador ou sua senhoria,
mas lembrar que este é um lugar próspero
de abundância e beleza para todos;
que a ganância envenenou os poços
e barricou-se em trincheiras de certeza e ódio.

Homens e mulheres, mulheres contra homens,
e passado tanto tempo dos mesmos no pódio,
repetiam-se os medos, os gritos e as palavras de ordem.
Mas pensamos demais e sentimos de menos.
Se as mãos se dessem, os muros caíam
sem donos, sem deuses, sem a esperteza
que fractura a humanidade e macula a inteligência.
A natureza é violenta sem bondade, sem gentileza,
às mãos de brutos que regimentam a decência.
Não somos máquinas nem gado, mas homens
que lutam contra a escravatura,
quando a luta é pela liberdade!

E mais de um século depois ainda a palavra
a transpirar de um lugar livre sob a pele,
de beleza plantada sobre as cinzas do desespero.
Ainda a tal “democracia” a revolutear numa parada
de armamento imperialista sem quartel,
acesa apenas quando o povo espantar o medo.
Ainda o repto pela demolição das fronteiras,
da intolerância e do ódio; por um mundo de razão
onde o progresso seja fruto de alegria, não um açoite.
Ainda a promessa gorada dos brutos, uma longa noite
de mentiras e gumes afiados pelo jugo da liberdade.

Na contracapa, entre emendas, contas e datas,
encontrava-se um sussurro sublinhado,
um cometa de grafite que aguardava
olhos cadentes no rodapé gasto.
“Não somos o que nos fazem, mas o que fazemos de nós”,
leu em verso quase ilegível, urgente e torto.
O bisavô não estava vivo. Não estava morto.
Dissolveu-se na base de dados, mas o poema resistira,
e com ele uma luta simples pelo que é decente,
por libertar a vida, fazê-la dançar ao vento.

O bisneto, já homem no mundo,
citou-o em discurso diante da assembleia.
A câmara permaneceu em silêncio mudo.
Anos, séculos, milénios e nunca depois, sobreviveu a ideia
e o caderno reapareceu depois de tudo –
da ruína, do arquivo, da arca, do museu, da feira,
do infinito do espaço-tempo profundo.
A ideia fecundada derrubou todos os muros.

A palavra fez-se semente sussurrada,
reinventada, retransmitida, ousada.
Como senha, prece, rumor.
Como se fosse a primeira vez.
Como luz em água,
eco em pedra dura,
chama ao vento,
incendiando o silêncio
ao nascer da aurora.

Jeremias Cabrita da Silva in "Antologia Poética de Hugo Simões" (Edições SIM, 2078)

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Manual de Desobediência para um País por Fazer. Imagem gerada por inteligência artificial (Sora) a partir do poema homónimo de Davi Reis.

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sexta-feira, abril 25, 2025

Manual de Desobediência para um País por Fazer

I
Não foi bem isto, companheiro,
não foi bem isto que Abril prometeu.
Havia cravos; hoje há ecrãs,
selfies sem Marcelo, silêncio nos cafés.
A revolução saiu diagonal do telejornal,
feita de molduras e retrovisores.
Enquanto isso, os merceeiros
aprenderam a ser CEOs.

II
Orwell acena em vão da cloud
e Kafka espera em linha no call center
sem previsão de atendimento.
O processo é automático
e a culpa é tua, cidadão 405-B.
A felicidade tem código de barras.
Automatizaram a empatia
e empatizaram os automatismos.
Seja como for, mentiram-te sempre.
Chamaram-te livre,
mas só te deram turnos.

III
Não há PIDE, há algoritmo.
Não há censura, há viralidade,
um eco tão ruidoso
que oblitera a voz do pensamento.
O futuro foi vendido à prestação,
com juros de desilusão a longo prazo.
A terceira vaga rebentou
num tsunami de notificações,
uma greve geral de sentido
em que nos adiamos.

IV
E nós? —
Nós cantámos,
coreografámo-nos à beira do abismo.
Nós escrevemos,
demos murros no ar e beijos na lama.
Nós andámos à pancada com a esperança.
Quase perdemos. Perdemos?
E ainda assim — ainda assim —
trazemos Abril nos bolsos, amarrotado,
como quem esconde um poema perigoso
num país habituado a não ler.

V
Os filhos da madrugada foram postos a dormir.
Mas um dia acordam —
e nesse dia, meu Irmão,
não será com tanques de guerra, mas com versos,
com mãos sujas de tinta, de giz e de terra,
com vozes afinadas como dentes afiados
que faremos a Revolução
por fim —
inteira,
com todas as letras.

VI
Basta de remendos, de pedir licença para respirar
e comer duas refeições mediterrânicas por dia.
Paremos tudo, sine die —
as fábricas, os códigos, os turnos, os ecrãs.
Fechemos os bancos,
os supermercados,
a boca dos donos do mundo.
Não queremos esmola,
queremos o justo:
tudo repartido.
A igualdade não se negoceia.
E se for preciso arder tudo,
que arda.
Mas que nasça, por fim,
um país vertical impossível
de paisagens horizontais,
nosso.


Jeremias Cabrita da Silva in "Depois da Última Revolução Vem a Primeira" (Edições Utopia, 2034)

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quinta-feira, abril 17, 2025

🚫 CENSURA DIGITAL — ARQUIVO DO BLOGUE CADERNO DE CORDA

Desde 2005, o Caderno de Corda publicou mais de 1500 textos - alguns literários e ensaísticos, canções, deambulações mais ou menos imberbes, textos jornalísticos, baboseiras atrevidas, memórias... Durante largos anos, esta casa foi regularmente indexada nos motores de busca, citada por sites e blogues, partilhada, lida, referenciada. Era visível. Existia. As suas palavras existiam.
Paulatinamente, e em especial ao longo da última década, algo mudou drasticamente. A presença do blogue desapareceu dos resultados do Google. Foi desindexado. Silenciado. Tornado invisível.
As ferramentas do próprio Google deixaram de reconhecer o conteúdo. Os sitemaps deixaram de ser lidos. Os backlinks desapareceram. As tentativas menos avisadas de reintegração têm sido bloqueadas. As pesquisas mostram resultados residuais e inócuos — como se o blogue nunca tivesse existido. Após levantamento crítico e técnico minucioso, acreditamos estar perante um caso de apagamento sistemático e intencional.
Este post é um gesto técnico, mas também político. É um manifesto profundamente indignado, ainda que sintético. Uma recusa em aceitar que duas décadas de escrita e pensamento possam ser varridas do espaço público digital. Mesmo que apenas por desactualização tecnológica do template, por ausência de meta-informação moderna, por inatividade percebida, por falta de HTTPS ou “sinais errados” transmitidos ao algoritmo.

📌 O QUE ESTÁ A VER AQUI?

Para tentar forçar a reindexação, reunimos abaixo todos os arquivos mensais do blogue, de março de 2005 a abril de 2025 — um a um, mês a mês. São, à data de publicação, 153 meses publicados, listados com os seus links directos. A cada um será solicitado manualmente o pedido de indexação. Mas o esforço não é apenas técnico. É simbólico. É resistência.


📣 PORQUE ESTE POST É UM ACTO PÚBLICO NECESSÁRIO

É temporário, técnico, mas é também um acto de resistência e memória. Cada clique nestes arquivos é uma recusa ao esquecimento e à tirania dos tempos modernos. Uma forma de contrariar a censura invisível que apaga conteúdo legítimo, jornalístico, literário, pacífico, crítico.
Não somos de certezas absolutas, mas os indícios acumulados apontam para um apagamento digital sistemático e politicamente orientado. O blogue Caderno de Corda abordou em tempos muitos temas sensíveis. Tocou onde não devia tocar. Fez perguntas incómodas. Mencionou nomes. Reivindicou memória. Foi sendo silenciado.
Não é um pedido. É uma ação consciente. Este post foi criado para contrariar o apagamento de quase duas décadas de escrita — especialmente de textos poéticos, literários, jornalísticos, ensaísticos, críticos, de memória e intervenção.
Abaixo encontram-se os links diretos para os 153 arquivos mensais do blogue, de Março de 2005 a Abril de 2025. O que se pode fazer com eles?
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👉 Reenviar ou partilhar um post especial, uma memória, um poema, uma canção... (os posts publicados no Caderno de Corda são os textos originais, publicados na hora, sem a devida edição e reescrição dos poemas publicados em livro);
👉 Forçar o Google a admitir que o Caderno de Corda existe, que está vivo, que merece ser visível.
Cada clique sinaliza que o conteúdo é procurado, lido, legítimo. Este é um modo simples de contrariar o apagamento digital — forma de censura implacável e sofisticada como nunca. As estimadas leitoras e os estimados leitores não têm de fazer nada. Mas podem escolher resistir connosco.

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segunda-feira, abril 07, 2025

AVISO: Data d'O Jantar (Anno XX) remarcada para 24 de Maio de 2025

AVISO: A data originalmente prevista (25 de Abril) foi remarcada para 24 de Maio por motivo de encerramento do restaurante no Dia da Liberdade.
O Jantar realizar-se-á no sítio do costume. Haverá muitas surpresas e novidades, neste que se espera ser o mais retumbante repasto até à data. Como é sabido, o aniversário comemora-se de 26 para 27 de Março (data do aniversário do blogue), mas vem sendo já hábito concretizá-lo em data posterior, de modo a favorecer a comparência do maior número de confrades cordianos. A participação é livre e especialmente dedicada aos indefectíveis Irmãos cordianos e estimados leitores. Como nos últimos três anos, O Jantar será novamente iniciado mais cedo do que é costume, por volta das 18h30 horas. Tragam um Amigo também.

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quinta-feira, março 27, 2025

20 anos de Caderno de Corda e a convocatória d'O Jantar!

Celebramos hoje os 20 anos de existência do Caderno de Corda com a divulgação do link para as fotos d'O Jantar do ano transacto (AQUI) e a convocatória para o repasto deste ano, que se realiza a 25 de Abril de 2025, no sítio do costume, em dia absoluto de festa. O rendez-vous está previsto acontecer no alto do Parque Eduardo VII, entre as imponentes colunas imperiais dos anos 50, da autoria de Keil do Amaral, junto à afamada obra do escultor João Cutileiro. Como é sabido, o aniversário comemora-se hoje (27 de Março), mas vem sendo já hábito concretizá-lo em data posterior, de modo a favorecer a comparência do maior número de confrades cordianos. Tragam um Amigo também.

Confirmação requerida na página do evento no Facebook: https://fb.me/e/i1cHOSLxI

'Té já.

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quinta-feira, fevereiro 13, 2025

Anno XIX – O Jantar


O Caderno de Corda cumpriu 19 anos em 2024 e cumprimo-los também nós, uma vez mais, à mesa, num ritual de fraternidade e memória. O Jantar aconteceu a 12 de Abril de 2024, como sempre no restaurante A Valenciana, pela quarta vez em data posterior à data tradicional (de 26 para 27 de Março), evitando o período de férias da Páscoa e garantindo a adesão do maior número de Confrades Cordianos. A escolha revelou-se acertada, como verificado pelo número recorde de presenças: 33 no total — 32 à mesa e um visitante preambular, Rui Martins (Fininho), que apareceu no rendez-vous e seguiu caminho para assistir a um concerto, mas não sem antes deixar comigo um presente de inestimável simbolismo: o disco “Gigaton”, dos Pearl Jam, lançado precisamente a 27 de março de 2020, data do aniversário do Caderno de Corda – disco que o Rui guardara na data de lançamento para, com efeitos pandémicos pelo meio, me dar antes tarde que nunca. Regista-se a importante oferta e o quase baptismo do Rui na liturgia cordiana. Mas as oferendas ao Vosso fiel escriba não se quedaram por aqui. O debutante Hugo Passos (Ken) marcou também a sua estreia com o mimo de uma garrafa de vinho tinto à chegada - lembrança significativa que merece uma nota de especial e sentido agradecimento.
Este ano há subtextos por (quase) desvelar. No passado recente, justificou-se o abrandamento das publicações no blogue com a empreitada de um romance distópico, um projeto de grande fôlego e escala que monopolizou milhares de horas livres. Mas, como os tempos, os ventos mudam e, como as palavras, adquirem novos significados, seguem novos fluxos e novos trilhos semióticos. O romance repousa com terra à vista e a atenção volta-se para a consubstanciação de um foco renovado que em 2025 se revelará. O Caderno de Corda está em marcha e o que aí vem não se cinge à celebração de um número redondo. Há algo mais. Algo que cresce e transborda…
Como sabemos e vimos sempre aprendendo, também a Amizade é transbordante, exponencial e contagiosa — prova disso são @s sublimes estreantes definitivamente incorporad@s na Confraria Cordiana. Nove debutantes tiveram assento à mesa em 2024 e, como é nosso apanágio, uma vez da Confraria, sempre da Confraria. Entre @s recém-chegad@s, destacam-se quatro infantas e infantes cordian@s, responsáveis pelo significativo e desejável decréscimo da média etária do grupo, garantindo que o futuro da Confraria se inscreve na nova geração: Isaac Graça, Beatriz Paiva, David Pina e Rafael Nunes, dignos titulares das insígnias de Infantes da Cordialidade.
Aos restantes (e insignes) estreantes — Sandra Rodríguez, Pedro Sequeira, José Manuel Couto, Hugo Passos e Miguel Barreiros Lopes (Miko) —, a certeza de que os regressos são esperados e os encontros são perenes, prolongando-se noutras mesas e noutras horas, mas sobretudo na memória do coração. Uma nota para a participação espontânea de José Manuel Couto, que, tendo ligações à Cruz Quebrada, tomou conhecimento do Caderno de Corda e d’O Jantar no ciberespaço e quis, de livre e independente vontade, partilhar connosco a companhia, histórias e a mesa. Mais uma honraria para o Caderno de Corda, que assim cumpre um dos seus primordiais desígnios: estabelecer pontes tangíveis para lá do algoritmo e do éter.
O peso da Loja Cruz Quebrada fez-se sentir sobremaneira, destacando-se a presença fortíssima da geração Y, com João Carlos, André Paiva, Bruno Tomás, Bruno Sardo e os recém-chegados Ken e Miko, faltando apenas o André Nobre para, pela primeira vez, reunir em bloco a Fraternitas CQY. Apesar da menor afluência da Loja Salesiana nesta edição d’O Jantar, a força dos cruz-quebradenses compensou e excedeu expectativas. Muitos dos salesianos, como globetrotters que são, espalharam-se pelo País e pelo mundo nesta data — ausências que foram notadas e sentidas.
Este foi também um Jantar marcado pela extraordinária ausência do Grão-Mestre Cordiano, Visconde do Reino de Maconge, Magnífico Provedor do Tesouro e Supremo Jurisconsulto César da Silveira, que tradicionalmente assume o exercício da verificação, consolidação e regularização das obrigações pecuniárias inerentes ao encerramento financeiro d’O Jantar, compreendendo o minucioso apuramento das despesas globais, a equitativa distribuição das responsabilidades contributivas dos convivas, a subsequente arrecadação dos montantes devidos e a aferição final da conformidade do saldo de contas, garantindo a plena solvência e a exatidão dos lançamentos, preservando ainda a dignidade e a integridade fiscal do conclave. Mesmo não estando, o Kaiser, habitual titular absoluto, merecia este parágrafo…
Mas a Confraria é caudalosa como o Tejo e, à bolina, o Grão-Mestre e Grande Inspector Cuteleiro João Carlos Graça tomou o leme de roda da tesouraria com inexcedível eficiência e visão organizativa, destacando ao serviço os Infantes na recolha de nomes para conferência da fatura final. A turma dos digestivos, como de costume, chegou-se à frente para os ajustes necessários e ficaram mais uma vez confirmadas as vantagens do banquete face ao consumo à carta – o banquete é mais farto, mais simples, mais certo e acaba mesmo por ficar mais em conta. Tudo correu bem assim.
Quanto a esta crónica, escrita e publicada tardiamente, deixada a marinar ao limite do aceitável, peca pela delonga mas também pela inevitável fragmentação da memória, no entanto preservada pelo registo fotográfico. Foi, aliás, devido ao grande investimento de tempo no trabalho e nos projectos em curso, e porque, fazendo jus aos anos recentes, a crónica d’O Jantar vem sendo acompanhada de um vídeo comemorativo, que a publicação se atrasou tanto. Na iminência do vigésimo aniversário do blogue, urgia publicar, quanto mais não fosse a crónica e as fotos, mas o advento das ferramentas de modelação de imagens com base em inteligência artificial espicaçou novas ideias.
Assim se produziu, ao som de “Silêncio (Estamos no Ar)”, o vídeo d'O Jantar comemorativo do 19.º aniversário do Caderno de Corda, que deve a sua existência, em grande medida, à presença devotada do Grão-Mestre, Guardião do Tombo e Venerável Cavaleiro Prismático Ricardo Pinto, cuja objectiva regista proverbialmente o evento. Todas as imagens resultam de fotos não editadas, algumas das quais foram posteriormente trabalhadas na plataforma Runway ML, aplicada à criação de vídeos com ferramentas baseadas em IA generativa. A edição foi realizada e concluída no software Movie Studio 15. De referir que as fotos serão publicadas brevemente nas páginas Facebook de Davi Reis (poesia e música) e do Caderno de Corda.
Ao décimo nono ano, lançando-se sobre fundações sólidas na antecâmara dos vinte anos, O Jantar reafirma-se como eixo de alinhamento que assegura um lugar e um tempo próprios, sempre inclusivos e exclusivos, abertos e livres para ser, estar, partilhar, comungar, recordar e reinventar. A cada ano a mesa cresce e a amizade expande-se por gerações numa espiral de continuidade. E porque a Amizade não desiste, o Caderno de Corda não verga e há muita estrada para andar, ficam suspensas no fino ar novidades para 2025, ano em que o Caderno de Corda celebra duas décadas de existência e pretende festejar como nunca. E há mais, algo que cresce no horizonte e se insinua nas entrelinhas. Algo que em breve terá nome, som, visão, alma e forma. O que será, a seu tempo.
Até lá, sigamos caminho.
No mesmo sítio, à mesma hora, previsivelmente em Abril.
ASSIM foi. Assim seja.
Links para posts análogos dos aniversários anteriores:
Legenda aleatória: Hugo Dantas, Bruno Sardo, Hugo Simões, Pedro Sequeira, Bruno Tomás, João Trigo, Sara Matos, Carlota Amaral, João Graça, Isaac Graça, André Paiva, Beatriz Paiva, José Moreno, Ricardo Pinto, Sofia Damião, Beatriz Damião Pinto, Carolina Pinto, Rita Franchi, Rui Pedro Costa, Leonor Costa, Matilde Costa, Carlos Nunes, Rafael Nunes, José Manuel Couto, Hugo Passos (Ken), Miguel Barreiros Lopes (Miko) e Rui Jacinto. Os comensais Rui Pina, Sandra Rodríguez, David Pina, Ricardo Tomás e Rute Ferreira já se haviam ausentado à hora da foto de grupo. O Clã Franchi-Costa veio, como é já tradição, para nos dar o prazer da sua companhia. Um especial Abraço às Consorores e aos Confrades que não puderam marcar presença, mas que estiveram no nosso pensamento. E a foto emoldurada, de bónus:
n.b. - As fotos d'O Jantar estarão também disponíveis brevemente na página de Facebook do Caderno de Corda.

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segunda-feira, novembro 11, 2024

Jane (7 de Dezembro de 2008 - 11 de Novembro de 2024)




Foi ASSIM que a Jane chegou. O nome, pode ler-se no primeiro comentário, foi sugerido pelo Irmão João Trigo. Vivemos quase, quase 16 anos juntos. Não fomos tão felizes como eu gostaria, especialmente ela, nestes últimos três anos de decadência física acelerada e de liberdade reduzida. Culpa inteiramente minha. A Jane partiu esta noite. Esteve imóvel, prostrada, incapaz de se alimentar autonomamente, durante uma semana. Mas libertou-se em paz, serena e sem queixas, no seu tempo.

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sexta-feira, outubro 04, 2024

Nova canção: "Não Esqueças de Lembrar" [4’16”]


Memória descritiva:
A “Canção da Rosarinho”, como foi oficiosamente titulada até à conclusão da letra, é a mais recente das canções cordianas, concluída na madrugada de 9 de Setembro de 2024, dia do sétimo aniversário da minha filha, Maria do Rosário de Almeida Pereira de Brito Simões, a quem é inteiramente dedicada. Foi-lhe oferecida para primeira escuta integral com fones nessa manhã, à mesa da cozinha, antes do pequeno-almoço e das primeiras prendas do dia. Foi por ela e para ela que “Não Esqueças de Lembrar” começou a formar-se, resultante de uma composição original de guitarra cujo processo de descoberta se iniciara ainda antes do nascimento.
A ideia inicial, bastante anterior ao processo de composição, fora inspirada preambularmente pela acústica melancólica dos Death Cab for Cutie, ao largo da qual derivei longamente quando ainda residia em Lisboa. Queria fazer uma canção com travo adocicado indie folk, mas sabia ter de encontrar outros elementos, harmonias e frases musicais que me retirassem do universo melopeico e do efeito hipnotizante que aquela sonoridade surtira sobre mim instantaneamente. Se quisesse fazer algo verdadeiramente único, tinha de encontrar o meu próprio caminho, e fui deixando o tempo fazê-lo, indicando-o para mim.
Assim foi quando compus o corpus que acompanha as estrofes de verso de “Não Esqueças de Lembrar” — uma estrutura harmónica organizada em torno de uma linha melódica descendente com início tonal em Dó maior, culminando em resolução cíclica, levando-nos pela mão, de regresso ao ponto de partida. Os trechos encerram-se com a sensação renovada de resolução e continuidade, até que, por fim, tomam outro rumo, partindo a coda de um Dó maior com sétima (C7M) sussurrado por Bob Dylan, o próprio. Abordaremos esta questão adiante.
A Rosarinho teria menos de um ano quando gravámos os balbucios que se ouvem na introdução da canção. Usei então os microfones estéreo do Boss BR-800 no escritório de casa em Santarém, sem quaisquer cuidados, com janelas abertas, o chilreio de pássaros e o ladrar da Jane lá fora, aliás audível na gravação. Terá sido também por essa altura que foi gravada a primeira guia de guitarra e uma melodia pouco depurada de voz. Já tinha a ideia essencial e algumas das palavras que vieram a compor a letra, mas era tudo ainda vago e pueril. Apesar de rudimentar, a guia era estruturalmente correcta e fiel à premissa estabelecida, e até a melodia de voz se tornou muito útil, ainda que de modo fragmentário, para a definição do que veio a ser a versão final — um proveitoso apontamento encapsulado de mim para comigo, para também eu não esquecer de lembrar, quase sete anos depois.
Muita água passou debaixo da ponte e muitos sóis se puseram até que, porque queria concluir a “Canção da Rosarinho” em tempo útil para nós e para projectos que se avizinham, e aproveitando uma semana de férias caseiras em Julho de 2024, resgatei o gravador BR-800 onde se encontrava registado o esboço da canção e revisitei-a com pragmatismo e propósito. A letra ficou fechada ao segundo dia de férias, a melodia também e logo iniciei a gravação da tríade de guitarras — a viola Artis de cordas de nylon à direita, a electro-acústica Ibañez EWC-30 de cordas de aço à esquerda e a acústica de 12 cordas Fender Tim Armstrong Hellcat ao centro.
A gravação decorreu no loft da minha casa em Almeirim, sendo que a Rosarinho assistiu, enquanto desenhava silenciosamente, a parte significativa das gravações de cordas. Tanto as três guitarras como as cinco pistas de voz foram gravadas com o microfone de condensador largo Golden Age Project FC3. Considerando as minhas limitações vocais, optei por gravar cinco pistas de voz, com uma voz média ao centro, ladeada proximamente por duas vozes graves, formando uma coluna vocal ao centro, e, nas alas, duas vozes agudas, em falsete, numa oitava que me obrigou a sussurrar encostado ao pop filter, imaginando-me a cantar suavemente ao ouvido da Rosarinho.
Foram tidos cuidados com os ruídos, mas insuficientes. Por exemplo, foram deixados passar ruídos de pingos do aparelho de ar condicionado por volta de 1’52”, que felizmente se confundem com o áudio de um melro-preto. Porque não usei, mais uma vez, software de edição para modelar ou editar as pistas instrumentais e de voz, tenho de considerar que tais falhas atribuem carácter à canção, não desdenhando dos benefícios da tecnologia. Em boa verdade, utilizei o Audacity, mas para compor as vozes da bebé Rosarinho que se ouvem na introdução e, a meio, o canto do melro, retirado de um registo do canal de YouTube “hebrideanwild”, declaradamente inspirado por “Blackbird”, dos The Beatles, que também usaram o áudio de melros na sua canção.
A coda, cuja dinâmica se altera num suave crescendo, pedia algo percussivo como pandeireta, shaker ou ambos, mas, após algumas experiências simples com microfone aberto, não quis introduzir mais texturas rítmicas e elementos de captação natural, acrescentando camadas desnecessárias de som ambiente e correndo o risco de “sujar” um ambiente sonoro razoavelmente “limpo”. Por uma questão prática, optei apenas pelo shaker, que surge à esquerda em fade in, para se passear em torno do ouvinte e terminar ao centro com duas semínimas nos terceiro e quarto tempos do último compasso. Podia ter adicionado camadas de complexidade aos arranjos, à composição, à letra e à própria gravação, mas quis fazê-la simples e directa. 

Recensão autocrítica:
Oferecida, portanto, a 9 de setembro de 2024, dia do sétimo aniversário da minha Rosarinho, esta era uma canção especial, que considerei indispensável para fechar obra sonhada, de que em breve haverá notícias. A gestação de cerca de sete anos traduz o tempo necessário para fazer jus à observação da famigerada grande virtude da paciência, de que tantas vezes falo à Rosarinho, e de que tantas vezes me falara a sua bisavó Rosário. Retrocedendo então ao ponto de partida, terão sido os Death Cab for Cutie que provocaram a intenção exordial de fazer uma canção, sem saber ainda para que fim, com que fito. Quando a ouvi pela primeira vez, quis tocá-la de imediato, sabendo instintivamente que algo floresceria da descoberta. A ambiência já indiciava uma potencial canção de embalar melancólica mas doce, como veio a verificar-se, mas fiquei viciosamente cativo na melodia e nos acordes, e tive de procurar caminhos alternativos e complementares. A certo ponto do processo exploratório, compus o tal corpus que acompanha as estrofes de verso.
Só mais tarde, era a Rosarinho bebé, compus a bridge que se ouve do primeiro para o segundo terço da canção e que funciona como um interlúdio simbólico da presença dos The Beatles nos altifalantes e nos espíritos cá de casa. Do ponto de vista compositivo, é também uma pequena homenagem à banda de Liverpool — um trecho que deriva de flexões e inflexões, também elas descendentes, de “Blackbird”. Daí, da letra e da lógica da canção, também acontece a oportuna inclusão do canto de um melro-preto, à semelhança do que os The Beatles fizeram na sua canção. Faço ainda questão de mencionar que, na composição vocal, voltei a ter os Fab Four como referência, inspirando-me em aspectos melódicos e líricos de “For No One” (“Amanhã de manhã…“), “A Day in the Life” (“Nos teus olhos brilha o mar…”) e ainda, muito remotamente, “Hey Jude”. O final é segredado pelos Death Cab for Cutie e por Bob Dylan, a quem pedi emprestados acordes de “Don’t Think Twice, It’s All Right”, a começar pelo tal Dó maior com sétima (C7M).
A letra foi escrita a pensar numa menina de seis anos, quase sete. Simples, centra-se inteiramente em ideias e conceitos comungados por pai e filha, em memórias comuns e em senhas e contrassenhas. São disso exemplo, desde logo, os dois primeiros versos, adaptados do poema “Setentrional”, de Cesário Verde – versos que constituem um dos nossos códigos. Se pergunto «como é o nosso amor?», recebo a resposta «grande, grande como um mar sem praias». Não querendo fazer apreciações, dissecações ou dissertações sobre a letra, que é íntima e autoexplicativa, não posso deixar de referir que esta é uma canção para ser escutada à la longue, como a letra sugere, também pelos vindouros.
Ao tema óbvio do amor paterno e incondicional, soma-se uma abordagem poética que mistura a simplicidade e a profundidade de uma canção de embalar, em que os elementos dos sonhos, da memória e da continuidade se entrelaçam no desejo de perpetuar o amor e a ligação para lá do aquiagora, como se uma canção pudesse ser cápsula de amor preservado, pronta para ser reaberta adiante. A estética simples e acústica faz de “Não Esqueças de Lembrar” uma peça direta, mas emocionalmente esmerada, doce e melancólica, que abraça e embala na ternura de uma declaração de amor intemporal, sublinhando a importância da memória como ato de carinho e permanência, bem como a transmissão de valores e afetos que sobrevivam ao teste do tempo para serem expressos e vividos ativamente, nomeadamente através da arte e da imaginação.
“Não Esqueças de Lembrar” procura estabelecer um diálogo implícito entre passado, presente e futuro, pelo qual o amor é o fio condutor que une gerações. Esse conceito de continuidade e herança emocional é talvez o imo da letra, cujo apelo final simboliza não apenas a canção como um legado, mas também um amor que transcende o tempo e as palavras. Insha'Allah.

Não Esqueças de Lembrar
(letra)

Um amor grande
como um mar sem praias
Quando te vi
fui de alegria às lágrimas

E nos teus olhos
não deixes de lembrar
… os meus

E enquanto puderes lembrar
não esqueças de cantar

Nos teus olhos brilha o mar
e um pôr-do-sol aberto de par em par

E nos teus sonhos
não deixes de sonhar
… os céus

Amanhã de manhã
vai brilhar uma estrela,
é aquela que revela
não haver adeus

Dessa janela
não esqueças de lembrar
… os teus

Hás-de poder cantar
esta canção de embalar
a quem a souber ouvir
e mais tarde escutar,
a quem seja para nós
uma bênção de Deus
Não te esqueças de a cantar aos teus

Amor meu,
coração fora do peito,
contigo sou inteiro,
somos um desse jeito
Somos um só grito,
infinito,
amor perfeito,
não esqueças de lembrar

Setup da gravação caseira das vozes

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domingo, setembro 08, 2024

Infinito



Tempos houve de infinito,
uma fracção de segundo
condensando toda a matéria,
passado, presente e futuro,
fusão comprimida de cristais
onde já nos encontrávamos,
e mil gatos, areias e mares antigos.
Houve explosões, expansões, reacções
e a remota improbabilidade
de que o primeiro rio, o primeiro sismo,
tenham feito rolar a primeira pedra,
cumprindo o curso exacto
de formas prometidas
e eventos necessários
para que aqui estejamos nós,
em Milfontes, tecendo presente,
moldando futuro, segurando infinito.


Julho de 2024

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sábado, junho 01, 2024

Crónica e fotos d'O Jantar do XIX aniversário brevemente

Estimados leitores e confrades cordianos, a publicação da crónica e das fotos d'O Jantar do XIX aniversário do Caderno de Corda está significativamente atrasada por motivos que se prendem com a priorização de projectos artísticos, nomeadamente literários, que me ocupam os tempos livres. Ao momento ainda não foi desenvolvida a crónica nem as fotos foram editadas, mas prometo fazê-lo o mais brevemente possível. Este ano faremos um registo menos ambicioso, mais simples, dadas as circunstâncias e o tempo disponível, mas em 2025, ao vigésimo aniversário do Caderno de Corda, promete-se uma celebração nunca antes vista. 'Té já!

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quarta-feira, maio 22, 2024

Deus Está na Chuva



Deus está na chuva,
no fumo ondulante do cigarro,
formando sombras espectrais,
rostos de sereias e corpos de amantes,
antílopes que brincam na casa do lago,
sem medo e sem pressa,
onde a morte por desventura
seja apenas mito, promessa.

Severin espera-te lá,
onde não há coincidências,
onde cada bala apanhada com os dentes
seja a ilusão que desmente
a morte imaginada.

São gomos de areia molhada
os pés que pisaste, bem-me-quer desfolhado,
no olhar assustado que me lançaste.
Dizem que bebeste a solidão,
que escorreste a garrafa que repousa
em estilhaços, como tu, no chão.
Bendito esquimó que não conhecia
a Deus, pecado ou religião.

Invento mentiras para contar a Verdade.
Deus está na casa do lago,
nas sombras que se desvanecem,
nos sonhos que nunca adormecem
e na vida que, sem desventura,
após a morte eternamente floresce.

N. do A. – Poema composto a partir da reescrita do poema “Ficção”, redigido em Maio de 2009 e publicado em 2012 no livro “Sétima-Feira”, e da letra de uma velha canção, titulada “Areias de Júpiter”, que nunca chegou a ser gravada. “Ficção” fora dedicado a Kurt Cobain, em parte inspirado por Velvet Underground.

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Mais que Eternidade

Atravessas a sacra via dos corredores do tempo,
melodia transformada em saudade e cântico.
É preciso cantar-te às pedras que não clamem por nós,
é preciso largar um dilúvio que se estanque na pauta,
esquecida sob o tampo da partitura do silêncio,
ao resgate do milagre, da simplicidade mundana,
da descoberta sagrada e da existência profana.
A vida é sempre a perder, mas a música é eterna.

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quarta-feira, março 27, 2024

19 anos de Caderno de Corda

O Caderno de Corda perfaz hoje 19 anos com vitalidade que há muito não se lia. A pedido de algumas famílias, O Jantar realiza-se apenas a 12 de Abril, como sempre no restaurante A Valenciana, evitando o período de férias da Páscoa. Como é sabido, o aniversário comemora-se de 26 para 27 de Março (data do aniversário do blogue), mas, pela quarta vez, será concretizado em data posterior, de modo a favorecer a comparência do maior número de confrades cordianos. Tragam um Amigo também e, por favor, confirmem a presença na página do evento no Facebook: 

'Té já.

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sábado, março 23, 2024

Anno XIX - O Jantar (convocatória)

Ao 19.º ano, eis a convocatória tardia para O Jantar, que se realiza este ano a 12 de Abril de 2024, no sítio do costume, evitando o período de férias da Páscoa. Como é sabido, o aniversário comemora-se de 26 para 27 de Março (data do aniversário do blogue), mas vem sendo já hábito concretizá-lo em data posterior, de modo a favorecer a comparência do maior número de confrades cordianos. Tragam um Amigo também.

Confirmação requerida na página do evento no Facebook: https://www.facebook.com/events/1182760943105799/ 

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segunda-feira, março 11, 2024

Feliz Agora (Porra!)

DAQUI



Sucedem-se sombras em cadência rápida
e o verso flui na ponta da escrita automática,
corrente como água sem ter para onde.
Na dança acelerada de dias alados,
de clepsidras arenosas como rios secos
e de consumos vorazes em vitrinas expostos,
a vida, subtil, verte-se entre dedos, sabemos
- palco de ilusões, espetáculo frenético
de música apressada e caos poético.
Desumanizado, excedente, o consumidor
perde a essência do gosto, perde o sabor,
despreza lamentos em caligrafia lenta
e versos que abraçam partidas impossíveis.
Num portal para nenhures um poeta sem choro
rascunha a efemeridade de ilusões adiadas.
Num beco urbano um palhaço plange e soluça.
Conhece uma jovem. Ela dá-lhe um arco-íris.

Ideias brilhantes, verdadeiramente geniais,
trariam fama, fortuna e glória se bem executadas,
mas a perícia sensível do virtuoso está muito desvalorizada
perante a tirania do limiar da pobreza
e do trabalho pela sobrevivência,
e não poderíamos ter todos fama, fortuna e glória.
São precisos inúmeros pobres para fazer um rico
e demasiados amenistas para carregar um líder.
Estupendas são as corrupções políticas,
os escândalos financeiros e o chico-espertismo,
mas não chegam para vomitarmos à mesa diante da televisão.
Afinal, eles são da nossa cepa, são os que se chegam à frente,
oportunistas vaidosos, munidos de bandeirolas, panfletos e bonés.

Passez à-la-caisse! Passez à-la-caisse!

A Pessoa, o poeta, cheirava a tinta fresca de tipografia…
Hossanas a quem conhecer o cheiro de cartazes
recentemente impressos, colados a pincel,
e a quem, dentro de pouco tempo,
souber como se folheia um jornal;
como se conduz um camião TIR;
como se atende um cliente a sorrir.
Os armamentos gloriosamente mortíferos
ainda não acabaram connosco de vez.
Ouvi dizer que somos do interesse de extraterrestres.
Mas tudo é vida fascinante, até nas montras brilhantes
com dons curativos de afeções de alma
e de espíritos voluptuosamente errantes,
ainda sabendo que os astros são os mesmos
que inspiraram os mestres de Da Vinci
e que o Sol é o próprio que tisnou Cleópatra.

Ah, e as vidas complexas da gente que aos andaimes sobe
sem outro fito que não a gente que à braguilha desce.
A indigência moral não assenta aos perdedores,
àqueles que, destroçados, desistiram de competir,
incapazes de depredar, derrotar, conquistar ou subjugar;
incapazes sequer de lutar pelo pão na mesa,
de limpar o suor nas mangas estiradas sobre os pulsos,
no entanto sujas de ranho e resíduos alimentares.
A luz do Sol abafa o silêncio das imitações de vida
de pobres, ricos e remediados, das bocas suturadas,
e havemos todos de morrer sem dar por nada.
Cá preciso de Liberdade para depois de velho ou morto.
A vida é mais custosa do que a vida que temos para dar;
é um recurso tão escasso quanto urgente, antes que morra,
e eu só tenho uma certeza: quero ser feliz agora, porra.

Dedicado a José Mário Branco e Fernando Pessoa

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terça-feira, março 05, 2024

Primado Aristotélico

DAQUI











Se buscas algo que pretendes possuir,
cresce o vazio do que te falta,
és outro.
Pelo que não tens, definhas.
Pelo que não és, renasces
como renascem os dias,
Lua após Lua, Sol após Sol,
reconhecendo a fatalidade do destino,
mas ignorando o itinerário da viagem.
Terás aceitado viver
para seres aceite? 
Terás entregado os pontos
para não seres entregue?
Terás matado a sede
para não seres morto?
Ser ou ter?
Ser ou não ser?
Propósito, identidade, realização.
É tua a conjugação.
O verbo define a narrativa
das biografias, da vida.

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sábado, março 02, 2024

Liberdade É Escrever Poemas

DAQUI
Havia crianças radiantes de sorrisos abertos,
olhos brilhantes e sonhadores, despertos.
Impecavelmente alimentadas e vestidas,
corriam para a vida sem ideias preconcebidas.

Cresciam num mundo livre de ódio e racismo,
fome, desigualdade, desperdício e classismo
- palavras desconhecidas, caídas em desuso,
lembradas na História de tempos obusos.

Nada havia senão paz e harmonia,
auroras de Liberdade e alegria,
Liberdade de pensar e de saber,
Liberdade de viver e de morrer.

Nada havia senão contentamento
conformado com a inevitabilidade
da dor, da perda e do tempo,
da insaciabilidade do Amor e da Liberdade.

Havia alvoradas que rompiam em sinfonia
alinhando a Este a Lua e a estrela d’Alva
num prenúncio solar de infinita sabedoria
que ao dia erudia corpos e almas.

Havia Liberdade com responsabilidade.
Liberdade...

Liberdade de ficar e de partir,
Liberdade de falar e de ouvir,
Liberdade do corpo e da mente,
de um voto verdadeiro e consciente.

Havia Liberdade de trabalhar e de brincar,
Liberdade de ganhar e de perder,
Liberdade de escolher e rejeitar, de sonhar
o que ainda não existia em nenhum lugar.

Havia Liberdade de dar e de partilhar,
Liberdade da servidão e da libertação,
Liberdade de acreditar e de orar,
Liberdade de ser numa canção.

-*-

Acordou aturdido desse sonho lindo,
perguntando-se se conhece a Liberdade
quem por herança lhe viu o poder transmitido
ou quem da prisão se liberta com temeridade.

Aquele que reina de berço e vagueia livre
não vislumbra o êxtase da libertação
do que nasceu acorrentado e vive
asfixiado para cantar a tal canção.

Pudessem os mestres da guerra extrair
de escravos ignorantes o ar dos pulmões;
pudessem eles os seus sonhos destruir
com o fogo de bombas e canhões.

Escondidos atrás de exércitos e muros,
sentados a secretárias opulentas,
ei-los altivos em mansões faraónicas, seguros
e legitimados para todos os crimes e violências.

A impunidade é um incentivo vicioso
que perverte irremediavelmente.
O corruptor ainda cobra à morte o preço
do juro tirano das almas de tanta gente.

O rosto do executor é sempre oculto.

Põe armas nas mãos de crianças,
agita o mundo como a um saco de gatos,
atiça ódios e acalenta vãs esperanças,
inventa doenças; rentabiliza os fármacos.

O rosto do executor é sempre oculto.
A Liberdade não virá do gume do medo.
O opressor permanecerá um vulto
movendo-se nos bastidores em segredo.

Resta-nos andar na contramão,
viver de remar contra a maré,
escrever canções de redenção,
depositar no outro a nossa fé,
passar o amarelo, falar na sala de aula
e provar o gosto de ser livre numa jaula.

Livre do medo da anarquia do destino,
mão firme e fria como a morte ao leme,
cumprindo-se desimpedido e libertino,
desobediente e rebelde, mas solene,
empunha o cravo e o caderno do poeta
que acabou morto na sarjeta.

E um voraz apetite infantil lhe diz da vida
que a cura para os males da Liberdade
é mais Liberdade ainda.

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