A “Canção da Rosarinho”, como foi oficiosamente titulada até à conclusão da letra, é a mais recente das canções cordianas, concluída na madrugada de 9 de Setembro de 2024, dia do sétimo aniversário da minha filha, Maria do Rosário de Almeida Pereira de Brito Simões, a quem é inteiramente dedicada. Foi-lhe oferecida para primeira escuta integral com fones nessa manhã, à mesa da cozinha, antes do pequeno-almoço e das primeiras prendas do dia. Foi por ela e para ela que “Não Esqueças de Lembrar” começou a formar-se, resultante de uma composição original de guitarra cujo processo de descoberta se iniciara ainda antes do nascimento.
A ideia inicial, bastante anterior ao processo de composição, fora inspirada preambularmente pela acústica melancólica dos Death Cab for Cutie, ao largo da qual derivei longamente quando ainda residia em Lisboa. Queria fazer uma canção com travo adocicado indie folk, mas sabia ter de encontrar outros elementos, harmonias e frases musicais que me retirassem do universo melopeico e do efeito hipnotizante que aquela sonoridade surtira sobre mim instantaneamente. Se quisesse fazer algo verdadeiramente único, tinha de encontrar o meu próprio caminho, e fui deixando o tempo fazê-lo, indicando-o para mim.
Assim foi quando compus o corpus que acompanha as estrofes de verso de “Não Esqueças de Lembrar” — uma estrutura harmónica organizada em torno de uma linha melódica descendente com início tonal em Dó maior, culminando em resolução cíclica, levando-nos pela mão, de regresso ao ponto de partida. Os trechos encerram-se com a sensação renovada de resolução e continuidade, até que, por fim, tomam outro rumo, partindo a coda de um Dó maior com sétima (C7M) sussurrado por Bob Dylan, o próprio. Abordaremos esta questão adiante.
A Rosarinho teria menos de um ano quando gravámos os balbucios que se ouvem na introdução da canção. Usei então os microfones estéreo do Boss BR-800 no escritório de casa em Santarém, sem quaisquer cuidados, com janelas abertas, o chilreio de pássaros e o ladrar da Jane lá fora, aliás audível na gravação. Terá sido também por essa altura que foi gravada a primeira guia de guitarra e uma melodia pouco depurada de voz. Já tinha a ideia essencial e algumas das palavras que vieram a compor a letra, mas era tudo ainda vago e pueril. Apesar de rudimentar, a guia era estruturalmente correcta e fiel à premissa estabelecida, e até a melodia de voz se tornou muito útil, ainda que de modo fragmentário, para a definição do que veio a ser a versão final — um proveitoso apontamento encapsulado de mim para comigo, para também eu não esquecer de lembrar, quase sete anos depois.
Muita água passou debaixo da ponte e muitos sóis se puseram até que, porque queria concluir a “Canção da Rosarinho” em tempo útil para nós e para projectos que se avizinham, e aproveitando uma semana de férias caseiras em Julho de 2024, resgatei o gravador BR-800 onde se encontrava registado o esboço da canção e revisitei-a com pragmatismo e propósito. A letra ficou fechada ao segundo dia de férias, a melodia também e logo iniciei a gravação da tríade de guitarras — a viola Artis de cordas de nylon à direita, a electro-acústica Ibañez EWC-30 de cordas de aço à esquerda e a acústica de 12 cordas Fender Tim Armstrong Hellcat ao centro.
A gravação decorreu no loft da minha casa em Almeirim, sendo que a Rosarinho assistiu, enquanto desenhava silenciosamente, a parte significativa das gravações de cordas. Tanto as três guitarras como as cinco pistas de voz foram gravadas com o microfone de condensador largo Golden Age Project FC3. Considerando as minhas limitações vocais, optei por gravar cinco pistas de voz, com uma voz média ao centro, ladeada proximamente por duas vozes graves, formando uma coluna vocal ao centro, e, nas alas, duas vozes agudas, em falsete, numa oitava que me obrigou a sussurrar encostado ao pop filter, imaginando-me a cantar suavemente ao ouvido da Rosarinho.
Foram tidos cuidados com os ruídos, mas insuficientes. Por exemplo, foram deixados passar ruídos de pingos do aparelho de ar condicionado por volta de 1’52”, que felizmente se confundem com o áudio de um melro-preto. Porque não usei, mais uma vez, software de edição para modelar ou editar as pistas instrumentais e de voz, tenho de considerar que tais falhas atribuem carácter à canção, não desdenhando dos benefícios da tecnologia. Em boa verdade, utilizei o Audacity, mas para compor as vozes da bebé Rosarinho que se ouvem na introdução e, a meio, o canto do melro, retirado de um registo do canal de YouTube “hebrideanwild”, declaradamente inspirado por “Blackbird”, dos The Beatles, que também usaram o áudio de melros na sua canção.
A coda, cuja dinâmica se altera num suave crescendo, pedia algo percussivo como pandeireta, shaker ou ambos, mas, após algumas experiências simples com microfone aberto, não quis introduzir mais texturas rítmicas e elementos de captação natural, acrescentando camadas desnecessárias de som ambiente e correndo o risco de “sujar” um ambiente sonoro razoavelmente “limpo”. Por uma questão prática, optei apenas pelo shaker, que surge à esquerda em fade in, para se passear em torno do ouvinte e terminar ao centro com duas semínimas nos terceiro e quarto tempos do último compasso. Podia ter adicionado camadas de complexidade aos arranjos, à composição, à letra e à própria gravação, mas quis fazê-la simples e directa.
Recensão autocrítica:
Oferecida, portanto, a 9 de setembro de 2024, dia do sétimo aniversário da minha Rosarinho, esta era uma canção especial, que considerei indispensável para fechar obra sonhada, de que em breve haverá notícias. A gestação de cerca de sete anos traduz o tempo necessário para fazer jus à observação da famigerada grande virtude da paciência, de que tantas vezes falo à Rosarinho, e de que tantas vezes me falara a sua bisavó Rosário. Retrocedendo então ao ponto de partida, terão sido os Death Cab for Cutie que provocaram a intenção exordial de fazer uma canção, sem saber ainda para que fim, com que fito. Quando a ouvi pela primeira vez, quis tocá-la de imediato, sabendo instintivamente que algo floresceria da descoberta. A ambiência já indiciava uma potencial canção de embalar melancólica mas doce, como veio a verificar-se, mas fiquei viciosamente cativo na melodia e nos acordes, e tive de procurar caminhos alternativos e complementares. A certo ponto do processo exploratório, compus o tal corpus que acompanha as estrofes de verso.
Só mais tarde, era a Rosarinho bebé, compus a bridge que se ouve do primeiro para o segundo terço da canção e que funciona como um interlúdio simbólico da presença dos The Beatles nos altifalantes e nos espíritos cá de casa. Do ponto de vista compositivo, é também uma pequena homenagem à banda de Liverpool — um trecho que deriva de flexões e inflexões, também elas descendentes, de “Blackbird”. Daí, da letra e da lógica da canção, também acontece a oportuna inclusão do canto de um melro-preto, à semelhança do que os The Beatles fizeram na sua canção. Faço ainda questão de mencionar que, na composição vocal, voltei a ter os Fab Four como referência, inspirando-me em aspectos melódicos e líricos de “For No One” (“Amanhã de manhã…“), “A Day in the Life” (“Nos teus olhos brilha o mar…”) e ainda, muito remotamente, “Hey Jude”. O final é segredado pelos Death Cab for Cutie e por Bob Dylan, a quem pedi emprestados acordes de “Don’t Think Twice, It’s All Right”, a começar pelo tal Dó maior com sétima (C7M).
A letra foi escrita a pensar numa menina de seis anos, quase sete. Simples, centra-se inteiramente em ideias e conceitos comungados por pai e filha, em memórias comuns e em senhas e contrassenhas. São disso exemplo, desde logo, os dois primeiros versos, adaptados do poema “Setentrional”, de Cesário Verde – versos que constituem um dos nossos códigos. Se pergunto «como é o nosso amor?», recebo a resposta «grande, grande como um mar sem praias». Não querendo fazer apreciações, dissecações ou dissertações sobre a letra, que é íntima e autoexplicativa, não posso deixar de referir que esta é uma canção para ser escutada à la longue, como a letra sugere, também pelos vindouros.
Ao tema óbvio do amor paterno e incondicional, soma-se uma abordagem poética que mistura a simplicidade e a profundidade de uma canção de embalar, em que os elementos dos sonhos, da memória e da continuidade se entrelaçam no desejo de perpetuar o amor e a ligação para lá do aquiagora, como se uma canção pudesse ser cápsula de amor preservado, pronta para ser reaberta adiante. A estética simples e acústica faz de “Não Esqueças de Lembrar” uma peça direta, mas emocionalmente esmerada, doce e melancólica, que abraça e embala na ternura de uma declaração de amor intemporal, sublinhando a importância da memória como ato de carinho e permanência, bem como a transmissão de valores e afetos que sobrevivam ao teste do tempo para serem expressos e vividos ativamente, nomeadamente através da arte e da imaginação.
“Não Esqueças de Lembrar” procura estabelecer um diálogo implícito entre passado, presente e futuro, pelo qual o amor é o fio condutor que une gerações. Esse conceito de continuidade e herança emocional é talvez o imo da letra, cujo apelo final simboliza não apenas a canção como um legado, mas também um amor que transcende o tempo e as palavras. Insha'Allah.
Não Esqueças de Lembrar
(letra)
Um amor grande como um mar sem praias Quando te vi fui de alegria às lágrimas
E nos teus olhos não deixes de lembrar … os meus
E enquanto puderes lembrar não esqueças de cantar
Nos teus olhos brilha o mar e um pôr-do-sol aberto de par em par
E nos teus sonhos não deixes de sonhar … os céus
Amanhã de manhã vai brilhar uma estrela, é aquela que revela não haver adeus
Dessa janela não esqueças de lembrar … os teus
Hás-de poder cantar esta canção de embalar a quem a souber ouvir e mais tarde escutar, a quem seja para nós uma bênção de Deus Não te esqueças de a cantar aos teus
Amor meu, coração fora do peito, contigo sou inteiro, somos um desse jeito Somos um só grito, infinito, amor perfeito, não esqueças de lembrar
Tempos houve de infinito, uma fracção de segundo condensando toda a matéria, passado, presente e futuro, fusão comprimida de cristais onde já nos encontrávamos, e mil gatos, areias e mares antigos. Houve explosões, expansões, reacções e a remota improbabilidade de que o primeiro rio, o primeiro sismo, tenham feito rolar a primeira pedra, cumprindo o curso exacto de formas prometidas e eventos necessários para que aqui estejamos nós, em Milfontes, tecendo presente, moldando futuro, segurando infinito.
Crónica e fotos d'O Jantar do XIX aniversário brevemente
Estimados leitores e confrades cordianos, a publicação da crónica e das fotos d'O Jantar do XIX aniversário do Caderno de Corda está significativamente atrasada por motivos que se prendem com a priorização de projectos artísticos, nomeadamente literários, que me ocupam os tempos livres. Ao momento ainda não foi desenvolvida a crónica nem as fotos foram editadas, mas prometo fazê-lo o mais brevemente possível. Este ano faremos um registo menos ambicioso, mais simples, dadas as circunstâncias e o tempo disponível, mas em 2025, ao vigésimo aniversário do Caderno de Corda, promete-se uma celebração nunca antes vista. 'Té já!
Deus está na chuva, no fumo ondulante do cigarro, formando sombras espectrais, rostos de sereias e corpos de amantes, antílopes que brincam na casa do lago, sem medo e sem pressa, onde a morte por desventura seja apenas mito, promessa.
Severin espera-te lá, onde não há coincidências, onde cada bala apanhada com os dentes seja a ilusão que desmente a morte imaginada.
São gomos de areia molhada os pés que pisaste, bem-me-quer desfolhado, no olhar assustado que me lançaste. Dizem que bebeste a solidão, que escorreste a garrafa que repousa em estilhaços, como tu, no chão. Bendito esquimó que não conhecia a Deus, pecado ou religião.
Invento mentiras para contar a Verdade. Deus está na casa do lago, nas sombras que se desvanecem, nos sonhos que nunca adormecem e na vida que, sem desventura, após a morte eternamente floresce.
N. do A. –
Poema composto a partir da reescrita do poema “Ficção”, redigido em Maio de
2009 e publicado em 2012 no livro “Sétima-Feira”, e da letra de uma velha canção,
tirulada “Areias de Júpiter”, que nunca chegou a ser gravada. “Ficção” fora
dedicado a Kurt Cobain, em parte inspirado por Velvet Underground.
Atravessas a sacra via dos corredores do tempo, melodia transformada em saudade e cântico. É preciso cantar-te às pedras que não clamem por nós, é preciso largar um dilúvio que se estanque na pauta, esquecida sob o tampo da partitura do silêncio, ao resgate do milagre, da simplicidade mundana, da descoberta sagrada e da existência profana. A vida é sempre a perder, mas a música é eterna.
O Caderno de Corda perfaz hoje 19 anos com vitalidade que há muito não se lia. A pedido de algumas famílias, O Jantar realiza-se apenas a 12 de Abril, como sempre no restaurante A Valenciana, evitando o período de férias da Páscoa. Como é sabido, o aniversário comemora-se de 26 para 27 de Março (data do aniversário do blogue), mas, pela quarta vez, será concretizado em data posterior, de modo a favorecer a comparência do maior número de confrades cordianos. Tragam um Amigo também e, por favor, confirmem a presença na página do evento no Facebook:
Ao 19.º ano, eis a convocatória tardia para O Jantar, que se realiza este ano a 12 de Abril de 2024, no sítio do costume, evitando o período de férias da Páscoa. Como é sabido, o aniversário comemora-se de 26 para 27 de Março (data do aniversário do blogue), mas vem sendo já hábito concretizá-lo em data posterior, de modo a favorecer a comparência do maior número de confrades cordianos. Tragam um Amigo também.
Sucedem-se sombras em cadência rápida e o verso flui na ponta da escrita automática, corrente como água sem ter para onde. Na dança acelerada de dias alados, de clepsidras arenosas como rios secos e de consumos vorazes em vitrinas expostos, a vida, subtil, verte-se entre dedos, sabemos - palco de ilusões, espetáculo frenético de música apressada e caos poético. Desumanizado, excedente, o consumidor perde a essência do gosto, perde o sabor, despreza lamentos em caligrafia lenta e versos que abraçam partidas impossíveis. Num portal para nenhures um poeta sem choro rascunha a efemeridade de ilusões adiadas. Num beco urbano um palhaço plange e soluça. Conhece uma jovem. Ela dá-lhe um arco-íris.
Ideias brilhantes, verdadeiramente geniais, trariam fama, fortuna e glória se bem executadas, mas a perícia sensível do virtuoso está muito desvalorizada perante a tirania do limiar da pobreza e do trabalho pela sobrevivência, e não poderíamos ter todos fama, fortuna e glória. São precisos inúmeros pobres para fazer um rico e demasiados amenistas para carregar um líder. Estupendas são as corrupções políticas, os escândalos financeiros e o chico-espertismo, mas não chegam para vomitarmos à mesa diante da televisão. Afinal, eles são da nossa cepa, são os que se chegam à frente, oportunistas vaidosos, munidos de bandeirolas, panfletos e bonés.
Passez à-la-caisse! Passez à-la-caisse!
A Pessoa, o poeta, cheirava a tinta fresca de tipografia… Hossanas a quem conhecer o cheiro de cartazes recentemente impressos, colados a pincel, e a quem, dentro de pouco tempo, souber como se folheia um jornal; como se conduz um camião TIR; como se atende um cliente a sorrir. Os armamentos gloriosamente mortíferos ainda não acabaram connosco de vez. Ouvi dizer que somos do interesse de extraterrestres. Mas tudo é vida fascinante, até nas montras brilhantes com dons curativos de afeções de alma e de espíritos voluptuosamente errantes, ainda sabendo que os astros são os mesmos que inspiraram os mestres de Da Vinci e que o Sol é o próprio que tisnou Cleópatra.
Ah, e as vidas complexas da gente que aos andaimes sobe sem outro fito que não a gente que à braguilha desce. A indigência moral não assenta aos perdedores, àqueles que, destroçados, desistiram de competir, incapazes de depredar, derrotar, conquistar ou subjugar; incapazes sequer de lutar pelo pão na mesa, de limpar o suor nas mangas estiradas sobre os pulsos, no entanto sujas de ranho e resíduos alimentares. A luz do Sol abafa o silêncio das imitações de vida de pobres, ricos e remediados, das bocas suturadas, e havemos todos de morrer sem dar por nada. Cá preciso de Liberdade para depois de velho ou morto. A vida é mais custosa do que a vida que temos para dar; é um recurso tão escasso quanto urgente, antes que morra, e eu só tenho uma certeza: quero ser feliz agora, porra.
* A última estrofe, a itálico, traduz um excerto de "Turn! Turn! Turn!", dos Byrds, por sua vez uma canção original de Pete Seeger, cuja letra, excepto o título, repetido como refrão, e os dois versos finais, consiste na reprodução exacta dos primeiros oito versos do terceiro capítulo do livro bíblico de Eclesiastes.
Amaste como o luar ao meio-dia. Sorrindo na cara do desgosto, fizeste da fealdade beleza, reflectindo-nos obliquamente, espelhos eivados, transfigurados na intersecção radiante de um inextinguível nexus luminoso num riacho de mosto.
Como é que se diz, mãe, que foste com a cabeça entre as minhas mãos vagas, que te chamei e pedi para ficares quando já não estavas? Como se diz que te ia murmurando ao ouvido, que te implorava para não ires, e já tinhas ido? Como se diz, mãe, que estiveste 45 minutos de vestes rasgadas e peito desnudo, e eu só te largava a espaços, sem toque, para o desfibrilhador te acometer em espasmos e nenhum de nós recuperar do choque?
Nasceste tão doce para acabar num corpo asfixiado, magro e seminu, lábios arroxeados, incapaz de responder à minha súplica, no chão prostrada, ao lado da cama, sem poesia nem música - um corpo de nada, sem chama -, já tu planavas livre, olhando-me de cima.
Emergiste grácil desse corpo, estou certo, vaporosa como as cinzas, mas eu guardei-te perto, germinada num vaso, cantada em verso. Como água para azeite, regada a preceito, a oliveira das minhas raízes pende do parapeito para alcançar céu aberto. E os anjos, suspirantes numa frágua de amor devoto como eu a clamar o teu nome, mãe - porque mãe é o teu nome de santa -, olhavam-nos com o mesmo nó na garganta que de então me aperta a laringe também.
Celestial e bendita, lirial, silenciaste por fim mágoas e dores. Ter-te-ás feito de todas as cores e dos meus ais roseiral, que te sei alígera e ágil, ainda que levasses daqui todas as partes de mim que sem ti nem eu sei.
Quando nasci o mundo eras tu, a tua palavra era lei. E agora, mãe? A que mundo me dei? Podes dizer que me vês?, que ainda sou o menino dos três que adormeceu nos teus olhos de ternura sem fim? Ainda oiço a tua voz: “… O teu berço adornei e o pus junto a mim…” Diz-me que sim.
10 de Junho de 2021, Santarém. Foto: Ricardo Pinto
Profunda a quietude, palavra de som, suave, pairando sobre poços de tranquilidade e sobre o deserto, corpo de vento e de mares vazios em canyons sem idade, na furtividade de dias e noites de relento. Palavra-arte a céu limpo e aberto, dorme sem tempo, sem chão nem verbo, e dormem corvos à janela e cães à minha porta - nenhum sussurro abafado. Arde, ruidosa, uma vela, velando o silêncio entre notas - o silêncio pontuado que realmente importa. Há qualidades incorpóreas cuja existência, dupla, termina e começa onde uma começa e outra termina, à frente e atrás do espelho - uma entidade gémea que desponta da matéria e da luz, na solidez da sombra.
30 anos depois com Luís Osório na Feira do Livro de Coruche
Tenho de registar a alegria e o privilégio de, 30 anos depois, ter reencontrado (fisicamente) o querido Luís Osório. O contexto, tão diferente daquele de há três décadas, mas de prismas simbólicos e essenciais tão idêntico. A sequela de uma conversa que durava uma tarde e uma noite inteira na Feira do Livro de Coruche. "E agora é para sempre", Luís. 'Té já.
Caminho sem caminho até que a música me encontra numa cegueira marejada de prantos vulcânicos. Transbordante, toma sentidos de sentidos sussurrados à intocada flor da pele. Como se visse, intangível, o som conhece-me melhor assim, fosse tal coisa possível. Em inspirada melancolia, torna a tristeza poesia.
Casa é aqui, agora, na penumbra, sob um lampião fundido. O uivo da tempestade e o gemido das ondas na praia orquestram memórias primitivas de um canto adâmico de areia engasgado no diafragma; de estrelas amarradas ao céu e de uma face lunar que entoa, à volta da fogueira, canções de magma esquecidas há evos.
Vigilante está em tudo e em toda a parte uma melodia universal. A música grava em nós quando julgamos gravá-la.
Sinto os lábios húmidos e tenros; o cheiro nectarino do cabelo mesclado com o odor metálico de um brinco; o pescoço deleitável e mavioso ao alcance impossível da boca quando toca aquela canção.
Regresso à noite em que caminho sem caminho, de olhos no chão, e encontro a cassete que me estava destinada precisamente na noite do abandono, quando as pedras da calçada pareciam maiores do que o sono e do que qualquer estrela. E ainda consigo, aos primeiros acordes, estar ali de novo, de mãos nos bolsos ruços, arrepiado, nariz pingado e carapuço, sob um lampião amarelado da 24 de Julho.
Sou dado a voar no Estádio do Restelo, libertado por duas pombas antes aninhadas nas palmas destas mãos frias e suadas. Sou o Redondo de Sanlúcar de Guadiana que vinha de Alcoutim para jogar à bola, e sou-o no nylon surdo de uma viola. Sou a flauta de Pã e a roda de esmeril avizinhando-se o amolador, mas sou sobretudo o odor telúrico e mudo da Rua Martim Vaz, tingido por roupa lavada a secar nos estendais. E, como quem faz de nada tudo, encontro-me eterno no beiral dos avós a pensar se chamo a Rosário para o dominó.
Foi o som que me trouxe primeiro o coração sincopado de mãe e o mundo inteiro lá fora. Do berço de agora e de todas as horas, o rádio tocava a canção que me quer bem, a rima rúnica de um terço anglo-saxónico, entoada com pronúncia de Liverpool, urdida num espectro sónico intrauterino e explosiva num clarão lúcido e transparente que iluminou de Sol materno ventre. Misteriosamente, a canção sempre me conhecera, como outras que pintam paisagens audíveis em insulamentos fetais de supernovas, mostrando-nos que somos do mundo.
Numa linguagem que a razão não compreende, a música exprimiu a mais alta filosofia além da sagrada ausência de matéria, dizendo-me que dentro estaria tudo o que lá fora já era - um horizonte eterno e infinito de comoções que habito numa paisagem cromática audível de tempo e espaço profundo, semitonado, subtil, inapreensível.
Vigilante está em tudo e em toda a parte uma melodia universal. A música grava em nós quando julgamos gravá-la.
Matemático, o som do silêncio conforta o pobre e apazigua o rico; comporta os justos e os injustos; a ave, a vespa, a flor de trigo; a morsa, o urso e a planta; a respiração sustida, os seios robustos de sensuais tágides de granito. Em tudo alguma coisa canta.
Regresso à doçura de um estio de sangue, açúcar, sexo e magia no ar - Peppers em loop no rádio. Faço uma serenata à beira-mar, roubo o primeiro beijo à beira-rio e ainda sinto, ao percutir dos tambores, o traseiro frio nos degraus do Adamastor e farejo emanações canábicas a entreolhar miradas lustrosas e melancólicas, desesperadas por aceitação, entregues aos bardos de Baco.
Regresso aos bons velhos tempos, esquecido de ter tido a cabeça na valeta, levantada por um sem-abrigo. Sirenes, mas nunca a silhueta de uma cara sardenta a encher-me o olhar. Talvez a canção do desgosto tenha encontrado o seu alvo - um fogo posto, um rei morto, um cupido alado com péssima pontaria.
Regresso àquele dia, àquele ano, atrás da porta, a Salvador da Baía, a um beijo de Chico e Caetano, pés cruzados com pés morenos a ver na TV programas gentios e plebeus. Nos olhos teus o meu olhar era de adeus.
Há incenso de escalada nos Santos à conquista da Costa do Castelo sob um céu vermelho-sangue de druidas celtas contemporâneos em noites brancas de trovadores em pelo na relva interdita de São Pedro de Alcântara. Em toda a parte alguma coisa canta - no outono de débeis violetas, no murmuroso assédio dos insetos. A efemeridade é probatória de sinfonias celestiais de Verão. O som é ontologia da memória e dança-nos de parte incógnita quando toca aquela canção.
Cueva de las Manos ("Caverna das Mãos"), província de Santa Cruz, Argentina (DAQUI)
Procura-se sequência de palavras mágicas em melodia que desarme ódios e discórdias. Procura-se cidade submersa, berço-chave de civilizações, e registo de diluviais e infinitas abluções. Um canto diáfano fecundou a poesia imperfeita, rudimentar e arcaica, rupestre, traduzindo o mundo, perguntando-te ao que vens e o que és diante da prudência silenciosa de deuses que só existem porque se pensam à sua imagem, egóticos e materialistas, mundanos. E é esse o seu maior e mais profundo enigma: a vista desarmada do Jardim onde nos esperam todas as mães e todos os pais, num Lugar onde a crença não tem lugar, pois só a Verdade Ali se conhece.
Se pintura não é a cor deixada ausente com harmoniosa intenção; Se música não é o silêncio dramático que alicerça e precede o êxtase; Se literatura não é a lacuna esfíngica que dá vazios a preencher de dúvida e emoção; Se escultura não é a parte esculpida, removida, que provoca a emersão da forma; Se o verbo omisso, compreensivo e transigente não é ação que transforma; Se arquitectura não é o pátio amplo e despojado que sustenta o próprio firmamento, Reneguem-se os conceitos, a estética, a arte, o amor, a ética E oblitere-se a existência, a criação, o pensamento. A omissão é presença. Em cada vazio há uma chance, uma crença. Na beleza do que falta nada é negado, tudo é essência.
Uma corrida de fundo.
Há 18 anos nenhum de nós imaginava que, um dia, estaríamos a celebrar o rito de
passagem do Caderno de Corda para a vida adulta, especialmente com tamanha
vivacidade e fulgor, à mesa, como inicialmente preconizado pelo Grão-Mestre
Gustavo Silva, patrono d'O Jantar. Na vida sucedem-se ritos e ciclos,
celebrações e reflexões sobre alegrias, conquistas e desafios, mas também sobre
fracassos, infortúnios e desventuras, as quais não há como enjeitar,
procurando-se seguir mais forte e sábio. No entanto, aqui, e por ocasião d’O
Jantar, temos refletido, vivido e cultivado sempre alegrias, e fazemos por que
perdurem.
O primeiro melhor amigo, a queda dos dentes de leite, o
primeiro dia de escola são marcos da infância, alguns dos quais partilhamos
entre nós em memórias ainda vívidas, porque pungentes e sentidas. Na
adolescência surge a ebulição hormonal, a rebeldia, a contestação aos valores
social e familiarmente estabelecidos, mas também o primeiro amor, o primeiro
beijo. Ainda assim, é, diz-se, a maioridade que representa a transição das
transições, com a entrada, por vezes forçada e prematura, na vida adulta.
Na idade adulta, ou idade da razão, são incrementadas, mais
sérias e mais definitivas as responsabilidades, assim como as consequências das
escolhas tomadas. Na maturidade, os sonhos tornam-se mais prementes e as opções
mais dificilmente reversíveis. A Liberdade de quem dispõe de autonomia não se
dissocia da responsabilidade pelo uso dessa mesma Liberdade. Tal consciência,
dotada de sabedoria, excede em muito o cumprimento de deveres e obrigações,
instigando os livres e autodeterminados a arpoar sonhos e a perseguir novas
aventuras e possibilidades de descoberta, em particular de si mesmos.
O autoconhecimento, que nos conduz a tomar um lugar próprio
no mundo – ou a sermos, nós próprios, um lugar -, beneficia do uso de saudável
disciplina, mas não necessariamente de disciplina formal, mecânica,
proficiente. Há, a montante, uma disciplina ontológica, se me permitem, que se
traduz em persistente resiliência e inabalável crença. O mantra: "Não
desistir." E assim se cumpriu, ao Anno XVIII, O Jantar; e assim Vos
escrevo de maturidade, não ousando dar lições de tal coisa a um cão de
companhia.
O Caderno de Corda e
o livro-eucalipto
Em boa verdade, a maturidade a que aludimos não será, na sua
génese e em teoria, relativa a uma pessoa, mas a um blogue que cumpriu 18 anos
e que, de há muito a esta parte, tem n'O Jantar anual de comemoração, que serve
de pretexto a muito mais do que apenas recordar escritos que nele se publicam,
o seu momento alto. Tal deve-se, nos últimos anos, à concentração de esforços
deste que humildemente Vos escreve na produção de uma obra literária que venha
a ser digna desse nome - um romance com laivos de distopia política como sempre
quis escrever e que, sendo uma empreitada quixotesca e de grande fôlego,
absorve as horas livres de criação, qual eucalipto, secando qualquer outra
veleidade criativa ou artística. Eis a razão (ou megalomania) primordial (e
ciclópica) por que o Caderno de Corda não tem publicado mais poesia, prosa ou
canções originais. Mas, se apontarmos ao Sol, talvez caiamos na Lua.
Novamente, a maturidade adverte-nos para que não se levantem
véus prematuramente, muito menos de obra inacabada. Ainda assim, em
perspectiva, pareceu-me apropriado utilizar uma impressão do referido trabalho
em curso (à data, cerca de 120 mil caracteres em 250 páginas A4, Times New
Roman, tamanho 12) para, através da consignação de folhas escolhidas por número
de página, munir os Confrades Cordianos de matéria a excisar para leitura de
trechos escolhidos e posterior criação de um vídeo comemorativo, como tem sido
apanágio do Caderno de Corda nas mais recentes edições d'O Jantar.
Simplificando, o vídeo resulta da escolha aleatória e da reorganização de trechos
extirpados de um epopeico romance distópico em moroso processo de composição,
mais uma vez com recurso a um intrincado mecanismo numerológico de cálculo por
página, a interpretação estética à luz da sequência de Fibonacci e a uma
avançada técnica de pot-pourri. Cada Consoror e cada Confrade escolheu
um número de página, um excerto e leu-o para a câmara.
Saiba-se que, quando Vos escrevi a quase totalidade desta
crónica, o vídeo ainda não estava sequer idealizado. Aliás, exceptuando o
presente parágrafo, tudo o resto foi escrito antes mesmo que todas as Consorores e todos os Confrades me remetessem os registos das suas leituras – aqueles de nós que não
chegaram a gravar na noite d’O Jantar. O último desses registos chegou apenas
há algumas semanas. A título de
curiosidade, escrevo-Vos todo este parágrafo, inserido a talho de foice após a conclusão
do vídeo, num apartamento em Marselha, junto ao Vieux Port, epicentro dos tumultos que
eclodiram por toda a França nos últimos dias, em resposta ao assassinato do
jovem Nahel, em Paris, às mãos da polícia. Ouvem-se as explosões e sente-se, por vezes, o cheiro a queimado e a gás pimenta sobreposto à lavanda marselhesa, seguindo-se um ligeiro ardor nos olhos. Fechamos as janelas. Os meliantes, muitos deles imberbes adolescentes, correm rua acima e gritam "Gucci, Gucci", mostrando os óculos e as malas a saque... Adiante, o vídeo é, como verão, composto em quatro actos, ao som de Richard
Wagner (prelúdio do primeiro acto da ópera “Lohengrin”), Dominic Muldowny (“The
Ministry of Truth” e “Winston's Diary, the Dream”, do álbum “Nineteen
Eighty-Four, The Music of Oceania”) e The Doors (“Riders on the Storm”, do
álbum “L.A. Woman”). A escolha de “Riders on the Storm” não é, no
entanto, minha, mas do Grão-Mestre César da Silveira, que, ao introduzir novos
elementos e uma outra abordagem, acabou por modelar e dar o tom para o trecho
final do vídeo. A quase totalidade das fotos é do Grão-Mestre Ricardo Pinto e
as ilustrações foram gentil e preciosamente cedidas pelo Irmão Cordiano e
Missionário da Arte e do Belo Nuno “Corado” Quaresma.
Quanto ao livro que, desejavelmente, concluirei no médio
prazo, posso dizer que se destina a leitores de todos os quadrantes, presentes
mas também - sei-o - futuros. Porque, como aqui se escrevia há um ano, «é certo
ser este o nosso tempo; o tempo para livres habitarmos a sua substância». E
nunca é tarde demais. Agora e sempre.
Anno XVIII - O Jantar
Portanto, alimentado de fraternidade, memória, sonho, futuro
e frango assado, O Jantar reuniu 25 à mesa no dia 25 de Março, casando números,
tal como, curiosamente, há um ano fomos 23 a 23 de Abril. Chegámos, no entanto,
a ser 30 Confrades no total, contando com a habitual e preambular presença do
clã Franchi-Costa (Leonor, Matilde, Rita e Rui Pedro) e, desta feita, também do
“padrinho” Joaquim Barbosa (Quim), que não ficou para jantar. Registe-se que,
ao décimo oitavo ano, este foi o terceiro jantar realizado em data discrepante
da data tradicional de 26 de Março, véspera do aniversário propriamente dito
(27 de Março), e o primeiro a antecipar-se à data.
Também antecipadamente, assim estava o Grão-Mestre João
Trigo à porta dianteira, onde esperou com estóica brandura e fraternal
compreensão. Uma buzinadela e um aceno à passagem, de carro; o estacionamento
apressado no parque e, passo rápido, os primeiros abraços, nas traseiras do
restaurante, a Hugo Dantas, André Nobre e André Paiva, que também já ali
aguardavam. Atravessámos A Valenciana por dentro e juntámo-nos ao Trigo,
heroicamente só na dianteira, para aquele abraço apertado, grato e reparador,
penitente pela delonga. Dali fomos para a Sala Fronteira, que a espaços
revelou-se demasiado quente, ruidosa e esconsa para o grupo, mas chegou à
conta, satisfatoriamente.
Mesa posta em “U” e acepipes na távola, foram entrando os
comensais. Rapidamente se formaram, grosso
modo, duas alas: a cruz-quebradense/dafundense e a salesiana, ambas
pontuadas aqui e ali por Consorores e Confrades Cordianos de outras paragens, e
alguns até de outras e de ambas, como é o curioso caso de Nuno “Corado”
Quaresma, Missionário da Arte e do Belo. “Sintonia sinérgica”, “convergência holística”,
“identificação simbiótica”, “assimilação integrativa” e “coerência
paradigmática” são todas expressões que, referindo-se a uma harmonia profunda,
colaborativa e produtiva, fértil, descrevem o modo como o já nosso genial
“Corado” corporiza um estado etéreo que flui alegre e fraternamente pelos
jantares cordianos. «Obrigado Meu Irmão pelo carinho e por estes momentos
mágicos de ligação com esta Rapaziada vibrante e cheia de boa energia. Que
possamos brindar muitas vezes nestes e noutros momentos de Criatividade, Amor e
Reencontro”, escreveu o Corado após O Jantar via chat.
Tivemos, mais uma vez, estreias sublimes que merecem
palavras especiais, como as das Infantas Rafaela Tomás, Daniela Tomás e Nicole
Araújo, que iluminaram a sala e os corações; do Confrade André Nobre,
primaveril e imune ao frescor da aragem, desejoso por dias mais longos e
luminosos, eternamente fascinado pela fulgência das ideias, e, por fim, da
maravilhosa Consoror Ana Rangel, cuja alegria e o brilho no olhar alumiam
candeias em olhos outros e tangem emoções francas. São lágrimas, senhor! De
alegria, concórdia e afetos partilhados, entretecidos. Registe-se, como é
práxis, que os estreantes selam com a sua inestimável presença a incorporação
definitiva na Confraria Cordiana. Repita-se: uma vez da Confraria, sempre da
Confraria.
Registamos também, como sói dizer-se nesta ocasião, notadas
ausências (eles sabem quem são) e o fenómeno dos globetrotters que, espalhados pelo mundo nesta data, não puderam
comparecer. Estamos gratos, no entanto, pelos que, against all odds, conseguiram estar e ser, um dos quais vindo de
uma regata no Tejo e outro do Porto, para dar os exemplos cabais dos Irmãos
Cordianos Quim e Piri, respectivamente. E já que estamos a mencionar
ex-Doroteias (Externato do Parque) que se conhecem desde os três anos, note-se
o desencontro, por pouco, do Quim e do Frederico Cruzeiro Costa (Fred), mas
também do Sérgio Miguel Ribeiro (Miguel), que esteve a uma unha de se estrear,
mas adoeceu e não pôde juntar-se ao quarteto do Externato do Parque, transitado
em bloco para as Oficinas de São José no ciclo preparatório.
Como disse o Irmão Fred à Ana no correr d’O Jantar, somos
corredores de fundo, e daí vem a expressão que enceta este texto. O meu querido
Fred teve de sair um pouco mais cedo para cumprir compromissos. À despedida,
nas traseiras do restaurante, onde eu e o Nobre fumávamos, tirou do bolso das
calças um olho turco em vidro que trouxe para oferecer a este Vosso escriba,
dizendo que me protegeria. Já falámos depois. No entanto, não lhe disse ainda
que a Rosarinho adorou o olho turco e adoptou-o mal o viu, mas que, sem incúria
dela, o olho se partiu alguns dias depois. Caiu no chão de mármore vitrificado,
deslizando do dorso da chave do aparador de entrada onde ela cuidadosamente o
pendurara. Chorou serenamente, interiorizando a perda e atribuindo-lhe
significado. Recolhemos os estilhaços e depositámo-los no lixo. Ficou
sensibilizada. E eu. Mas vim a saber mais tarde que, na cultura turca, se o
olho se partir terá cumprido a função de proteger os seus portadores, sendo que
o descarte respeitoso e correcto dos fragmentos prolonga a boa sorte e a
protecção.
Protegidos estaríamos também na presença do Grão-Mestre e
Grande Inspector Cuteleiro João Carlos Graça, que esteve num pacato
frente-a-frente com um seu velho amigo, o Grão-Mestre Hugo Dantas, acérrimo
arguidor de traquinagens, em particular daquelas executadas sobre a sua pessoa
enquanto dormita (recorde-se a despedida de solteiro do Pinto). Pois desta
feita o João guardou a despesa das travessuras da noite para o que Vos escreve:
já A Valenciana estava de portas fechadas e nós todos na rua quando descobri
ter no capuz alguma pequena cutelaria e o naipe completo de manteigas, patés e
queijos-creme que havia no restaurante, alguns encetados, já meio comidos. Mas
foram os garfos nos bolsos traseiros das calças que, durante o jantar, ao
sentar-me, agudamente me alertaram e indiciaram o mais que provável autor de
tão bicuda e, simultaneamente, substanciosa tropelia. Não havia dúvidas: também
a zombaria do couvert tinha a
inconfundível assinatura do Grande Inspector Cuteleiro.
Com o João esteve em peso a fraternidade da geração Y da
Loja Cruz Quebrada: João Carlos, André Paiva, André Nobre e Bruno Sardo. Para
representar integralmente a estreita irmandade faltaram apenas o Grão-Mestre
Bruno Tomás e o ainda candidato a confrade Miguel Lopes (Miko). Ambos
confirmaram a presença, mas, crê-se que por motivos relacionados com distúrbios
gastrointestinais, não puderam comparecer, lamentavelmente indispostos.
Sentimos as suas ausências. Não deixamos, nesta linha, de registar duplas épicas que se reintegram n’O Jantar como se o tempo por elas não passasse:
João Trigo e Dino; Pedro “Piri” Farinha e Miguel Guerreiro Pereira; Gustavo “KJ”
Silva e César “Kaiser” da Silveira; Ricardo Tomás e Ricardo Pinto e múltiplas
outras duplas de sonho e eternidade conjugáveis e intermutáveis, como Corado e
Jacinto, sendo que apenas o Corado compareceu este ano, apesar da ausência do
seu Irmão. Fazendo uso de ideias recorrentes nesta ocasião, e constatando que
este foi O Jantar mais concorrido de sempre, verificamos mais uma vez que a
Amizade que nos une é exponencial e contagiante, e as nossas vidas seriam menos
do que outras sem do outro a nossa parte.
Menos do que outra sem a Grã-Dama Rute Ferreira e, claro, o
Grão-Mestre e Venerável Cavaleiro Cordal Ricardo Tomás, que nos deu o
privilégio de conduzi-la até nós e que será, quiçá, fonte de inspiração
retroalimentada da sua própria musa. Foram dois os quadros de autor,
predominantemente azuis, mas tão terrenos quanto celestes, magníficos, que a
Rute trouxe propositadamente para ofertar à grata família do Vosso fiel
escrevente.
Menos do que outra sem o Grão-Mestre Cordiano, Visconde do
Reino de Maconge, Magnífico Provedor do Tesouro e Supremo Jurisconsulto César
da Silveira, que veio directo de dilecta almoçarada de convivas do Reino de
Maconge – um dia literalmente em cheio.
Menos do que outra sem o Grão-Mestre e Perene Patrono
Cordiano Gustavo Silva, que chegou mais tarde, cansado, de olhos a meia-haste,
fazendo lembrar os olhos de madrugada a jogar Premier Manager na Calçada de
Santo António, mas com a resiliência de sempre, apesar das cansativas tiradas
Lisboa-Porto. Saiu mais cedo, mas esteve bem presente.
Menos do que outra sem o Grão-Mestre, Guardião do Tombo e
Venerável Cavaleiro Prismático Ricardo Pinto, cuja óptica regista proverbial e
devotamente O Jantar, e cujo coração alumia e colora a noite escura. As fotos
são quase sempre dele, mas o Caderno de Corda e O Jantar são dele como meus,
nossos.
Menos do que outra, por fim, sem o Grão-Mestre e Venerável
Cavaleiro Congénito Ricardo Girão, à cabeceira oposta deste que Vos escreve,
ambos comunicantes pelo simples olhar e por feixes etéreos de sinusoidais
psiónicas no fino ar. Girão, o último dos moicanos a resistir à noite, depois
de debandado o derradeiro grupo de obstinados Confrades Cordianos, entre os
quais se incluíam Piri, Pereira, Dantas e Corado. No final dos finais, após
várias voltas e pit stops em Benfica,
a dupla Hugo-Girão encontrou finalmente uma roulotte
em Sete Rios… Uma garrafa de água! O nosso reino por uma garrafa de água! E uma
Coca-Cola. E uma imperial.
Prosaica, a imparável tendência inflacionária do preço d’O
Jantar, a estória da negociação do banquete, que afinal se revelava mais
vantajoso do que o consumo à carta, como acabou por acontecer, levando a turma
dos digestivos a chegar-se à frente, e a civilizada discussão sobre as contas
com a gerência. Concluiu-se que, afinal, teria sido melhor ficarmos pelo preço
fixo do banquete. Os amores da minha vida irão ao Jantar quando a Rosarinho se
sentar à mesa e comer tudo sozinha, autonomamente, com ambos os talheres…
Registe-se finalmente que o Vosso fiel escriba chegou a casa perto das sete da
manhã, silencioso mas com mundos ululantes no pensamento.
Este blogue é e
continuará a ser o meu fiel depositório criativo.
Em 2024, no mesmo
sítio, previsivelmente em Março.
Legenda aleatória: Hugo Dantas, Bruno Sardo, Hugo Simões,
Ricardo Pinto, Sofia Damião, Beatriz Damião Pinto, Ricardo Girão, César da
Silveira, Nuno “Corado” Quaresma, Miguel Pereira, Pedro Farinha, Nuno “Dino”
Rodrigues, Ana Rangel, João Trigo, Sara Matos, João Graça e André Paiva. Os
comensais Gustavo Silva, Frederico Costa, Rafaela Tomás, Daniela Tomás, Nicole
Araújo, Ricardo Tomás, Rute Ferreira e André Nobre já se haviam ausentado à
hora da foto de grupo ou não se encontravam naquele momento na sala. O Clã
Franchi-Costa veio, como é já tradição, para nos dar o prazer da sua companhia
antes e ao início d'O Jantar, tal como, desta vez, o Joaquim Barbosa. Um
especial Abraço aos Confrades e às Consorores que não puderam marcar presença,
mas que estiveram no nosso pensamento. E uma foto nocturna. de bónus: