Não foi bem isto, companheiro, não foi bem isto que Abril prometeu. Havia cravos; hoje há ecrãs, selfies sem Marcelo, silêncio nos cafés. A revolução saiu diagonal do telejornal, feita de molduras e retrovisores. Enquanto isso, os merceeiros aprenderam a ser CEOs.
II
Orwell acena em vão da cloud e Kafka espera em linha no call center sem previsão de atendimento. O processo é automático e a culpa é tua, cidadão 405-B. A felicidade tem código de barras. Automatizaram a empatia e empatizaram os automatismos. Seja como for, mentiram-te sempre. Chamaram-te livre, mas só te deram turnos.
III
Não há PIDE, há algoritmo. Não há censura, há viralidade, um eco tão ruidoso que oblitera a voz do pensamento. O futuro foi vendido à prestação, com juros de desilusão a longo prazo. A terceira vaga rebentou num tsunami de notificações, uma greve geral de sentido em que nos adiamos.
IV
E nós? — Nós cantámos, coreografámo-nos à beira do abismo. Nós escrevemos, demos murros no ar e beijos na lama. Nós andámos à pancada com a esperança. Quase perdemos. Perdemos? E ainda assim — ainda assim — trazemos Abril nos bolsos, amarrotado, como quem esconde um poema perigoso num país habituado a não ler.
V
Os filhos da madrugada foram postos a dormir. Mas um dia acordam — e nesse dia, meu Irmão, não será com tanques de guerra, mas com versos, com mãos sujas de tinta, de giz e de terra, com vozes afinadas como dentes afiados que faremos a Revolução por fim — inteira, com todas as letras.
VI
Basta de remendos, de pedir licença para respirar
e comer duas refeições mediterrânicas por dia.
Paremos tudo, sine die —
as fábricas, os códigos, os turnos, os ecrãs.
Fechemos os bancos,
os supermercados,
a boca dos donos do mundo.
Não queremos esmola,
queremos o justo:
tudo repartido.
A igualdade não se negoceia.
E se for preciso arder tudo,
que arda.
Mas que nasça, por fim,
um país vertical impossível
de paisagens horizontais,
nosso.
Jeremias Cabrita da Silva in "Depois da Última Revolução Vem a Primeira" (Edições Utopia, 2034)
🚫 CENSURA DIGITAL — ARQUIVO DO BLOGUE CADERNO DE CORDA
Desde 2005, o Caderno de Corda publicou mais de 1500 textos - alguns literários e ensaísticos, canções, deambulações mais ou menos imberbes, textos jornalísticos, baboseiras atrevidas, memórias... Durante largos anos, esta casa foi regularmente indexada nos motores de busca, citada por sites e blogues, partilhada, lida, referenciada. Era visível. Existia. As suas palavras existiam.
Paulatinamente, e em especial ao longo da última década, algo mudou drasticamente. A presença do blogue desapareceu dos resultados do Google. Foi desindexado. Silenciado. Tornado invisível.
As ferramentas do próprio Google deixaram de reconhecer o conteúdo. Os sitemaps deixaram de ser lidos. Os backlinks desapareceram. As tentativas menos avisadas de reintegração têm sido bloqueadas. As pesquisas mostram resultados residuais e inócuos — como se o blogue nunca tivesse existido. Após levantamento crítico e técnico minucioso, acreditamos estar perante um caso de apagamento sistemático e intencional.
Este post é um gesto técnico, mas também político. É um manifesto profundamente indignado, ainda que sintético. Uma recusa em aceitar que duas décadas de escrita e pensamento possam ser varridas do espaço público digital. Mesmo que apenas por desactualização tecnológica do template, por ausência de meta-informação moderna, por inatividade percebida, por falta de HTTPS ou “sinais errados” transmitidos ao algoritmo.
📌 O QUE ESTÁ A VER AQUI?
Para tentar forçar a reindexação, reunimos abaixo todos os arquivos mensais do blogue, de março de 2005 a abril de 2025 — um a um, mês a mês. São, à data de publicação, 153 meses publicados, listados com os seus links directos. A cada um será solicitado manualmente o pedido de indexação. Mas o esforço não é apenas técnico. É simbólico. É resistência.
📣 PORQUE ESTE POST É UM ACTO PÚBLICO NECESSÁRIO
É temporário, técnico, mas é também um acto de resistência e memória. Cada clique nestes arquivos é uma recusa ao esquecimento e à tirania dos tempos modernos. Uma forma de contrariar a censura invisível que apaga conteúdo legítimo, jornalístico, literário, pacífico, crítico.
Não somos de certezas absolutas, mas os indícios acumulados apontam para um apagamento digital sistemático e politicamente orientado. O blogue Caderno de Corda abordou em tempos muitos temas sensíveis. Tocou onde não devia tocar. Fez perguntas incómodas. Mencionou nomes. Reivindicou memória. Foi sendo silenciado.
Não é um pedido. É uma ação consciente. Este post foi criado para contrariar o apagamento de quase duas décadas de escrita — especialmente de textos poéticos, literários, jornalísticos, ensaísticos, críticos, de memória e intervenção.
Abaixo encontram-se os links diretos para os 153 arquivos mensais do blogue, de Março de 2005 a Abril de 2025. O que se pode fazer com eles?
👉 Aceder;
👉 Explorar;
👉 Clicar aqui e ali;
👉 Reenviar ou partilhar um post especial, uma memória, um poema, uma canção... (os posts publicados no Caderno de Corda são os textos originais, publicados na hora, sem a devida edição e reescrição dos poemas publicados em livro);
👉 Forçar o Google a admitir que o Caderno de Corda existe, que está vivo, que merece ser visível.
Cada clique sinaliza que o conteúdo é procurado, lido, legítimo. Este é um modo simples de contrariar o apagamento digital — forma de censura implacável e sofisticada como nunca. As estimadas leitoras e os estimados leitores não têm de fazer nada. Mas podem escolher resistir connosco.
AVISO: Data d'O Jantar (Anno XX) remarcada para 24 de Maio de 2025
AVISO: A data originalmente prevista (25 de Abril) foi remarcada para 24 de Maio por motivo de encerramento do restaurante no Dia da Liberdade.
O Jantar realizar-se-á no sítio do costume. Haverá muitas surpresas e novidades, neste que se espera ser o mais retumbante repasto até à data. Como é sabido, o aniversário comemora-se de 26 para 27 de Março (data do aniversário do blogue), mas vem sendo já hábito concretizá-lo em data posterior, de modo a favorecer a comparência do maior número de confrades cordianos. A participação é livre e especialmente dedicada aos indefectíveis Irmãos cordianos e estimados leitores. Como nos últimos três anos, O Jantar será novamente iniciado mais cedo do que é costume, por volta das 18h30 horas. Tragam um Amigo também.
20 anos de Caderno de Corda e a convocatória d'O Jantar!
Celebramos hoje os 20 anos de existência do Caderno de Corda com a divulgação do link para as fotos d'O Jantar do ano transacto (AQUI) e a convocatória para o repasto deste ano, que se realiza a 25 de Abril de 2025, no sítio do costume, em dia absoluto de festa. O rendez-vous está previsto acontecer no alto do Parque Eduardo VII, entre as imponentes colunas imperiais dos anos 50, da autoria de Keil do Amaral, junto à afamada obra do escultor João Cutileiro. Como é sabido, o aniversário comemora-se hoje (27 de Março), mas vem sendo já hábito concretizá-lo em data posterior, de modo a favorecer a comparência do maior número de confrades cordianos. Tragam um Amigo também.
O Caderno de Corda cumpriu 19 anos em 2024 e cumprimo-los também nós, uma vez mais, à mesa, num ritual de fraternidade e memória. O Jantar aconteceu a 12 de Abril de 2024, como sempre no restaurante A Valenciana, pela quarta vez em data posterior à data tradicional (de 26 para 27 de Março), evitando o período de férias da Páscoa e garantindo a adesão do maior número de Confrades Cordianos. A escolha revelou-se acertada, como verificado pelo número recorde de presenças: 33 no total — 32 à mesa e um visitante preambular, Rui Martins (Fininho), que apareceu no rendez-vous e seguiu caminho para assistir a um concerto, mas não sem antes deixar comigo um presente de inestimável simbolismo: o disco “Gigaton”, dos Pearl Jam, lançado precisamente a 27 de março de 2020, data do aniversário do Caderno de Corda – disco que o Rui guardara na data de lançamento para, com efeitos pandémicos pelo meio, me dar antes tarde que nunca. Regista-se a importante oferta e o quase baptismo do Rui na liturgia cordiana. Mas as oferendas ao Vosso fiel escriba não se quedaram por aqui. O debutante Hugo Passos (Ken) marcou também a sua estreia com o mimo de uma garrafa de vinho tinto à chegada - lembrança significativa que merece uma nota de especial e sentido agradecimento.
Este ano há subtextos por (quase) desvelar. No passado recente, justificou-se o abrandamento das publicações no blogue com a empreitada de um romance distópico, um projeto de grande fôlego e escala que monopolizou milhares de horas livres. Mas, como os tempos, os ventos mudam e, como as palavras, adquirem novos significados, seguem novos fluxos e novos trilhos semióticos. O romance repousa com terra à vista e a atenção volta-se para a consubstanciação de um foco renovado que em 2025 se revelará. O Caderno de Corda está em marcha e o que aí vem não se cinge à celebração de um número redondo. Há algo mais. Algo que cresce e transborda…
Como sabemos e vimos sempre aprendendo, também a Amizade é transbordante, exponencial e contagiosa — prova disso são @s sublimes estreantes definitivamente incorporad@s na Confraria Cordiana. Nove debutantes tiveram assento à mesa em 2024 e, como é nosso apanágio, uma vez da Confraria, sempre da Confraria. Entre @s recém-chegad@s, destacam-se quatro infantas e infantes cordian@s, responsáveis pelo significativo e desejável decréscimo da média etária do grupo, garantindo que o futuro da Confraria se inscreve na nova geração: Isaac Graça, Beatriz Paiva, David Pina e Rafael Nunes, dignos titulares das insígnias de Infantes da Cordialidade.
Aos restantes (e insignes) estreantes — Sandra Rodríguez, Pedro Sequeira, José Manuel Couto, Hugo Passos e Miguel Barreiros Lopes (Miko) —, a certeza de que os regressos são esperados e os encontros são perenes, prolongando-se noutras mesas e noutras horas, mas sobretudo na memória do coração. Uma nota para a participação espontânea de José Manuel Couto, que, tendo ligações à Cruz Quebrada, tomou conhecimento do Caderno de Corda e d’O Jantar no ciberespaço e quis, de livre e independente vontade, partilhar connosco a companhia, histórias e a mesa. Mais uma honraria para o Caderno de Corda, que assim cumpre um dos seus primordiais desígnios: estabelecer pontes tangíveis para lá do algoritmo e do éter.
O peso da Loja Cruz Quebrada fez-se sentir sobremaneira, destacando-se a presença fortíssima da geração Y, com João Carlos, André Paiva, Bruno Tomás, Bruno Sardo e os recém-chegados Ken e Miko, faltando apenas o André Nobre para, pela primeira vez, reunir em bloco a Fraternitas CQY. Apesar da menor afluência da Loja Salesiana nesta edição d’O Jantar, a força dos cruz-quebradenses compensou e excedeu expectativas. Muitos dos salesianos, como globetrotters que são, espalharam-se pelo País e pelo mundo nesta data — ausências que foram notadas e sentidas.
Este foi também um Jantar marcado pela extraordinária ausência do Grão-Mestre Cordiano, Visconde do Reino de Maconge, Magnífico Provedor do Tesouro e Supremo Jurisconsulto César da Silveira, que tradicionalmente assume o exercício da verificação, consolidação e regularização das obrigações pecuniárias inerentes ao encerramento financeiro d’O Jantar, compreendendo o minucioso apuramento das despesas globais, a equitativa distribuição das responsabilidades contributivas dos convivas, a subsequente arrecadação dos montantes devidos e a aferição final da conformidade do saldo de contas, garantindo a plena solvência e a exatidão dos lançamentos, preservando ainda a dignidade e a integridade fiscal do conclave. Mesmo não estando, o Kaiser, habitual titular absoluto, merecia este parágrafo…
Mas a Confraria é caudalosa como o Tejo e, à bolina, o Grão-Mestre e Grande Inspector Cuteleiro João Carlos Graça tomou o leme de roda da tesouraria com inexcedível eficiência e visão organizativa, destacando ao serviço os Infantes na recolha de nomes para conferência da fatura final. A turma dos digestivos, como de costume, chegou-se à frente para os ajustes necessários e ficaram mais uma vez confirmadas as vantagens do banquete face ao consumo à carta – o banquete é mais farto, mais simples, mais certo e acaba mesmo por ficar mais em conta. Tudo correu bem assim.
Quanto a esta crónica, escrita e publicada tardiamente, deixada a marinar ao limite do aceitável, peca pela delonga mas também pela inevitável fragmentação da memória, no entanto preservada pelo registo fotográfico. Foi, aliás, devido ao grande investimento de tempo no trabalho e nos projectos em curso, e porque, fazendo jus aos anos recentes, a crónica d’O Jantar vem sendo acompanhada de um vídeo comemorativo, que a publicação se atrasou tanto. Na iminência do vigésimo aniversário do blogue, urgia publicar, quanto mais não fosse a crónica e as fotos, mas o advento das ferramentas de modelação de imagens com base em inteligência artificial espicaçou novas ideias.
Assim se produziu, ao som de “Silêncio (Estamos no Ar)”, o vídeo d'O Jantar comemorativo do 19.º aniversário do Caderno de Corda, que deve a sua existência, em grande medida, à presença devotada do Grão-Mestre, Guardião do Tombo e Venerável Cavaleiro Prismático Ricardo Pinto, cuja objectiva regista proverbialmente o evento. Todas as imagens resultam de fotos não editadas, algumas das quais foram posteriormente trabalhadas na plataforma Runway ML, aplicada à criação de vídeos com ferramentas baseadas em IA generativa. A edição foi realizada e concluída no software Movie Studio 15. De referir que as fotos serão publicadas brevemente nas páginas Facebook de Davi Reis (poesia e música) e do Caderno de Corda.
Ao décimo nono ano, lançando-se sobre fundações sólidas na antecâmara dos vinte anos, O Jantar reafirma-se como eixo de alinhamento que assegura um lugar e um tempo próprios, sempre inclusivos e exclusivos, abertos e livres para ser, estar, partilhar, comungar, recordar e reinventar. A cada ano a mesa cresce e a amizade expande-se por gerações numa espiral de continuidade. E porque a Amizade não desiste, o Caderno de Corda não verga e há muita estrada para andar, ficam suspensas no fino ar novidades para 2025, ano em que o Caderno de Corda celebra duas décadas de existência e pretende festejar como nunca. E há mais, algo que cresce no horizonte e se insinua nas entrelinhas. Algo que em breve terá nome, som, visão, alma e forma. O que será, a seu tempo.
Até lá, sigamos caminho.
No mesmo sítio, à mesma hora, previsivelmente em Abril.
Legenda aleatória: Hugo Dantas, Bruno Sardo, Hugo Simões, Pedro Sequeira, Bruno Tomás, João Trigo, Sara Matos, Carlota Amaral, João Graça, Isaac Graça, André Paiva, Beatriz Paiva, José Moreno, Ricardo Pinto, Sofia Damião, Beatriz Damião Pinto, Carolina Pinto, Rita Franchi, Rui Pedro Costa, Leonor Costa, Matilde Costa, Carlos Nunes, Rafael Nunes, José Manuel Couto, Hugo Passos (Ken), Miguel Barreiros Lopes (Miko) e Rui Jacinto. Os comensais Rui Pina, Sandra Rodríguez, David Pina, Ricardo Tomás e Rute Ferreira já se haviam ausentado à hora da foto de grupo. O Clã Franchi-Costa veio, como é já tradição, para nos dar o prazer da sua companhia. Um especial Abraço às Consorores e aos Confrades que não puderam marcar presença, mas que estiveram no nosso pensamento. E a foto emoldurada, de bónus:
Jane (7 de Dezembro de 2008 - 11 de Novembro de 2024)
Foi ASSIM que a Jane chegou. O nome, pode ler-se no primeiro comentário, foi sugerido pelo Irmão João Trigo. Vivemos quase, quase 16 anos juntos. Não fomos tão felizes como eu gostaria, especialmente ela, nestes últimos três anos de decadência física acelerada e de liberdade reduzida. Culpa inteiramente minha. A Jane partiu esta noite. Esteve imóvel, prostrada, incapaz de se alimentar autonomamente, durante uma semana. Mas libertou-se em paz, serena e sem queixas, no seu tempo.
A “Canção da Rosarinho”, como foi oficiosamente titulada até à conclusão da letra, é a mais recente das canções cordianas, concluída na madrugada de 9 de Setembro de 2024, dia do sétimo aniversário da minha filha, Maria do Rosário de Almeida Pereira de Brito Simões, a quem é inteiramente dedicada. Foi-lhe oferecida para primeira escuta integral com fones nessa manhã, à mesa da cozinha, antes do pequeno-almoço e das primeiras prendas do dia. Foi por ela e para ela que “Não Esqueças de Lembrar” começou a formar-se, resultante de uma composição original de guitarra cujo processo de descoberta se iniciara ainda antes do nascimento.
A ideia inicial, bastante anterior ao processo de composição, fora inspirada preambularmente pela acústica melancólica dos Death Cab for Cutie, ao largo da qual derivei longamente quando ainda residia em Lisboa. Queria fazer uma canção com travo adocicado indie folk, mas sabia ter de encontrar outros elementos, harmonias e frases musicais que me retirassem do universo melopeico e do efeito hipnotizante que aquela sonoridade surtira sobre mim instantaneamente. Se quisesse fazer algo verdadeiramente único, tinha de encontrar o meu próprio caminho, e fui deixando o tempo fazê-lo, indicando-o para mim.
Assim foi quando compus o corpus que acompanha as estrofes de verso de “Não Esqueças de Lembrar” — uma estrutura harmónica organizada em torno de uma linha melódica descendente com início tonal em Dó maior, culminando em resolução cíclica, levando-nos pela mão, de regresso ao ponto de partida. Os trechos encerram-se com a sensação renovada de resolução e continuidade, até que, por fim, tomam outro rumo, partindo a coda de um Dó maior com sétima (C7M) sussurrado por Bob Dylan, o próprio. Abordaremos esta questão adiante.
A Rosarinho teria menos de um ano quando gravámos os balbucios que se ouvem na introdução da canção. Usei então os microfones estéreo do Boss BR-800 no escritório de casa em Santarém, sem quaisquer cuidados, com janelas abertas, o chilreio de pássaros e o ladrar da Jane lá fora, aliás audível na gravação. Terá sido também por essa altura que foi gravada a primeira guia de guitarra e uma melodia pouco depurada de voz. Já tinha a ideia essencial e algumas das palavras que vieram a compor a letra, mas era tudo ainda vago e pueril. Apesar de rudimentar, a guia era estruturalmente correcta e fiel à premissa estabelecida, e até a melodia de voz se tornou muito útil, ainda que de modo fragmentário, para a definição do que veio a ser a versão final — um proveitoso apontamento encapsulado de mim para comigo, para também eu não esquecer de lembrar, quase sete anos depois.
Muita água passou debaixo da ponte e muitos sóis se puseram até que, porque queria concluir a “Canção da Rosarinho” em tempo útil para nós e para projectos que se avizinham, e aproveitando uma semana de férias caseiras em Julho de 2024, resgatei o gravador BR-800 onde se encontrava registado o esboço da canção e revisitei-a com pragmatismo e propósito. A letra ficou fechada ao segundo dia de férias, a melodia também e logo iniciei a gravação da tríade de guitarras — a viola Artis de cordas de nylon à direita, a electro-acústica Ibañez EWC-30 de cordas de aço à esquerda e a acústica de 12 cordas Fender Tim Armstrong Hellcat ao centro.
A gravação decorreu no loft da minha casa em Almeirim, sendo que a Rosarinho assistiu, enquanto desenhava silenciosamente, a parte significativa das gravações de cordas. Tanto as três guitarras como as cinco pistas de voz foram gravadas com o microfone de condensador largo Golden Age Project FC3. Considerando as minhas limitações vocais, optei por gravar cinco pistas de voz, com uma voz média ao centro, ladeada proximamente por duas vozes graves, formando uma coluna vocal ao centro, e, nas alas, duas vozes agudas, em falsete, numa oitava que me obrigou a sussurrar encostado ao pop filter, imaginando-me a cantar suavemente ao ouvido da Rosarinho.
Foram tidos cuidados com os ruídos, mas insuficientes. Por exemplo, foram deixados passar ruídos de pingos do aparelho de ar condicionado por volta de 1’52”, que felizmente se confundem com o áudio de um melro-preto. Porque não usei, mais uma vez, software de edição para modelar ou editar as pistas instrumentais e de voz, tenho de considerar que tais falhas atribuem carácter à canção, não desdenhando dos benefícios da tecnologia. Em boa verdade, utilizei o Audacity, mas para compor as vozes da bebé Rosarinho que se ouvem na introdução e, a meio, o canto do melro, retirado de um registo do canal de YouTube “hebrideanwild”, declaradamente inspirado por “Blackbird”, dos The Beatles, que também usaram o áudio de melros na sua canção.
A coda, cuja dinâmica se altera num suave crescendo, pedia algo percussivo como pandeireta, shaker ou ambos, mas, após algumas experiências simples com microfone aberto, não quis introduzir mais texturas rítmicas e elementos de captação natural, acrescentando camadas desnecessárias de som ambiente e correndo o risco de “sujar” um ambiente sonoro razoavelmente “limpo”. Por uma questão prática, optei apenas pelo shaker, que surge à esquerda em fade in, para se passear em torno do ouvinte e terminar ao centro com duas semínimas nos terceiro e quarto tempos do último compasso. Podia ter adicionado camadas de complexidade aos arranjos, à composição, à letra e à própria gravação, mas quis fazê-la simples e directa.
Recensão autocrítica:
Oferecida, portanto, a 9 de setembro de 2024, dia do sétimo aniversário da minha Rosarinho, esta era uma canção especial, que considerei indispensável para fechar obra sonhada, de que em breve haverá notícias. A gestação de cerca de sete anos traduz o tempo necessário para fazer jus à observação da famigerada grande virtude da paciência, de que tantas vezes falo à Rosarinho, e de que tantas vezes me falara a sua bisavó Rosário. Retrocedendo então ao ponto de partida, terão sido os Death Cab for Cutie que provocaram a intenção exordial de fazer uma canção, sem saber ainda para que fim, com que fito. Quando a ouvi pela primeira vez, quis tocá-la de imediato, sabendo instintivamente que algo floresceria da descoberta. A ambiência já indiciava uma potencial canção de embalar melancólica mas doce, como veio a verificar-se, mas fiquei viciosamente cativo na melodia e nos acordes, e tive de procurar caminhos alternativos e complementares. A certo ponto do processo exploratório, compus o tal corpus que acompanha as estrofes de verso.
Só mais tarde, era a Rosarinho bebé, compus a bridge que se ouve do primeiro para o segundo terço da canção e que funciona como um interlúdio simbólico da presença dos The Beatles nos altifalantes e nos espíritos cá de casa. Do ponto de vista compositivo, é também uma pequena homenagem à banda de Liverpool — um trecho que deriva de flexões e inflexões, também elas descendentes, de “Blackbird”. Daí, da letra e da lógica da canção, também acontece a oportuna inclusão do canto de um melro-preto, à semelhança do que os The Beatles fizeram na sua canção. Faço ainda questão de mencionar que, na composição vocal, voltei a ter os Fab Four como referência, inspirando-me em aspectos melódicos e líricos de “For No One” (“Amanhã de manhã…“), “A Day in the Life” (“Nos teus olhos brilha o mar…”) e ainda, muito remotamente, “Hey Jude”. O final é segredado pelos Death Cab for Cutie e por Bob Dylan, a quem pedi emprestados acordes de “Don’t Think Twice, It’s All Right”, a começar pelo tal Dó maior com sétima (C7M).
A letra foi escrita a pensar numa menina de seis anos, quase sete. Simples, centra-se inteiramente em ideias e conceitos comungados por pai e filha, em memórias comuns e em senhas e contrassenhas. São disso exemplo, desde logo, os dois primeiros versos, adaptados do poema “Setentrional”, de Cesário Verde – versos que constituem um dos nossos códigos. Se pergunto «como é o nosso amor?», recebo a resposta «grande, grande como um mar sem praias». Não querendo fazer apreciações, dissecações ou dissertações sobre a letra, que é íntima e autoexplicativa, não posso deixar de referir que esta é uma canção para ser escutada à la longue, como a letra sugere, também pelos vindouros.
Ao tema óbvio do amor paterno e incondicional, soma-se uma abordagem poética que mistura a simplicidade e a profundidade de uma canção de embalar, em que os elementos dos sonhos, da memória e da continuidade se entrelaçam no desejo de perpetuar o amor e a ligação para lá do aquiagora, como se uma canção pudesse ser cápsula de amor preservado, pronta para ser reaberta adiante. A estética simples e acústica faz de “Não Esqueças de Lembrar” uma peça direta, mas emocionalmente esmerada, doce e melancólica, que abraça e embala na ternura de uma declaração de amor intemporal, sublinhando a importância da memória como ato de carinho e permanência, bem como a transmissão de valores e afetos que sobrevivam ao teste do tempo para serem expressos e vividos ativamente, nomeadamente através da arte e da imaginação.
“Não Esqueças de Lembrar” procura estabelecer um diálogo implícito entre passado, presente e futuro, pelo qual o amor é o fio condutor que une gerações. Esse conceito de continuidade e herança emocional é talvez o imo da letra, cujo apelo final simboliza não apenas a canção como um legado, mas também um amor que transcende o tempo e as palavras. Insha'Allah.
Não Esqueças de Lembrar
(letra)
Um amor grande como um mar sem praias Quando te vi fui de alegria às lágrimas
E nos teus olhos não deixes de lembrar … os meus
E enquanto puderes lembrar não esqueças de cantar
Nos teus olhos brilha o mar e um pôr-do-sol aberto de par em par
E nos teus sonhos não deixes de sonhar … os céus
Amanhã de manhã vai brilhar uma estrela, é aquela que revela não haver adeus
Dessa janela não esqueças de lembrar … os teus
Hás-de poder cantar esta canção de embalar a quem a souber ouvir e mais tarde escutar, a quem seja para nós uma bênção de Deus Não te esqueças de a cantar aos teus
Amor meu, coração fora do peito, contigo sou inteiro, somos um desse jeito Somos um só grito, infinito, amor perfeito, não esqueças de lembrar
Tempos houve de infinito, uma fracção de segundo condensando toda a matéria, passado, presente e futuro, fusão comprimida de cristais onde já nos encontrávamos, e mil gatos, areias e mares antigos. Houve explosões, expansões, reacções e a remota improbabilidade de que o primeiro rio, o primeiro sismo, tenham feito rolar a primeira pedra, cumprindo o curso exacto de formas prometidas e eventos necessários para que aqui estejamos nós, em Milfontes, tecendo presente, moldando futuro, segurando infinito.
Crónica e fotos d'O Jantar do XIX aniversário brevemente
Estimados leitores e confrades cordianos, a publicação da crónica e das fotos d'O Jantar do XIX aniversário do Caderno de Corda está significativamente atrasada por motivos que se prendem com a priorização de projectos artísticos, nomeadamente literários, que me ocupam os tempos livres. Ao momento ainda não foi desenvolvida a crónica nem as fotos foram editadas, mas prometo fazê-lo o mais brevemente possível. Este ano faremos um registo menos ambicioso, mais simples, dadas as circunstâncias e o tempo disponível, mas em 2025, ao vigésimo aniversário do Caderno de Corda, promete-se uma celebração nunca antes vista. 'Té já!
Deus está na chuva, no fumo ondulante do cigarro, formando sombras espectrais, rostos de sereias e corpos de amantes, antílopes que brincam na casa do lago, sem medo e sem pressa, onde a morte por desventura seja apenas mito, promessa.
Severin espera-te lá, onde não há coincidências, onde cada bala apanhada com os dentes seja a ilusão que desmente a morte imaginada.
São gomos de areia molhada os pés que pisaste, bem-me-quer desfolhado, no olhar assustado que me lançaste. Dizem que bebeste a solidão, que escorreste a garrafa que repousa em estilhaços, como tu, no chão. Bendito esquimó que não conhecia a Deus, pecado ou religião.
Invento mentiras para contar a Verdade. Deus está na casa do lago, nas sombras que se desvanecem, nos sonhos que nunca adormecem e na vida que, sem desventura, após a morte eternamente floresce.
N. do A. –
Poema composto a partir da reescrita do poema “Ficção”, redigido em Maio de
2009 e publicado em 2012 no livro “Sétima-Feira”, e da letra de uma velha canção,
titulada “Areias de Júpiter”, que nunca chegou a ser gravada. “Ficção” fora
dedicado a Kurt Cobain, em parte inspirado por Velvet Underground.
Atravessas a sacra via dos corredores do tempo, melodia transformada em saudade e cântico. É preciso cantar-te às pedras que não clamem por nós, é preciso largar um dilúvio que se estanque na pauta, esquecida sob o tampo da partitura do silêncio, ao resgate do milagre, da simplicidade mundana, da descoberta sagrada e da existência profana. A vida é sempre a perder, mas a música é eterna.
O Caderno de Corda perfaz hoje 19 anos com vitalidade que há muito não se lia. A pedido de algumas famílias, O Jantar realiza-se apenas a 12 de Abril, como sempre no restaurante A Valenciana, evitando o período de férias da Páscoa. Como é sabido, o aniversário comemora-se de 26 para 27 de Março (data do aniversário do blogue), mas, pela quarta vez, será concretizado em data posterior, de modo a favorecer a comparência do maior número de confrades cordianos. Tragam um Amigo também e, por favor, confirmem a presença na página do evento no Facebook:
Ao 19.º ano, eis a convocatória tardia para O Jantar, que se realiza este ano a 12 de Abril de 2024, no sítio do costume, evitando o período de férias da Páscoa. Como é sabido, o aniversário comemora-se de 26 para 27 de Março (data do aniversário do blogue), mas vem sendo já hábito concretizá-lo em data posterior, de modo a favorecer a comparência do maior número de confrades cordianos. Tragam um Amigo também.
Sucedem-se sombras em cadência rápida e o verso flui na ponta da escrita automática, corrente como água sem ter para onde. Na dança acelerada de dias alados, de clepsidras arenosas como rios secos e de consumos vorazes em vitrinas expostos, a vida, subtil, verte-se entre dedos, sabemos - palco de ilusões, espetáculo frenético de música apressada e caos poético. Desumanizado, excedente, o consumidor perde a essência do gosto, perde o sabor, despreza lamentos em caligrafia lenta e versos que abraçam partidas impossíveis. Num portal para nenhures um poeta sem choro rascunha a efemeridade de ilusões adiadas. Num beco urbano um palhaço plange e soluça. Conhece uma jovem. Ela dá-lhe um arco-íris.
Ideias brilhantes, verdadeiramente geniais, trariam fama, fortuna e glória se bem executadas, mas a perícia sensível do virtuoso está muito desvalorizada perante a tirania do limiar da pobreza e do trabalho pela sobrevivência, e não poderíamos ter todos fama, fortuna e glória. São precisos inúmeros pobres para fazer um rico e demasiados amenistas para carregar um líder. Estupendas são as corrupções políticas, os escândalos financeiros e o chico-espertismo, mas não chegam para vomitarmos à mesa diante da televisão. Afinal, eles são da nossa cepa, são os que se chegam à frente, oportunistas vaidosos, munidos de bandeirolas, panfletos e bonés.
Passez à-la-caisse! Passez à-la-caisse!
A Pessoa, o poeta, cheirava a tinta fresca de tipografia… Hossanas a quem conhecer o cheiro de cartazes recentemente impressos, colados a pincel, e a quem, dentro de pouco tempo, souber como se folheia um jornal; como se conduz um camião TIR; como se atende um cliente a sorrir. Os armamentos gloriosamente mortíferos ainda não acabaram connosco de vez. Ouvi dizer que somos do interesse de extraterrestres. Mas tudo é vida fascinante, até nas montras brilhantes com dons curativos de afeções de alma e de espíritos voluptuosamente errantes, ainda sabendo que os astros são os mesmos que inspiraram os mestres de Da Vinci e que o Sol é o próprio que tisnou Cleópatra.
Ah, e as vidas complexas da gente que aos andaimes sobe sem outro fito que não a gente que à braguilha desce. A indigência moral não assenta aos perdedores, àqueles que, destroçados, desistiram de competir, incapazes de depredar, derrotar, conquistar ou subjugar; incapazes sequer de lutar pelo pão na mesa, de limpar o suor nas mangas estiradas sobre os pulsos, no entanto sujas de ranho e resíduos alimentares. A luz do Sol abafa o silêncio das imitações de vida de pobres, ricos e remediados, das bocas suturadas, e havemos todos de morrer sem dar por nada. Cá preciso de Liberdade para depois de velho ou morto. A vida é mais custosa do que a vida que temos para dar; é um recurso tão escasso quanto urgente, antes que morra, e eu só tenho uma certeza: quero ser feliz agora, porra.
* A última estrofe, a itálico, traduz um excerto de "Turn! Turn! Turn!", dos Byrds, por sua vez uma canção original de Pete Seeger, cuja letra, excepto o título, repetido como refrão, e os dois versos finais, consiste na reprodução exacta dos primeiros oito versos do terceiro capítulo do livro bíblico de Eclesiastes.
Amaste como o luar ao meio-dia. Sorrindo na cara do desgosto, fizeste da fealdade beleza, reflectindo-nos obliquamente, espelhos eivados, transfigurados na intersecção radiante de um inextinguível nexus luminoso num riacho de mosto.
Como é que se diz, mãe, que foste com a cabeça entre as minhas mãos vagas, que te chamei e pedi para ficares quando já não estavas? Como se diz que te ia murmurando ao ouvido, que te implorava para não ires, e já tinhas ido? Como se diz, mãe, que estiveste 45 minutos de vestes rasgadas e peito desnudo, e eu só te largava a espaços, sem toque, para o desfibrilhador te acometer em espasmos e nenhum de nós recuperar do choque?
Nasceste tão doce para acabar num corpo asfixiado, magro e seminu, lábios arroxeados, incapaz de responder à minha súplica, no chão prostrada, ao lado da cama, sem poesia nem música - um corpo de nada, sem chama -, já tu planavas livre, olhando-me de cima.
Emergiste grácil desse corpo, estou certo, vaporosa como as cinzas, mas eu guardei-te perto, germinada num vaso, cantada em verso. Como água para azeite, regada a preceito, a oliveira das minhas raízes pende do parapeito para alcançar céu aberto. E os anjos, suspirantes numa frágua de amor devoto como eu a clamar o teu nome, mãe - porque mãe é o teu nome de santa -, olhavam-nos com o mesmo nó na garganta que de então me aperta a laringe também.
Celestial e bendita, lirial, silenciaste por fim mágoas e dores. Ter-te-ás feito de todas as cores e dos meus ais roseiral, que te sei alígera e ágil, ainda que levasses daqui todas as partes de mim que sem ti nem eu sei.
Quando nasci o mundo eras tu, a tua palavra era lei. E agora, mãe? A que mundo me dei? Podes dizer que me vês?, que ainda sou o menino dos três que adormeceu nos teus olhos de ternura sem fim? Ainda oiço a tua voz: “… O teu berço adornei e o pus junto a mim…” Diz-me que sim.
10 de Junho de 2021, Santarém. Foto: Ricardo Pinto
Profunda a quietude, palavra de som, suave, pairando sobre poços de tranquilidade e sobre o deserto, corpo de vento e de mares vazios em canyons sem idade, na furtividade de dias e noites de relento. Palavra-arte a céu limpo e aberto, dorme sem tempo, sem chão nem verbo, e dormem corvos à janela e cães à minha porta - nenhum sussurro abafado. Arde, ruidosa, uma vela, velando o silêncio entre notas - o silêncio pontuado que realmente importa. Há qualidades incorpóreas cuja existência, dupla, termina e começa onde uma começa e outra termina, à frente e atrás do espelho - uma entidade gémea que desponta da matéria e da luz, na solidez da sombra.
30 anos depois com Luís Osório na Feira do Livro de Coruche
Tenho de registar a alegria e o privilégio de, 30 anos depois, ter reencontrado (fisicamente) o querido Luís Osório. O contexto, tão diferente daquele de há três décadas, mas de prismas simbólicos e essenciais tão idêntico. A sequela de uma conversa que durava uma tarde e uma noite inteira na Feira do Livro de Coruche. "E agora é para sempre", Luís. 'Té já.
Davi Reis é o pseudónimo artístico de Hugo Simões (n. 1978), criador multifacetado que desbrava os horizontes da música e da palavra. Guitarrista da extinta banda lisboeta Baby Jane e autor de dois livros de poesia e do muito aguardado disco-livro "Avançado Estado de Composição", faz da criação espelho da vida – e da vida acto de criação.