Ontem, noite alta no Bairro Alto, depois de um jantar de aniversário e de alguns reencontros felizes, desembocámos - eu e creio que mais nove pessoas - no segundo andar de um prédio aparentemente abandonado onde, a qualquer hora da noite, se pode comer a exótica feijoada conhecida como cachupa. Não me recordo nem do nome do sítio (não se poderá apelidar restaurante, até porque é clandestino) nem do da rua, que, no entanto, não deixa de ser nas imediações próximas do Bairro. Em ambiente comunitário, dissipados preconceitos sociais de qualquer espécie, comemos e bebemos com satisfação. Junto a uma parede da sala, sem termos dado conta, estaria a nós atento um poeta, senhor dos seus sessenta e tal, setenta anos. Barba filosofal mais branca do que negra, tal como o cabelo, que aureolava o crânio, quimérico em cima, numa calvície monacal. A certa altura, éramos apenas três, se bem me recordo: eu, o Gaspar e o Dantas, e o poeta abeirou-se de nós com uma folha A5 de papel listado. Apresentou-se cordialmente, disse ter observado o grupo, que o inspirara a escrever uma quadra, a qual no-la leu de pé:
«Uma dezena de amigos
na 'Caxupa' se sentou;
eram verdes e vermelhos
numa paz que ali pousou!»
Agradecemos-lhe o gesto. O poeta, Zé Fernandes - assim soube, uma vez que a quadra vinha atribuída com respectiva assinatura legível -, trocou comigo algumas palavras, qualquer coisa acerca de escrever versos de sete sílabas, e voltou a sentar-se. O verso onde se referia ao facto de os amigos serem «verdes e vermelhos», reportava-se à preferência clubística de alguns de nós, que traziam ainda, horas depois do nefando derby entre Benfica e Sporting (1-3), cachecóis de ambos os clubes ao peito. De imediato, Dantas e Gaspar tiveram oportunidade de saciar curiosidade quanto ao papel, e leram a quadra. O Gaspar lançou, prontamente: «Então, agora escreve tu um para ele!» Assim fiz e, em um ou dois minutos, a contra-resposta:
Um poeta de nós se abeirou
quando à mesa estávamos dez.
Que poema sublime nos dedicou!;
A liberdade ditou-lhe o que fez.
Levantei-me da mesa, fui ter com o senhor Zé Fernandes e disse-lhe: «Escrevi-lhe agora uma pequena quadra. Apreciei o seu gesto. Se não se importar, publicá-las-ei no meu blogue com devida atribuição de autoria...» O poeta fez uma careta, disse não ter acesso ou familiaridade com a Internet, pelo que não teria possibilidade de consultar o Caderno de Corda, mas acedeu. Leu a minha quadra, pareceu ter gostado muito, e não se fez rogado: nova resposta, ali mesmo, comigo em pé, que esperei pacientemente em silêncio a redacção pausada do poeta:
«Esboroaram-se os dez da mesa
deixando um perfume ridente.
São amigos que p'ra sempre
minh'alma não pesa!»
Cumprimentámo-nos e voltei para junto do Gaspar, já noutra mesa do estabelecimento, onde estava também o Guiller. Daqui endereço, portanto, um abraço fraterno ao senhor Zé Fernandes, que àquela hora estava naquele local só com as suas quadras e os seus botões.
p.s. - Se algum dos presentes por acaso ler este post, recordem-me o nome do local e, se possível, a rua, ok? Por uma questão de rigor...
n.b. - Aquele abraço para o Guiller, que respondeu à chamada, completando o post na respectiva caixa de comentário.
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