quinta-feira, junho 30, 2005

Esta fotografia foi abusivamente retirada do blog Lisbon Photos, de João Pequenão.

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Anamnésias 2

Lisboa. Cais das Colunas.
No instante em que a trajectória do velho cacilheiro alinhara o triunfante e augusto arco na protegida retaguarda da estátua de D. José I - qual Gulliver entre Lilliputianos -, sobre o rei se pôde ler: “Virtutibus Maiorum”. Vi a azáfama desvirtuada dos pequenos e mortais seres que aos pés de reis se prostraram e que a cidade edificam. Penetram e coloram-na, tal como a luz única que banha e preenche o amontoado de casas, estendido até não mais se ver; até, altaneiro, à minha direita, ao Castelo de S. Jorge, bastião dos resistentes. Ruínas do Carmo, quase vos vejo despontar à minha esquerda. Está frio e um cheiro desagradável é exalado da margem do rio. O movimento das águas embala a perspectiva desconcertante do estrépito ainda próximo dos veículos terrestres; uma acalmia inquietante, de onde estou, pelo que vejo, em mim se instala.

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quarta-feira, junho 29, 2005

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Poemas da adolescência 7

Um minuto de falta de motivo que nunca permitiste
Um minuto de vazio que sabes preencher
Um minuto!, que me ofuscas de inesperado
Um minuto e dás-me a deixa para continuar
Tu nunca foste um minuto de silêncio

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terça-feira, junho 28, 2005

Cá estou eu junto ao lago de Viriato.

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Um aroma vivificante

Na sexta-feira tive de ir à Serra da Estrela e atravessar todo o Vale Glaciar. De um lado e de outro, encostas grandiosas, vertentes abruptas sulcadas por cascatas, riachos velozes e fontes caudalosas. Parei junto à Fonte de Paulo Luís Martins para tirar fotografias, com a ajuda de um fotógrafo da Covilhã, de seu nome Filipe Pinto. Aqui lhe deixo, desde já, o agradecimento. À direita, o Covão de Albergaria e, adiante, o Covão d’Ametade, antiga lagoa de origem glaciar, aos pés do maciço do Cântaro Magro, onde nasce o rio Zêzere. Tenho também uma fotografia junto ao lago de Viriato que, dizem, por lá andava naquele tempo de ocupação romana. O ar, sadio e viçoso, ateava no vento brando - mas, ainda assim, fresco de Verão -, um perfume, fragrância natural do que é imaculado, virtuoso e verdadeiro. Senti prazer em algo tão simples e inato: respirar. Encontrei um tempo de montanha sem neve, escalado pela luz dourada da altitude, pelo verde da vegetação insondável vista da estrada, pelo jorro das essências termais e pelas cascatas e rios truteiros que descem no berço de antigos glaciares. O silêncio é total. Senti-me em paz e nem pela magnitude do que presenciava me supus menor. Pelo contrário. Cheguei à Covilhã com aquela estranha sensação de ter nos ouvidos um zunido pressurizado. Com a mão, tapei o nariz e funguei. Passei a ouvir bem mas a fragrância do Vale Glaciar dissolvia-se, aos poucos, na aproximação à urbe poluta, pelo ziguezaguear descendente até à Covilhã. Seguem as fotos acima.

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segunda-feira, junho 27, 2005

Não foi assim em 1991. De todo.

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Anamnésias 1

Imagem Memorial - Penalti decisivo do Rui Costa contra o Brasil, na Luz, em 1991

Sob a noite estrelada, aparentemente serena, refulgia de som, luz e cor o monumental estádio, agora defunto, catedral de religiões pagãs e eternamente primitivas. Sobrelotado, perto de 140 mil pessoas ansiosas e unidas por um espírito de comunhão patriótico, solidariedade apaixonada pouco razoável e de todo racional, se acondicionaram no espaço destinado e previsto para 120 mil. Gente de pé, gente que se amparava, alguns sentados ao colo dos outros, muitos de mãos dadas, gente pendurada nas escadas de acesso às bancadas, fazendo lembrar símios acrobáticos e ágeis, esperavam o momento decisivo do penalti de Rui Costa. Uma gota seria o necessário para fazer transbordar o estádio. Rui Costa ajeita os calções, puxa a meia do seu pé direito, cospe para o chão e avança para a bola. O estádio exultou, o resto é história. Portugal era campeão do mundo de juniores.
n.b. - Fui ver o jogo com o meu pai. Tinha, penso eu, 12 anos. Chegámos a cerca de 30 minutos do pontapé de saída, por hora do aquecimento de ambas as equipas, ou seja, demasiado tarde para a maior e irrepetível enchente de sempre num jogo de futebol em Portugal. Contra todas as normas de segurança estipuladas pela FIFA, e à boa maneira portuguesa, entraram amigos, filhos e enteados; uns sem bilhete, outros com, e outros ainda com bilhetes falsos. Naquele que era o maior estádio da Europa, com capacidade para 120 mil espectadores, apinharam-se perto de 140 mil pessoas para ver a final lusófona de juniores entre Portugal e Brasil. Todo o espaço vazio respirava por entre gotículas de suor dissolvidas em corpos outros, coados, fundidos, matizados. Com os meus 12 anos era, naturalmente, de pequena estatura e, à hora a que chegámos, não havia lugar para nós os dois a não ser nos corredores secundários de acesso às bancadas, de onde não se vê o relvado. O meu pai ainda conseguia espreitar, do alto do seu metro e oitenta e um. Eu não teria qualquer hipótese de vislumbre. Preocupado, o meu pai perguntou-me se eu quereria voltar para casa e ver o jogo na televisão. Claro que não queria mas, dadas as circunstâncias, ponderei e acedi. Pelo menos via o jogo. Saímos o mais rapidamente possível, na tentativa de acompanhar os 90 minutos na íntegra pela tv. Quando chegámos ao local onde havíamos deixado o carro, a frustração total e maior da minha curta vida até então: estávamos bloqueados. Não havia saída possível. Dezenas de carros em redor do nosso, em asfixia homóloga àquela dentro do estádio. Resumindo e concluindo, estivemos os 90 minutos, mais os 30 de prolongamento e os restantes, de marcação de grandes penalidades, dentro do carro, junto ao estádio, a ouvir o relato na rádio. Não me poderei esquecer nunca daquela sensação. Não esquecerei o momento de silêncio que precedeu o penalti derradeiro do Rui Costa, e o estrondoso estampido que se seguiu. Não vimos nada. Ouvimos tudo. Foi a primeira de duas vezes que chorei baba e ranho com a bola. Deitei a cabeça no colo do meu pai e ali fiquei, em silêncio, a chorar de emoção e frustração. Mixed feelings. Iluminados pelos holofotes da antiga catedral da Luz, e tendo como pano de fundo sonoro os festejos dentro do estádio, ali ficámos sem dizer uma palavra, à espera que os nossos compatriotas viessem buscar os seus carros e nos deixassem sair dali para fora. Acho que só no dia seguinte consegui ver o resumo do jogo.

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sábado, junho 25, 2005

Vou por onde?!

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sexta-feira, junho 24, 2005

Cântico Negro (José Régio)

Não foi e não será meu costume fazer do Caderno de Corda um placard de afixação, trasladação ou reprodução de obra alheia. Se tal já se verificou, deve-se à espontaneidade singular e inigualável de algo que vale por si. Um poema, por exemplo, e nenhum outro. "O" poema. Hoje, é esse o caso. Pimenta, esta é para ti. Penso saberes porquê:

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura!
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio
José Régio, pseudónimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta, que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estreia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

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E lá ia o Tarzan. Tenho pena de não ter uma foto sequer.

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quinta-feira, junho 23, 2005

A sugestão da sugestão e o "Tarzan da Caparica"

Hoje não poderei publicar ou escrever algo fresco. Tenho afazeres entre mãos. Mas aproveito para me dirigir aos leitores de uma maneira nunca antes tentada: farei uma sugestão. A sugestão da sugestão. Passarei a explicar: ocorreu-me incitar à interactividade entre o leitor, eu, e o que eventualmente poderá ser o "Caderno de Corda" na forma prática. Quer isto dizer que aceitarei ideias, pensamentos, enredos, se quiserem. Motivos e premissas narrativas. Questões de opinião pública, desilusões e soluções, se tal existir. Não pretendo congregar um fórum nem aproveitar-me abusivamente da originalidade inventiva alheia. Eu próprio ainda terei de matutar sobre esta hipótese e a melhor forma de a colocar. Voltarei, em breve, depois de maturar a coisa ao sol tórrido de Junho, a atestar lucidamente a possibilidade perante o estimado leitor, ao invés de a suspirar tímida e desconchavadamente à boca pequena.
Fica, ainda, a nota de ter conhecido hoje um homem ímpar de simplicidade e placidez comoventes. É muito conhecido como "Tarzan da Caparica". Tem 88 anos e é o ícone dos banheiros, hoje nadadores-salvadores, na Costa da Caparica. Salvou vidas incontáveis. Aprendeu a nadar com os roazes. Viveu as agruras de todo um tempo faminto e esganado de guerra. Nunca conheceu a mãe, que faleceu oito meses após o parto. O pai escorraçou-o por não lhe poder dar de comer. O Tarzan, nome pelo qual toda a gente o conhece, é, de facto, António Ribeiro. A Câmara já lhe reconheceu os feitos, atribuindo-lhe uma medalha de ouro. Hoje ainda vigia as praias e os por demais descontraídos banheiros da nova geração. Diz que lhes falta um sentido de missão. São tantas as histórias de vida significativas deste homem invulgar. Disse, a princípio, não escrever hoje. Já me esquecia. Já me esquecia até de que devo escrever sim, mas não no blog.
Dizia o Tarzan, acerca do dia em que aprendeu a nadar:
"Aprendi a nadar com os roazes pois meti-me dentro de água, via-os lá com aquele movimento das barbatanas, distraí-me, agarrei-me e um deles levou-me com ele. Quando me larguei, voltei a nadar para terra outra vez. Quer dizer que eles já achavam aquilo engraçado. Iam para comer e então ensinar-me a nadar. Quando tinha mais talento, ia com eles lá para essa ilha do Bugio umas vezes a nadar, outras agarrado à barbatana do golfinho. E eles olhavam para mim! E tinham cá um cuidado comigo... E ninguém viu, que aquilo era um filme lindo."

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quarta-feira, junho 22, 2005

Soirée aristocrática

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Quadras do Aleixo 5

Sou humilde, sou honesto
mas, entre gente ilustrada,
talvez me digam que eu presto
porque não presto pr'a nada.

António Aleixo

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Poemas da adolescência 6

Noites a fio, sereno olhar
que acompanha o rio caminhando para o mar.
Sou teu se sorrio, sou teu se te amar;
sou teu se, sedento, beber-te o olhar.
Chora-me um rio doce, plácido e barrento,
que irei soçobrado para o mar.

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terça-feira, junho 21, 2005

No comments, perdoem-me o inglesismo

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"Duas coisas indicam fraqueza: calar quando é preciso falar e falar quando é preciso calar." (Provérbio)

Portanto, hoje devo ficar calado.

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segunda-feira, junho 20, 2005

"The Rich and the Poor", T.F. Chen

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Quadras do Aleixo 4

Quem nada tem, nada come
e ao pé de quem tem comer,
se alguém disser que tem fome,
comete um crime sem querer.
António Aleixo

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Poemas da adolescência 5

Devolvo a bala ao fogo de onde veio;
Engulo a tua raiva e vomito-a transformada;
Trinco-te de prisão e, se quiser, mastigo-te de dor;
Tempero-vos todos de pólvora para,
calmamente, acender um cigarro.

("You Gotta Take the Power Back" - RATM)

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domingo, junho 19, 2005

Será que terei de voltar a falar sobre isto?

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18.06.2005, 16h26 - O meu clipping da manifestação da extrema-direita em Lisboa

Em declarações aos jornalistas durante a manifestação, o dirigente da Frente Nacional, Mário Machado - apelido que advém do nosso substrato linguístico germânico -, afirmou que a iniciativa serve "para dizer aos políticos que há portugueses que estão despertos para o que se está a passar e estão dispostos a tomar medidas". Quereria ele dizer "aos políticos" ou às minorias étnicas? Disse o que sabia ter de dizer para que o seu movimento pudesse continuar a trazer das catacumbas, do ossário, a fetidez mórbida à luz fresca do dia, à Baixa lisboeta, diante de todos, impunemente. Boçais e obtusos, ostentavam faixas onde se poderia ler:
"Portugal aos portugueses";
"Sampaio na Cova da Moura os portugueses no Martim Moniz";
"Travar a imigração e expatriar os clandestinos";
"Basta, basta. Imigrantes igual a crime";
"Não existem direitos iguais quando és um alvo por seres branco".
Afirmação do dirigente da Frente Nacional, sublinhando que "esta não é uma manifestação racista" mas apenas uma forma de demonstrar "orgulho na raça e no povo português": "O nosso país está tomado a saque e os brancos cada vez mais são um alvo dos ataques das outras minorias."
Afinal, em jeito de complemento ao post anterior, a manifestação foi autorizada pelo Governo Civil de Lisboa em resposta a um pedido subscrito por três cidadãos, repito: três cidadãos sem referência a qualquer organização.
A democracia palavrosa louva e protege o mentiroso e o ilusório. Mas o mesmo se passa, por vezes, no trabalho, no tribunal, nas escolas. Premeia-se o falsário, o desleal, o manhoso bifronte e dissimulado. Mas o seu caminho, e, para quem goste dos escritos, o seu diálogo, será breve e entaramelado como as escadas de Babel.

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sábado, junho 18, 2005

1925 - Cerca de 40.000 membros do Ku Klux Klan marcham em Washington, como parte da organização do 1º congresso nacional. Espanto.

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Hoje - Manifestação de extrema-direita no Martim Moniz

1) Será possível?
É já hoje, no dia em que Jorge Sampaio visita a Cova da Moura, que terá lugar a manifestação skinhead, ou de extrema-direita, como preferirem, no Martim Moniz ou no Rossio, locais de concentração de imigrantes. As autoridades policiais estão a vigiar a organização da manifestação por parte de um grupo afecto à extrema-direita – a Frente Nacional. Dizia o Correio da Manhã online: "O objectivo é vigiar o desfile, caso este seja autorizado pelo Governo Civil, ou impedi-lo se for ilegal". Mas será que um desfile xenófobo de extrema-direita, nazi e funesto é permissível, lícito, tolerável?!
2) Nazismo filantrópico dentro da lei?
A Frente Nacional marcou para as 16h00 uma manifestação "contra o aumento da criminalidade", nomeadamente dos "gangs", que, segundo a organização, "aumentou mais de 400 por cento nos últimos sete anos". Reparem: agora, a Frente Nacional contribui sociologicamente para a leitura e resolução dos problemas de convivência inter-raciais... Mais: no seu site na Internet, a Frente Nacional apela "a todos, independentemente da sua ideologia ou filiação partidária, que querem mais justiça, mais liberdade, e um efectivo combate à criminalidade, nas suas raízes e origens", a participarem no protesto, sublinhando que "os problemas locais são os problemas de todos os portugueses", numa referência ao "arrastão" em Carcavelos e aos incidentes registados em Quarteira, no Algarve. Como o jogo democrático é tão cínico e hipócrita... Os sacaninhas aprendem depressa...
3) Resposta à questão anterior:
Fonte do Governo Civil de Lisboa garantiu à Lusa que, até ao momento, não foi recebida na instituição qualquer comunicação da manifestação convocada pela Frente Nacional, sendo que, de acordo com o Decreto-Lei 406/74, sobre o direito de reunião, as manifestações ou desfiles devem ser comunicados ao Governo Civil "com a antecedência mínima de dois dias". A lei admite que, em alguns casos, o Governo Civil possa interditar as manifestações, sendo levados em consideração factores como a segurança e manutenção da ordem pública ou a honra das instituições democráticas. O dirigente do SOS Racismo Mamadou Ba considera que a manifestação de sábado é de "alto risco" e que pode gerar um "conflito com consequências graves". Vamos esperar pelo telejornal, sentados, para ver, não é?

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sexta-feira, junho 17, 2005

Não foi o Elvis que fez isto...

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Entre o Ser e o Não Ser

«Eu não estou cá. Isto não está a acontecer», pensei novamente. De seguida, sentei-me no sofá da sala de estar e liguei a televisão. Telecomando... as notícias pairavam no ecrã, instantes fugidios. Cada imagem se encarregava de apagar a imagem anterior. Sucediam-se horrores que saciavam uma qualquer libido vertiginosa e apocalíptica, auto-destrutiva. Nisto, acendo um cigarro de marca aparentemente portuguesa e deixo o corpo escorrer por entre a cascata de informação e o sofá; planto-me num regaço de almofadas, faço-me erva daninha nas encostas de uma poltrona de tédio e passividade. «Isto não está a acontecer.» Nem por isso resisti a passear vagamente por entre canais. Duas horas depois, seis cigarros fumados, meu amor próprio desfigurado; a minha raiva, entorpecida. Nada tinha realizado. Sem capacidade de reacção, levantei-me e fui beber um copo de Coca-Cola para revigorar uma sede estranhamente obsidiante. Acendo mais um cigarro, ainda na cozinha, e volto à sala de estar. Milhares de mortos e crianças subnutridas algures, repentinamente em rodapé. O novo álbum de um qualquer hispanófono promovido no nosso telejornal. O Capitão não sabe o segredo. O vento sopra... Sentei-me novamente no sofá. Estava agastado com o tempo perdido, desgastado pela inércia moral, espiritual, física. Deitei as mãos à cabeça. Desliguei a televisão. Numa tentativa de recobrar alguma interioridade vadia, apressei-me a ouvir boa música americana. Ao passo que aliciava uma sensibilidade flutuante e volátil, esperava despoletar um qualquer efeito criativo, comunicativo, ainda que assim solitário. Tentei tocar guitarra, tentei escrever alguma coisa, dar vazão àquilo que dentro de mim vai. Nada. Tudo havia sido empacotado num tetra-pak de abertura fácil. Kaput. A exposição prolongada à TV Shop havia decapitado o meu livre arbítrio e a minha criatividade. Lisboa já não tardava em amanhecer. Zonzo, deitei-me no sofá e irreflectidamente peguei no telecomando. Olhei-o, torcido de cansaço inútil, como se nele me reflectisse em vergonha. Pousei-o. Nada tinha realizado. Tudo se encontrava na mesma, excepto eu, que envelhecera. A televisão versa em como desaparecer completamente. Numa segunda investida libertária e criativa, procurei novamente mergulhar em mim, guiado pela música. Radiohead: «I´m not here. This isn´t happening». E comecei a escrever.

n.b. - "Entre o ser e o não ser" foi publicado no segundo número do jornal "Impress" do mês de Junho de 2003. O projecto de boa memória "Impress" foi fundado por meia-dúzia de alunos do curso de Ciências da Comunicação da Universidade Autónoma de Lisboa, dos quais eu era um. A um dia do fecho da publicação houve uma inesperada desistência e foi necessário preencher, impromptu, um espaço em branco, mesmo a meio da página quatro. Numa de muitas conversas edificantes, construtivas e fraternas que tive com o então director do jornal e presidente do núcleo de Ciências da Comunicação, Pedro Coutinho, decidimos que seria eu a preencher o dito espaço reservado a opinião. Assim foi. Aproveito para, além de publicar um texto sem tempo guardado na gaveta, endereçar um abraço ao Pedro, com quem, após ambos termos terminado o curso, apenas tenho privado por telefone ou messenger. Aquele abraço, companheiro!

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quinta-feira, junho 16, 2005

Quadras do Aleixo 3

Pr'às quadras onde eu revelo
O que pensas lá contigo,
Tens um sorriso amarelo
Que eu entendo mas não digo.

António Aleixo

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Poemas da adolescência 4

O Fim do Teu Amor Temendo

Vãs esperanças, estranhos caminhos, todas as escolhas que se tornaram destinos. As aventuranças, as demandas e os falhanços, os momentos que vieram em suspiros. Quando os anjos caem, os homens desejam ter asas, esperando um eterno perdão, que abençoe esquecendo. E se eu me sentisse inseguro, o fim do teu amor temendo, oferecendo-te o futuro, meu pescoço desnudado, à tua mercê, esperando o fio do machado que nenhum de nós enterrou. Arma fria e branca, a tua indiferença.

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quarta-feira, junho 15, 2005


Um post de Silêncio

Não publicarei hoje nada da minha lavra por respeito e consideração aos falecidos. Não me parece apropriado, após ter-lhes dedicado os posts anteriores. Fica esta nota de silêncio separando a morte, que é, de facto, o fim, mas não a finalidade da vida. A essa, continuarei a dedicar-me.
"A vida não passa de uma oportunidade de encontro. Só depois da morte se dá a junção. Os corpos apenas têm o abraço, as almas têm o enlace."
Victor Hugo

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Tríplice Memorial

José Saramago, no Canadá, num jantar a convite do embaixador português:

"Morreu um poeta, morreu um general reformado, morreu um comunista retirado. Isto dirão alguns. Perdemos um poeta dos maiores, perdemos um patriota dos mais puros, perdemos um político dos mais lúcidos e fiéis a si mesmos. Isto digo eu, tal como dirão muitos outros."
O general é, obviamente, Vasco Gonçalves, a que não fiz referência no post anterior. Faço agora. O "companheiro Vasco" morreu no sábado, aos 83 anos, aparentemente vitimado por uma síncope quando nadava numa piscina no Algarve.

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terça-feira, junho 14, 2005

A "Águia Branca" e o "Poeta do Silêncio" - Dupla perda nacional

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"Até Amanhã, Camaradas"

Não poderei deixar passar em branco as mortes, na madrugada passada, da "Águia Branca", Álvaro Cunhal, e de Eugénio de Andrade, ambos vítimas de doença prolongada. Álvaro Barreirinhas Cunhal, também Manuel Tiago (de pseudónimo), nasceu na freguesia da Sé Nova em Coimbra, no dia 10 de Novembro de 1913. Eugénio de Andrade, por sua vez pseudónimo de José Fontinhas, nasceu a 19 de Janeiro de 1923, na Póvoa de Atalaia, Fundão. O líder histórico do PCP faleceu aos 91 anos; o poeta Eugénio de Andrade, aos 82. Uma oração e, aqui, a manifestação devida de pesar, depois de um fim-de-semana fantástico que seria perfeito, não fosse a triste notícia desta dupla perda para Portugal e para o mundo. Nada é eterno senão na nossa memória.

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domingo, junho 12, 2005

Porto Côvo

De manhã cedo vou para Porto Côvo, onde, numa ilha, havia um pessegueiro. Vou fazer-me Vizir de Odemira. Volto na segunda-feira. Vou falhar um dia de blogosfera... mas não julguem que me arrependo!

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Vitorino Nemésio. Ainda a propósito do bom Aleixo

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Quadras do Aleixo 2

Tal qual me sucede a mim,
Sem ter vulto, sem ter voz,
Vive qualquer coisa em nós
Que manda fazer assim.

António Aleixo, Primavera, 1943

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Poemas da adolescência 3

Minha máscara é esta prosa, ora rima,
que as palavras têm de ser acarinhadas
para tas segredar ao ouvido.
Assim, elas hão-de fazer sentido.
Sem te querer sufocar,
apenas reajo escrevendo
- sensações que me fazes perpassar.
Estou como um animal que obedece a este instinto
e não consigo parar de te escrever.
Só te peço que não me leias no momento de me ver
que me desfaço em pedaços se fores maior do que eu.

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sábado, junho 11, 2005

Arrastão: Assaltos massivos premeditados são fenómeno dos tempos correntes. Atenção a isto!

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"Gang" na língua portuguesa - palavra a reter?

"Gang", no dicionário, quer dizer: associação de malfeitores, bando, quadrilha. Sejam dos subúrbios, portugueses de primeira geração ou não, falem português correcto ou crioulo, não importa. São mais que muitos os filhos da miséria, também em Portugal, à semelhança do Brasil. Portugueses de segunda?, ou de primeira... geração? A Tabula Rasa de Locke não pode justificar o que sucedeu em Carcavelos. A sociedade é que torna o homem mau? - vejo-me forçado a pensar, por ter conhecido a gente de África. O fenómeno tem de ser pensado a ponto de estar erradicado no curto prazo. Digo fenómeno porque, há bem pouco tempo, como o post de 23 de Maio de 2005 testemunha, no Estádio da Luz, aquando da festa do título, de porta aberta, se deu aquela vexatória, triste e despropositada invasão de campo. Os gandulos eram, por certo, da mesma corja. Tudo isto aconteceu logo ontem, que a PSP iniciou um sistema de patrulhamento com motociclistas, nas praias da Costa do Estoril. Foram - já reza a crónica do Público online - esses agentes que se encontravam no paredão, que deram conta do que se estava a passar e pediram reforços. Foram deslocados para o local 60 agentes da autoridade (?!) para cerca de 500 adultos e jovens entre os 12 e os 20 anos que, constituídos em vários grupos, entraram ontem, pelas 15h00, na praia de Carcavelos, e assaltaram e agrediram inúmeros banhistas, segundo chegou a dizer alguém da PSP, cujos agentes efectuaram disparos para o ar. O presidente da Câmara Municipal de Cascais, António Capucho, garantiu que as "centenas de marginais" que invadiram hoje a praia de Carcavelos e assaltaram banhistas são de outros concelhos. Sério? Que novidade.

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sexta-feira, junho 10, 2005

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Quadras do Aleixo 1

Meu aspecto te enganou
O que a gente é não se vê
Pergunta a outrém quem sou
Porque o que sou nem eu sei

António Aleixo, Primavera, 1943

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Poemas da adolescência 2

Amanhã, o segundo e último dia da semana.
Hoje não me lembro... nem me apetece.
Ontem, o outro dia da semana.

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quinta-feira, junho 09, 2005

Acho que está tudo dito...

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Para quando a privatização do ar?

Já há longo tempo esperava por uma oportunidade de poder expressar o meu descontentamento e indignação perante a existência da EMEL e o seu modus operandi. Se, por um lado, é sabido que o nível de vida dos portugueses é baixo; que o automóvel é, para nós, ainda um bem de luxo e que a geografia urbana de Lisboa é, por natureza, descompensada, quando observada a EMEL “em movimento”, é mais difícil manter o discernimento necessário à argumentação.
A empresa em causa não parece considerar o organismo urbano como produto da acção e vontade dos homens, actuando em face das possibilidades geográficas do meio. Com o compadrio da Câmara - logo, do poder político instituído -, um agente (?!) da EMEL, depois de imobilizar o precioso meio de transporte de um honesto e cumpridor cidadão, pode mandar rebocá-lo caso o “infractor” não proceda às diligências necessárias para a solicitação do desbloqueio e respectivas liquidações. Note-se que o número de telefone para o qual deve ligar, é taxado.
Por tê-lo já experienciado, tendo já esperado cinco horas por esses pachorrentos, baldados e inúteis, posso assegurar que as equipas de desbloqueio são insuficientes para uma acção atempada e eficaz que colmate as razias indiscriminadas que os fiscais perpetram.
Na análise da orgânica de Lisboa, a EMEL não contemplou um modo particular de encarar o espaço urbano, os seus habitantes e a dinâmica da sua organização.
Se até há bem pouco tempo a EMEL não nos fazia falta - sequer existia -, porquê habituarmo-nos passivamente? Em minha opinião, a EMEL pratica uma forma de violência psicológica coerciva, atentando à propriedade privada e às liberdades fundamentais, em nome de outros interesses que não a harmonização das nossas cidades. Quem está comigo?
n.b. - Este pequeno texto opinativo foi publicado no jornal "Mundo Universitário", a 8 de Junho de 2004, portanto, há um ano. Foi-me pedido pelo então chefe de redacção da referida publicação, um amigo já de longa data. Mesmo sabendo que ele não vai ler este post - pelo menos, para já -, uma vez que desconhece o "Caderno de Corda", aproveito para lhe enviar um grande abraço. "Nigel Patch-Echo", quando é fazemos o nosso blog com o mano Aragão? Um abraço da blogosfera ao Miguel Pacheco e ao meu amigo - este sim, posso dizer de infância -, Miguel Aragão.

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quarta-feira, junho 08, 2005

Numa aula de Literatura Portuguesa com Maria Cavaco Silva

"Que a arte timbra-se para os nervos a vibrarem e não para a inteligência medi-la em lucidez."

Mário de Sá Carneiro

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"Despertar da Adolescência", 1953, Ernesto Frederico Scheffel

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Poemas da adolescência 1

Era tão bom que estivesse a chover lá fora
Para tu poderes partilhar o meu Inverno
De árvores destroçadas, despidas, e, sem demora,
Fazeres chegar a Primavera.

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segunda-feira, junho 06, 2005

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domingo, junho 05, 2005

Maria Ria

Joaquim atravessava o rio febril.
Nem a difteria abrandava cada remada,
Nem a manhã fresca e cinzenta de Abril,
Para que pudesse chegar-se à sua amada,
Mesmo temendo o contágio!
E tremendo e tossindo lá ia,
Não receando cruel adágio,
Que sem ela mais sofria
E se daria ao naufrágio
Da saudade e da mágoa.
Bastaria que os olhos se vissem
Na equidistância de água,
Trocando palavras que dizem
Sem dizer febres e fráguas
Que ardendo ardem sem se ver.
Acostando, a corrente se acalma,
E lá ia o Joaquim a arder
Nas combustões do corpo e da alma;
Na sofreguidão de a ver,
Maria, única e última mulher!
Maria, mulher sã, por seu turno
Mulher de muitos afazeres,
Não esperava a visita naquela manhã
De Abril fresco a humedecer
E cria Joaquim convalescente,
Que vinha da ourela até à vila.
Pela vereda descendente,
O empedrado que se afila
Rumo ao fito do padecente,
Onde repousaria no seu desígnio,
Joaquim, homem de amor infinito,
Que estando fora do seu domínio,
Se alimentava a jejum insatisfeito.
Então, farejava o perfume rarefeito de Maria.
Aquele fascínio... e seguia...
Já na vila, Joaquim, eriçado, viu Maria.
Evaporou-se bruscamente o delírio.
Apenas no corpo a torpe difteria;
No peito a fragilidade do mundo não lírico,
Ou no pensamento essa agonia.
Maria, a cura e um sono profundo,
Em cujos braços se devolveria.
A duzentos metros, lugar de delícias no mundo.
Lá estava ela, e bem disposta, Maria ria.
Levantou-se subitamente o vento
E Maria tornou fortuitamente a cara para Joaquim.
Viu-o, e no semblante, estampado tormento,
Volubilidade de tudo o que é para si,
Na mais egoísta essência de sofrimento.
Joaquim, escorrido, esperava dela os restantes passos.
Na derradeira súplica e silêncio desabado,
Maria despediu-se comprometida da mulher com quem falava
E meteu as mãos nos bolsos.
Virou-se, empedernida, para o outro lado,
Como que sem espírito; só carne e ossos.
Fragilidade! Teu nome é mulher!
Como quem vira a névoa da morfeia,
Maria correu para casa dos pais por saber
Que Joaquim não cometeria a asneira
De se apresentar naquele parecer.
E apenas quando em casa perdeu a compostura.
Maria chorou só o inconfessável egotismo salgado
E Joaquim perdera o sentido à fervura.
Suspenso, deu por si de novo no barco,
Embalado pelo rio, de água doce e pura,
Agitando-se mais o vento, adivinhada fúria.
Ninguém se aventurara ao rio no fim de tarde
Então chuvoso e esbatido. Oh!, néscia incúria
De Joaquim que de novo delirante parte,
Julgando ainda no amor ver a sua cura.
E foi então que, na maior amargura, se vergou à sorte,
Lume fátuo em vela que pouco promete, pouco perdura.
Sucumbiu ainda no bote, que deu à margem à noite
E só na tarde seguinte se notou a sua morte.

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sábado, junho 04, 2005

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Dia Final

A tua cor de sol
E os teus pés de areia
São o princípio e o final
De uma força que receia.

E foi ter-te tão perto
Que me fez deslumbrar
Quando o teu braço de ferro
Se deu a descambar.

- Temos o dia final
mas antes podemos ter o proveito –

Foi então que eu peguei
E te resolvi escrever
Mas tu nunca vais compreender. (2x)

Peço-te por favor,
Já que tu não me ouves,
Esta não é uma história de amor
Porque tu nunca me viste como eu te vi...

Sei que me não entendes.
Sei que quanto melhor te revelar
O meu mundo profundo,
O fundo do meu mar;
Os limos do meu poço,
O antro que é só meu,
(sendo, apesar de tudo, nosso)
Menos me entenderás...

- Temos o dia final
mas antes podemos ter o proveito –

- Temos o dia final
mas antes Temos de ter o proveito –

n.b. - "Dia Final" é a letra de uma música por mim composta em 1999, e gravada, pela primeira vez, creio que em 2001. Escrevi, de início, uma versão integralmente da minha autoria mas, alguns meses depois, ao ler e deliciar-me com a poesia de José Régio, deparei-me com uma passagem que assentava como uma luva no terceiro terço cantado da música. O referido trecho está assinalado a itálico. Trata-se do poema "Cartas de Amor", incluído na "Antologia Poética" do autor (Introdução e selecção de Eugénio Lisboa; Lisboa, Círculo de Leitores, 1993). Uma segunda interpretação de "Dia Final" está na forja, incluída - com mais nove outros temas -, na nova maquete de Baby Jane, que estará terminada em breve.

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sexta-feira, junho 03, 2005

"Asleep in the Garden", Cynthia West

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Vou dormir - digo eu.

"Tudo o que dorme é criança de novo. Talvez porque no sono não se possa fazer mal, e se não dá conta da vida. O maior criminoso, o mais fechado egoísta é sagrado, por uma magia natural, enquanto dorme. Entre matar quem dorme e matar uma criança não conheço diferença que se sinta."
Fernando Pessoa, in "Livro do Desassossego"

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"Tempo livre não significa repouso"

"Tempo livre não significa repouso. O repouso, como o sono, é obrigatório. O verdadeiro tempo livre é apenas a liberdade de fazermos o que queremos, mas não de permanecermos no ócio."

Bernard Shaw

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quinta-feira, junho 02, 2005

Diário de Bordo 1

Tenho tentado manter um respeito - digamos editorial - pelo leitor. Hoje, no entanto, não me parece que o faça. Fui jantar - em excelente companhia - à velha Trindade. Açorda de marisco - ou de gambas. "Pode alguém ser quem não é", ouço eu agora, n' "O Irmão do Meio", do Sérgio Godinho, comungando com a Teresa Salgueiro. Ofereci o cd à minha mãe, no dia dela. Na verdade, já lá vai o tempo curto do airplay e ouço agora o fabuloso " Lisboa que Amanhece"; ruído que a noite, a seu costume, transfigura. Já é manhã, no entanto, já tudo pode ser tudo aquilo que parece... na Lisboa que amanhece. Um abraço aos meus amigos e amigas camaradas de ofício. Por mim, marquei encontro com a vida; marquei encontro ao fim da tempestade. Foi, portanto, com colegas que fui jantar e conviver. Foi com velas laças que me deixei ao vento; foi com letras vagas e semântica fácil que fiz num verso a vitória do lamento. Envio também um abraço profundo ao César (Kaiser), de quem, apenas recentemente, descobri um blog. Por intermédio do blog do meu mano eterno KJ lá cheguei. Ao Gustavo (blogueaberto.blogspot.com), com quem estive recentemente, e irmão eterno, por tudo o que ele já fez por mim, aquele abraço - e apenas tu, Gustavinho, poderás saber do que falo. Ao Kaiser (e-entao.blogspot.com), que sempre admirei, a minha amizade também eterna. Reencontrei o César via comunidade blogosférica. Lá cheguei pelo blogueaberto. Boquiaberto estou. As palavras não chegam para te dar um abraço, César! Devêmo-lo, no entanto, ao nosso mano Gustavo. Parece-me, no fundo, que somos da mesma família... "Cheguem-se a mim, mais perto da lareira; vou-vos contar a história verdadeira..." Carlos do Carmo e Camané! Vocês saberão do que falo... Acrescento umas "Bohemias", imperiais, e vodkas-laranja à noite passada... que passou. Hoje, o Caderno de Corda foi verdadeiramente o meu diário de bordo. Até amanhã.

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quarta-feira, junho 01, 2005

Civis Judeus: Fotografia alemã tirada durante a destruição do gueto de Varsóvia, Polónia, 1943.

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Polónia

Tinha acabado de calçar as botas.
Na rádio, o anúncio do perigo iminente.
As sirenes soavam a demónios em devir.
A ameaça vinha do ar.
Os rapazes já não corriam, sobressaltados,
Ao seu encontro, na sala,
Junto àquela voz nervosa.
Disse-lhe o vizinho, o velho Wajda,
Que tinham sido levados para interrogatório.
Queriam informações.
Mas que podiam eles saber?
Wajda disse também que se seguia ele,
Assim que soubessem quem era o pai,
E depressa fechou a porta, entreaberta,
E se sumiu, gritando-lhe, de dentro, "Foge!"
Aquelas palavras não paravam de soar ao seu ouvido.
Temeroso, permanecia sentado,
Paralisado, sentenciado,
Ouvindo as solas pesadas
No tabuado carunchoso que rangia.
Aquele sapateado fúnebre
E lúgubre das gentes do prédio...
E as botas calçadas, nem patear
Nem fugir dali para fora,
Que trairia os seus rapazes.
Dez e onze anos.
A sua vida era a deles.
Seria bom que o viessem buscar depressa.

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