sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Post Celta

Não lamento informar os estimados leitores de que me ausentarei da blogosfora por breves dias. Motivo: viagem à Galiza.

Para enriquecer este post pobrezinho deixo-vos um trecho de uma canção nativa americana:

"We do not inherit the earth from our ancestors; we borrow it from our children"

Etiquetas: , , , , ,

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

"Jorge Palma, O artista português", Parte 5 (Entrevista integral, uncut, ao jornal Impress, 2003)

Quanto à “nova” música portuguesa e novas tendências, o que recomendas?

J.P. – Adoro os Clã, gosto dos Toranja, dos Terrakota, gosto muito dos Blind Zero, dos Ornatos Violeta... Xutos for ever, 'né?

E lá fora?

J.P. – Olha, eu continuo a ouvir o Tom Waits e... mas não tenho acompanhado muito. Isto tem sido uma fase de grandes mudanças na minha vida e eu vou sair desta casa [n.d.r. - Rua de São Bento], os discos estão... epá, alguns dentro de sacos ainda desde o Verão, e não tenho comprado música um bocado por isso também.

Pela descoberta, tens ouvido alguma coisa que seja mesmo “aquilo”?

J.P. – Por acaso não. Não tenho seguido muito. Continuo a ouvir rock. De Red Hot Chili Peppers a Tom Waits e Dylan e...

Porquê um vazio de 14 anos sem gravar um único album de inéditos?

J.P. – Foram quatorze?

Foram. Tipo Sporting... (risos) Gravaste coisas mas nada de inéditos.

J.P. - Estive sempre a trabalhar. Houve coisas que me deram muito trabalho.

É que parecias ter uma certa angústia. Querias gravar mas havia sempre qualquer coisa...

J.P. – Não, eu não tinha... aqui há várias coisas: houve trabalho efectuado de facto, que me ocupou bastante, como acabar o curso de piano, que ainda foram uns anos a estudar. Portanto, aquilo deu trabalho e demorou tempo.

E quando acabaste o Conservatório, gravaste o “Só”, voz e piano em simultâneo...

J.P. – Exacto. Se me enganasse no fim da música, voltava-se ao princípio - ou mesmo que não me enganasse. Aí, contei com a produção sobretudo do José Manuel Fortes e também do Francis, que não deixavam passar nada; quer dizer: se aquilo estivesse um bocado mortiço ou não sei quê. Mas depois começaram a convidar-me para cenas de teatro que também me deram trabalho. Escrever e trabalhar letras, textos, neste caso.

Mas tu também te associaste ao teatro um pouco pelo gosto que lhe tens... Brecht...

J.P. – Tenho gosto e... pois, depois houve as canções do Brecht, e cá está a tal influênciazinha não é? [n.d.r. - referindo-se a uma certa erudição clássica] Mas eu tive de estudar uma data de partituras do Kurt Weil e do Heisler, que me deram um trabalhão, claro! Estudar aquilo tudo para tocar ao piano, algumas para cantar, se bem que a maior parte fosse cantada pela Lia Gama e pelos outros actores. Foi muito trabalho. Noutra peça do Brecht trabalhei com a Regina Guimarães e com a Maria Velho da Costa. Também adorei trabalhar com ela a parte do texto, transformar aquilo em canções, e tive cada vez mais espectáculos. Fui tendo trabalho e, portanto, eu não sentia nem necessidade económica nem... porque estava entretido, estive sempre entretido. Depois havia as noitadas também e uma certa dispersão na minha vida toda, a minha indisciplina atingiu assim um cume, um clímax. Mas também ia adiando, talvez por um certo medo de não ser capaz de fazer uma coisa... um disco ao meu sabor.
Brevemente, a Parte 6. Não perca os próximos capítulos.

Etiquetas: ,

terça-feira, fevereiro 21, 2006

O Benfica é isto...

E quando a senhora gorda cantou, Luisão resolveu nas alturas. Venham mais colossos do futebol mundial subestimar o Glorioso, que a malta agradece. Sem calafrios, o Benfica dominou por completo. Luisão está perdoado; Moretto ainda não tem estaleca psicológica para a alta roda; Beto tem de aprender a jogar à bola, se bem que seja exímio em não deixar jogar... Mas todos se esforçaram; todos quiseram vencer. Isso foi, parece-me, notório. O Benfica é feito desta massa de impossíveis sonhados cuja fé de muitos concretiza. Não discorrerei sobre o jogo, até porque não poucos estimados leitores se aborrecem com as minhas por vezes extensas incursões ao planeta futebolístico. No dia 8 de Março, os campeões nacionais viajarão até Inglaterra, para a 2.ª mão dos oitavos-de-final da Liga dos Campeões, com um golo de vantagem na bagagem. Assim, termino com a descrição do momento decisivo, aos 83 minutos: Após falta sobre Karagounis, Petit marcou um livre pingado para a entrada fulgurante de Luisão, no coração da área, que cabeçou ao canto inferior, sem espinhas. Como escrevera hoje de madrugada no Poema Vermelho, haverá, por esta hora, muito provavelmente, numa grande ilha, «uma guitarra a lamentar heróis que não chegaram a sorrir pela algazarra de Liverpool estridulada». While My Guitar Gently Weeps... Os deuses ouviram-nos. Campeões eternos, reis sem sucessão, e vindos de Liverpool, só mesmo os Beatles! Go get them lads!

Foto ASF

Etiquetas: ,

Poema Vermelho

Pela noite, branda e azulada,
o canto dos grilos, a cigarra a fretenir
sons estridentes ao largo da estrada,
e ao fundo, numa ilha, o som de uma guitarra
a lamentar heróis que não chegaram a sorrir
pela algazarra de Liverpool estridulada,
que só os Beatles foram campeões perenes.
Enverguem hoje a camisola encarnada
os deuses da Luz deslumbrante do sonho.

Etiquetas: , , , ,

domingo, fevereiro 19, 2006

"Jorge Palma, O artista português", Parte 4 (Entrevista integral, uncut, ao jornal Impress, 2003)

Inicialmente, cantavas em inglês. Sei que tiveste alguma dificuldade em “converter” as tuas letras para português... Como é que entra o Ary dos Santos nessa história?

J.P. – Pois, foi o meu mestre em termos de técnica. Eu chegava lá, cantava-lhe uma melodia, eventualmente uma letra em inglês ou fazia lá-lá-lá, ele ouvia e começava a escrever coisas sem nexo, mas já com a métrica. Ia pensando e ouvindo, ia mudando esta palavra, aquela frase, e, de repente, tinhas ali uma canção com sentido. Ele era um mestre, de facto. Aprendi em muitas sessões, a trabalhar comigo ou com outros, porque ele gostava de trabalhar com muita gente à volta, gostava de sentir a atenção, de ter a casa cheia. Fui aprendendo a vê-lo trabalhar.

E o teu método criativo, como se processa?

J.P. – Não tenho método. É uma coisa um bocado anárquica; não tenho um processo, uma disciplina, um método disciplinado de trabalhar. É conforme calha...

E quando tens mesmo de fazer, como já te aconteceu, para o dia seguinte?

J.P. – Acontece muitas vezes alguém pedir-me uma letra ou uma música e, como eu estava a dizer, é-me mais fácil musicar uma letra já feita do que inserir uma letra numa música pré-existente. Demoro mais tempo a construir uma letra para uma música já feita do que o oposto. Musicar uma letra é à primeira ou à segunda porque a letra conduz-me logo para um tipo de música, para um ambiente mais calmo, mais agitado, tom menor ou tom maior, mais linear ou com maior variedade em termos de tempos, de ritmos, portanto, mais simples ou mais complicado...

Mas tu tens coisas que são bastante complexas, que não se fazem assim à primeira...

J.P. – Pois, há músicas em que eu exploro a parte rítmica, a parte harmónica, a variação de compassos inclusivamente... Influências do rock sinfónico, dos Genesis, do Zappa - o Zappa não é propriamente rock sinfónico, mas, portanto, desse tipo... -, Gentle Giant, Soft Machine, etc... E grupos de fusão: os Chicago, os Blood Sweat and Tears, influências do jazz, sei lá... Houve uma altura em que me dava imenso gozo fazer músicas, algumas, de oito minutos...

Autores como Sérgio Godinho, José Mário Branco, Bob Dylan, Paul Simon, Led Zeppelin, Zappa, Lou Reed, etc, foram influências incontornáveis na tua música... Por vezes tu tentaste mesmo imitá-los, num bom sentido...

J.P. – E muitas músicas surgiram assim. Olha, digo-te já: a “Terra dos Sonhos”, que gravei em '79, saiu em '80, é à partida uma tentativa de imitar o Sérgio, e foi por isso que o convidei para gravar comigo. E foi porreiro. É evidente que, quando o tento imitar, eu já sei que não vai sair igual (risos). Portanto, não tenho problema nenhum nisso. Já ouve canções que surgiram a tentar imitar o Neil Young ou o David Bowie... Se eu te disser que o “Bairro do Amor” é uma tentativa de imitação do Lou Reed, também de nenhuma canção em particular mas...

Podia ser o “Satélite do Amor”...

J.P. – (risos, trauteando Sattelite of Love, de Lou Reed)

Agora, tens uma parceria com o Sérgio Godinho. Porque é que os dois não se juntaram mais vezes antes?

J.P. – Eu estava a falar do individualismo... mas não é o caso. Por exemplo, o Sérgio, já num espectáculo grande que fez, não me lembro se no Coliseu se na Aula Magna, convidou-me para participar. E eu tenho convidado - tenho um bocado tendência para convidar muita gente - os meus amigos para participarem em espectáculos e nos discos. O Sérgio já me convidou para fazer coros em discos dele, convidou-me para cantar. Não me lembro como é que se chama a canção agora, de repente, nem me estou a lembrar da canção... É uma balada muito bonita. Não é das mais conhecidas... Mas, de facto, não sei..., há um certo individualismo, falando da parte de composição, sobretudo. Acho que nós gostamos de trabalhar sozi... não!, o Sérgio já tem trabalhado bastante com os brasileiros, por exemplo. Com o Milton, esse pessoal todo. E agora, neste disco [n.d.r. - O Irmão do Meio], está o Milton, está o Zeca Baleiro, que ele convidou para a Festa do Avante e que eu estive a ver, acho que há dois anos. Olha, não sei pá, a gente encontra-se sistematicamente. Para já, nos palcos, e na rua. Aliás, é giro porque, quando eu estava a viver baseado em Paris, não é?, encontrei o Sérgio para aí três ou quatro vezes na rua, assim ao virar da esquina, a comprar tabaco. Também porque se frequentava o mesmo tipo de zona... Quartier Latin, Babylon ...

Andavam os dois fugidos?

J.P. – Pois! Mas fartei-me de encontrar portugueses. Até o Zeca Afonso pá! (risos) O Júlio Pereira, sei lá, o Pedro Osório...

O Júlio Pereira tocou contigo...

J.P. – Gravou comigo muitas vezes. No “Té Já”, no “Bairro do Amor”... O Rão também está lá... Ah, nisso tenho tido muita... por acaso nunca tive um «não» de ninguém e tenho convidado os melhores... Para mim, não é?

Um álbum contigo é um momento histórico!

J.P. – Mas eu nunca escrevi uma canção com o Sérgio, estava a lembrar-me disso. Nunca aconteceu, nunca calhou. Com o Vitorino já. Também nunca escrevi nenhuma canção com o Fausto. O Fausto, então, acho que gosta muito de trabalhar sozinho...
Brevemente, a Parte 5. Não perca os próximos capítulos.

Etiquetas: ,

sábado, fevereiro 18, 2006

Aspecto parcial do Beco dos Birbantes

Etiquetas: , ,

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

Rua Crítica Literária aos Birbantes

Sentado, vincado à escrita que o não comove, merencório,
o mais vetusto poeta dos Birbantes ataviava-se em custosa
verborreia de ornamentação, por demais dispendiosa
para tão estudado missal e eremítico solilóquio.

Vizo, dizia ele, terminando um verso,
portas-meias, silêncios de ouro.
Digo eu, nesta noite do meu Inverno,
látego e sofrido de dispêndio mouro,
que aqui também Camões deixou tanto verso,
mas seguramente não o olho.

Deixou cá o corpo... se mais, não sei...
Em terra de cegos, quem tem um olho é rei!

Mas Barahona vai mais longe!,
dispersado por flotilhas que diz ver
no passado, amanhã e hoje,
e é tão lábil que não teme escrever
o que bem lhe apetecer,
mesmo que ninguém o possa compreender!

Palavras como saxe, altercações mate,
se pela cor se distingue e não antes p'lo cheiro...
E o monólogo prossegue em Pássaro-Lyra,
obducto de impasse e charada e dislate,
e o autor esquece o leitor por inteiro;
antes intenta a vergôntea mentira,
tão intrincada, que passa por iluminação o disparate;
por falso o verdadeiro.

Barahona não é dos Birbantes o último, mas muito menos o primeiro!

Etiquetas: , ,

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

"Jorge Palma, O artista português", Parte 3 (Entrevista integral, uncut, ao jornal Impress, 2003)


Esta tem alguma malícia: Se hoje tivesses 18 anos, inscrevias-te numa “Operação Triunfo”? Tendo em conta as directrizes que regem programas deste género, crês ser possível ver saltar Jorges Palmas, Godinhos, Zecas ou Dylans de lá para a ribalta? Ou seja, será que indivíduos com capacidades realmente acima da média e não simplesmente boas vozes...

J.P. – Pois, pelos vistos... mas já desde o “Chuva de Estrelas” que de lá saíram... Sara Tavares, por exemplo...

Mas... raros casos...

J.P. – São raros casos...

Também com o apoio que tinham na retaguarda... tendo presença e uma boa voz não seria tão difícil mas...

J.P. – Pois...

No teu caso, vocês que tiveram de lutar por um lugar ao sol e o conseguiram por mérito próprio...

J.P. – Bom, repara, há um bocado estávamos a falar de a gente se conhecer, os músicos, as bandas, não é?, e os cantores como o Paulo de Carvalho, o Fernando Tordo, o Carlos Mendes... Havia uma...

Um certo espírito comunitário?

J.P. – Havia um espírito de comunicação muito aberto, de entreajuda, e, por outro lado, com o pessoal dos meios de comunicação. Olha, o Carlos Cruz, por exemplo; o Thilo Krassman, o Júlio Isidro... As pessoas que já nessa altura estavam em controlo das poucas editoras que havia... Tratávamo-nos todos por tu e, de certo modo, eu, por exemplo, tocava... benzinho, não é?, e então todo o pessoal do meio me conhecia. Portanto, não me foi muito difícil gravar os primeiros discos. E nunca tive problema, de facto. Quando eu tinha material, nunca me preocupei com uma regularidade de se fazer um disco por ano ou...

Quase automaticamente, as pessoas do meio reconheciam-te valor...

J.P. – Sim, desde os primeiros discos.

Achas sinceramente que, hoje, um indivíduo com o talento do Sérgio Godinho ou do Bob Dylan, por exemplo, com vozes nada por aí além, passavam num casting a imitar outro? É por isso que estou a fazer esta pergunta.

J.P. – Exacto. Vêem-se ali óptimas vozes, muitas delas já bastante seguras e bem trabalhadas... Agora isso não chega porque, sobretudo a nível de letras e de composição num modo geral, letras e músicas...

Eles assim são como receptáculos...

J.P. – Exacto. Reproduzem mas não produzem a matéria prima. E, nesse aspecto, temos algum défice. Por outro lado, há bandas a escrever muito bem, até em inglês, como é o caso dos Blind Zero, entre outros... Temos aí os Clã, temos muita gente a fazer coisas muito porreiras. Mas eu não estou a tentar fugir à questão da “Operação Triunfo” e do “Chuva de Estrelas” e não sei quê...

Mas não seria muito mais produtivo ter também gente a tocar realmente?; grupos, projectos, ao vivo?...

J.P. – Repara numa coisa: Para todos os efeitos, esses programas são operações de marketing, máquinas de construir audiências, e eu prefiro qualquer desses programas, até pelo pessoal que envolve - a Maria João, os professores e não sei que mais -, mas aquilo não é uma academia de facto, ou seja, a maior parte daqueles putos não vai tendo apoio à medida que vão saindo. Conquistam alguma visibilidade, aprendem alguma coisa. Embora para alguns possa ser eventualmente um trampolim, é uma questão de sorte também, de jeito para se mexerem, e de talento! Eu acho que o que conta no fim é o talento e a vontade.

Não me oponho à existência desses programas, nem pouco mais ou menos.

J.P. – Se comparares com “Big Brothers” e não sei quê, mil vezes este...

Nem acredito que, num programa deste género, os tipos que têm um talento nato, que queiram escrever e que queiram fruir a liberdade de fazer coisas como tu fizeste, o Sérgio Godinho, ou outros, e que tenham coisas para dizer, se os há, sequer concorram a um programa destes pela mera questão da visibilidade...

J.P. – Pois... eu, sinceramente, acho que não é por aí que se vai construir um tecido artístico... Para criar estruturas, não é por aí. É evidente que o que faz falta é, para já, locais como o Johnny Guitar...

Hoje em dia não temos sítios para tocar...

J.P. – Não há, não há... isso é uma grande lacuna. Falta a prática de ver disseminadas coisas assim.

Nunca pensaste em fazer uma coisa do tipo Johnny Guitar?

J.P. – Epá, eu acho que sou um desastre para gerir um negócio desses (risos). Mas voltando, sobretudo a rádio... Tu ouves a maior parte das estações de rádio, as mais importantes, com maiores audiências, parece que estás em Inglaterra ou nos Estados Unidos, e a passar temas ou “muita” velhos ou mesmo mauzinhos... Nem sequer é a melhor música anglo-americana que é passada, de um modo geral. E na televisão, que é que tens? Tens talk-shows, vais lá fazer um playback ou tocar uma musiquinha e pronto. Saiu um álbum...
Tu não te dás muito aos playbacks ...

J.P. – Prefiro tocar ao vivo, é evidente. Uma coisa são os programas que nos anos oitenta havia, programas de uma hora, semanais, com o pessoal português, que deixaram de existir. Hoje, quando o rei faz anos, aparecem os Madredeus, mas não há essa prática, o que é um desconsolo, acho que é ridículo. A única hipótese que tu tens de aparecer na televisão e mostrares uma canção ou duas do teu novo álbum, é ires ao Herman. Mas normalmente não há condições sequer para tu tocares ao vivo. O Herman, por acaso, é uma excepção. A maior parte das bandas que lá vão até fazem... como é uma série de convidados, em tempo real, para montares o backline, para não sair um som de merda, tu jogas pelo seguro e fazes o playback. Isso, nesse aspecto, não está nada facilitado.
Brevemente, a Parte 4. Não perca os próximos capítulos.

Etiquetas: ,

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

«O amor é como a lua; se não cresce, mingua»

Cartas de Amor Ridículas 3

Ao invés de atenuares a minha dor,
salgaste as minhas feridas,
temperaste-as com o teu suor,
para me deixares em promessas devidas,
remexendo o meu ardor.

Etiquetas: ,

terça-feira, fevereiro 14, 2006

"Jorge Palma, O artista português", Parte 2 (Entrevista integral, uncut, ao jornal Impress, 2003)


Por volta de ´70, andaste à boleia, sabe Deus como, um pouco por toda a Europa, a tocar na rua. Os tempos eram difíceis e conturbados. As drogas proliferavam e chegaram a perguntar-te, na tua própria casa, quem eras tu.

J.P. – Isso é já na segunda metade dos anos setenta.

Pois, é mais para a frente. Hoje já não manténs esse andamento...

J.P. – Não, em termos de drogas, não. A minha abstinência de bebida é bastante recente. Já fiz várias tentativas, sobretudo o ano passado, que deram em recaída e, neste momento (2003), acho que já ultrapassei essa fase.

E agora? Assentaste? A saúde é uma preocupação tua ou ainda te dás a alguns excessos? (uma vez que era uma chatice perdermos prematuramente um criador como tu)

J.P. – É verdade. Estou a fumar desalmadamente... senti-me... sobretudo... (é evidente que já tenho 52 anos e essas coisas sentem-se) ... eu bebia em excesso, as ressacas eram horríveis, e comecei a sentir-me deprimido porque não estava a construir...

Não eras tu que tinhas mão nas coisas...

J.P. – Não, às tantas já não era. Não tinha força de vontade, não tinha energia para construir coisas. Quando estava bêbedo não fazia nada de jeito, não é? Nem escrita... Houve mesmo situações de concertos em que eu saía de lá a sentir que podia ter dado muito melhor, ou me esquecia da letra ou, sei lá, que isso pode acontecer (acontece a muito boa gente), mas a sentir que a minha prestação, a minha dádiva, a minha oferta, estava muito aquém daquilo que eu podia fazer, e nas ressacas, então, era uma inactividade total.

Boémia e noites brancas... Para aproveitar o escasso tempo de viver? Consideras que, de alguma forma, o teu intenso desejo de liberdade foi alcançado ou, por outro lado, te prejudicou?

J.P. – Digamos que, na relação com as drogas, incluindo o álcool, há fases em que eu escrevi coisas que considero bastante interessantes e bem feitas sob a influência do álcool ou... sobretudo. O álcool, digamos que tem sido a minha droga - droga na medida em que consumia em demasia, sem controlo, porque é bom beber um bom vinho, um bom champanhe ou...

Nesse caso, pões de parte as drogas leves...

J.P. – Não, eu não tenho nada contra fumar um cigarro de haxe ou de erva, mas não sinto necessidade, percebes? Não é uma coisa que me ocorra frequentemente. Se estiver num círculo de amigos em que me passam um charro, eventualmente até fumo. Nesta altura do campeonato, estou a evitar tudo isso. A evitar não, estou mesmo afastado desses consumos. Estou a fumar muito e a beber muito café. São as coisas que neste momento me poderão estar a prejudicar do ponto de vista da saúde. Acontece que eu tenho um organismo de ferro, pelos vistos, não é? Senão, podia muito bem já não estar aqui... Mas há outra coisa fundamental em relação a isso, porque há aquele engano de que podes pensar que a criatividade se pode esgotar caso não tenhas o auxílio dessa bengala. Não sinto nada isso, pá! É um medo injustificado. Sinto a minha cabeça muito mais leve e livre. Essas experiências todas, aconteceram, tinham de acontecer e foram experiências. Podiam ter dado para o torto; felizmente não deram.

Tocaste no 1º Vilar de Mouros. Como sopravam os ventos nessa época em termos de oportunidades artísticas e mentalidades, comparativamente ao panorama musical hoje estabelecido?

J.P. – Bom, o Festival de Vilar de Mouros foi um acontecimento à escala nacional muito, muito importante porque vivíamos numa ditadura. Para todos os efeitos, o regime era o mesmo - era o Marcelo Caetano, já não o Salazar -, mas foi um recriar do Woodstock à escala portuguesa.

Dois anos depois...

J.P. – Exacto, e isso foi muito giro porque foi de facto muito pouco tempo depois. Foi uma lufada de ar fresco enorme. Passei lá o tempo todo. Acampei, como aliás quase toda a gente, porque não havia infraestruturas, e foi muito bom. Houve muitas bandas, aquilo funcionou maravilhosamente, o espírito... as pessoas despiam-se, queriam... os guardas não chateavam, a população local ficava um bocado de boca aberta, as lojas esgotavam tudo, não havia pão...
Brevemente, a Parte 3. Não perca os próximos capítulos.

Etiquetas: ,

domingo, fevereiro 12, 2006

Os cartoons dos cartoons...

Uma segunda vaga de cartoons, desta feita alusivos à reacção àqueles publicados no jornal dinamarquês Jyllands-Posten, já entrou em marcha, sendo certo que órgãos de informação (?!) islâmicos iniciaram também uma verdadeira campanha de injúria utilizando o mesmo "armamento", cujas munições contêm tinta, muita tinta (antes assim)... Descobri aqui coligidos uma série de cartoons (estes, com piada) dos melhores cartoonistas de todo o mundo (onde só falta mesmo o Ricardo Galvão), intitulada Those Muhammad Cartoons... De lá escolhi uns quantos, que hoje publico.
Não a despropósito, ainda há pouco mais de duas semanas o grande caricaturista português Ricardo Galvão me desenhou caricaturalmente, obra que, por acaso, emoldurei ontem. Não me fez mais bonito... Talvez lhe faça uma espera à saída do jornal A BOLA, com um bando de capangas... Não perde pela demora...

Bob Englehart

Stephane Peray

Matt Davies

John Deering

Jeff Stahler

Dario Castillejos

Ingrid Rice

Christo Komarnitski

Signe Wilkinson

Alen Lauzan Falcon

Chip Bok

Cameron Cardow

Signe Wilkinson

Bill Day
*

No mesmo site encontrei ainda cartoons referentes ao atoleiro do Iraque, a Bush ou a Bin Laden. Não resisto publicar uns poucos...

Cameron Cardow

Olle Johansson
David Horsey

Jeff Stahler
*
Divirtam-se!

Etiquetas: , , , , , , , , , , ,

sábado, fevereiro 11, 2006

Os cartoons que muitos ainda não viram

Partindo do sensato pressuposto de que nem as acções e intenções da América (ou dos americanos) podem ser deturpadamente confundidas com aquelas da administração Bush; nem as do Islão com as dos chamados radicais árabes, hoje, num acto de coragem assumida, publico os cartoons da discórdia, que alguns já dizem estar na origem da Terceira Guerra Mundial; outros, que são substância de consistência à coisificação da Guerra de Civilizações, para muitos, apocalípticos, o fim do mundo, o dia do juízo final, a derradeira batalha entre o Bem e o Mal - apesar de, do meu ponto de vista, ver dois males em rota de colisão, ambos sob o pretexto - esse sim, sacrílego - do Bem... O despoletado pelos desenhos, que muitos ainda não tiveram oportunidade de ver (os cartoons foram literalmente censurados nos Estados Unidos da América), colocou em xeque, por um lado, a herança das maiores conquistas civilizacionais do Ocidente, a em tempos utópica liberdade de expressão, e por outro, um profundo dogma espiralado concentricamente, tão hipnótico e manipulador quanto a debulhadora americana. A liberdade de expressão e a liberdade da imprensa são as traves mestras de qualquer sociedade democrática. É precisamente o direito de questionar o status quo que permite a uma sociedade desenvolver-se e prosperar. Mas a liberdade de expressão deverá estar sempre aliada à liberdade religiosa e ao respeito entre religiões e culturas.
Publico hoje os cartoons precisamente por e para aqueles que ainda os não viram. Para que saibam exactamente o que levou milhares de pessoas a odiar uma nação, confundida ignorantemente com um mero órgão de comunicação, suas editorias, seus criativos, seus cartoonistas (cartunistas, eu sei); para que possam, depois da reacção gerada, avaliar com conhecimento de causa, pensamento livre, o sucedido. Eu próprio, jornalista, produzo conteúdos. Sou o primeiro a editar-me, o censor-mor do reino do meu corpo, raiano do que em essência sou, e das palavras que a minha mão escreve. Eu não faria aqueles desenhos, mas aceito-os, como aceito a música do Nel Monteiro, igualmente blasfema para a Grande Música. Não os publicaria acaso fosse o editor do jornal Jyllands-Posten. Desconheço o que que se passou, naquele dia, naquela redacção, para que os cartoons se produzissem. Desconheço se influências exteriores houve para que se beliscasse uma zona tão sensível do mundo islâmico. Mas não posso aceitar que, em resultado dos desenhos, se peça a cabeça dos autores. Muito pior, menos posso aceitar que, depois de ver as suas embaixadas destruídas em actos de radicalismo grosseiro, fanatismo tresloucado, o povo ou o governo da Dinamarca deva um pedido de desculpas ao Islão (?!). Um assalto cobarde a uma embaixada é seguramente pior do que uma declaração de guerra. Não gostaria de ser dinamarquês num momento de tensão como este. Tal como os Taliban não têm domínio sobre os cartoonistas dinamarqueses, também o governo dinamarquês o não tem. É precisamente essa a beleza da coisa! Num rodapé noticioso li: «Taliban dão 100 quilos de ouro a quem matar autores dos cartoons.» O primeiro ministro dinamarquês, Anders Fogh Rasmussens, disse, no dia 3 de Fevereiro, a uma assembleia de diplomatas: «Deparamo-nos com um problema, que pode crescer a ponto de se tornar num problema global. Os cartoons foram agora republicados numa quantidade de jornais em toda a Europa e se os protestos nas ruas escalarem mais ainda, poderemos enfrentar repercussões imprevisíveis em todos os países afectados.» Na verdade, os radicais islâmicos fizeram de cartoons inofensivos sem carga noticiosa, sem força de notíca, referência jornalística ou importância, algo de publicação obrigatória. A Europa e o povo europeu não pode ser posto em xeque, sob ameaça de guerra ou sabe-se lá o quê, sem conhecer o motivo. E a Dinamarca não pode pedir desculpa pela emissão de uma opinião livre publicada num jornal europeu. Citando o manifesto Como Uma Liberdade, que circula na Internet, «tal será como pedir desculpa pela Magna Carta, por Erasmo, por Voltaire, por Giordano Bruno, por Galileu, pelo laicismo, pela Revolução Francesa, por Darwin, pelo socialismo, pelo Iluminismo, pela Reforma, pelo feminismo».
Em 1689, John Locke escrevia, na sua Carta sobre a Tolerância, que «a tolerância […] aplica-se ao exercício da liberdade, que não é licença para fazer tudo o que se deseja, mas o direito de obedecer à obrigação, essencial a cada homem, de realizar a sua natureza».
Deixo-vos os cartoons, divulgados aqui.

Etiquetas: , , , , , , , , , , , ,

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

"Jorge Palma, O artista português", Parte 1 (Entrevista integral, uncut, ao jornal Impress, 2003)


Na infância, o teu brinquedo foi um piano. Começaste a ter aulas aos seis anos. Aluno de vintes na primária, seguiu-se o “descalabro” no Liceu Camões e, consequentemente, o colégio interno. Eras um miúdo meio revoltado?

J.P. – Eu não diria revoltado, eu diria rebelde, inconformista ou... epá...

A que é que se isso se devia?

J.P. – Era um miúdo com... havia uma série de coisas de que eu não gostava, a sociedade em que se vivia era uma... portanto, havia uma repressão e opressão, sentia-se a opressão, uma sociedade muito antiquada, conservadora. Há sociedades conservadoras que não são necessariamente retrógradas, ou seja, conservam os seus valores e têm brio na tradição e não sei quê... No nosso caso era uma estagnação pura e simples, era um país cinzento, o ensino, a educação, tudo era desconfortável, desagradável e, portanto, é natural que um miúdo de dez ou onze anos, que vai para o liceu, começa a conhecer os amigos, uns mais vivos que outros, mais vivaços... e eu tinha tendência para alinhar com os mais vivaços, não é? (risos)

Nunca tiveste no horizonte o curso, seguir os estudos?

J.P. – Não, era um dado adquirido. Era uma coisa que nem sequer dava para eu me interrogar ou pôr em causa porque estava decidido que eu acabava o liceu e depois ia para a Universidade e, não sei porquê, mas o pessoal - o pessoal, quer dizer, a minha mãe, o meu pai, a família - achava que o menino tinha muito jeito para Engenharia Electrotécnica (risos), e eu, “tá bem, porque não, tudo bem”, lá porque sabia fazer umas ligações e tinha apanhado uns choques, desmontado uns brinquedos e voltado a montá-los e não sei quê... Depois sobravam sempre peças mas... pronto, foi uma coisa que eu naturalmente segui. Por exemplo, quando acabo o quinto ano e é preciso decidir se vou para letras ou ciências, naturalmente fui para ciências porque ia ser engenheiro. Se calhar, se tivesse pensado, fazia mais sentido ir para letras. Como no fundo havia uma relação com a música, que se manteve desde sempre, tão espontânea, tão natural, acho que nunca pus em causa que a música faria parte da minha vida, que eu iria sempre funcionar com a música. Tirar um curso paralelo, tudo bem! E mesmo assim ainda fui até ao segundo ano, mas então houve uma série de mudanças políticas, uma grande agitação estudantil, eu comecei a ganhar o primeiro dinheiro - aliás, o primeiro dinheiro foi ainda com as bandas -, mas comecei a ganhar dinheiro a solo, portanto, a fazer orquestrações, gravei o primeiro disco (single)...

Como é que tu conseguiste...

J.P. - Comecei a perceber que dava para sobreviver com a música e cada vez mais...

Conhecias pessoas...

J.P. – Sim, era um meio pequeno... eu conheci os músicos praticamente todos, de Lisboa, Porto, Algarve...

Paravam todos nalgum sítio? Vá-Vá?

J.P. – O Vá-Vá, por exemplo, era um sítio de referência.

Os “Sheiks”?

J.P. – Os “Sheiks”...

Que te levaram ao Ary dos Santos...

J.P. – Exacto, o Fernando Tordo foi quem me deu o telefone do Ary... mas conhecíamos todo o pessoal. No primeiro festival de Vilar de Mouros, estive lá com a minha banda e toda a gente se conhecia.

A tua banda era o Sindikato...

J.P. – Sim. A gente tocava sobretudo covers.

Mas eram conhecidos, já na altura...

J.P. – Éramos conhecidos sobretudo no meio estudantil. Fazíamos as festas dos liceus e... fartámo-nos de tocar.

Em álbuns como o “´Té Já”, de ´77, reuniste uma série de músicos de calibre... Rão Kyao, Júlio Pereira, Armindo...

J.P. – O Armindo gravou bastante comigo.

Tu conhecia-los todos ou era a editora que...

J.P. – A gente conhecia-se. Por exemplo, se eu precisava de um Hammond - um órgão que quase não havia em Portugal -, o Zé Cid, que tinha um, emprestou-mo várias vezes. Havia no Porto também o Miguel Graça Moura (maestro). Esse era um dos que tinham um Hammond também. Eram raros os que existiam em Portugal. Mas havia um intercâmbio... Haviam os Vox também...
Brevemente, a Parte 2. Não perca os próximos capítulos.

Etiquetas: ,

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Nota Autoral 3 - "Jorge Palma, O artista português" (Entrevista ao jornal Impress, Maio de 2003)

É curioso. Escrevi ter reencontrado, no dia 20, por duas vezes em meia hora, O músico português vivo, o verdadeiro e virtuoso, o último artista, um amigo, uma referência. Tinha ficado de lhe ligar. Assim fiz, pouco mais de uma semana depois. No dia 5, fim de tarde no Pão de Açúcar (ou será Pingo Doce?) das Amoreiras, pegava eu num cacho de bananas e, logo ali, de olhar remoto nos congelados - lulas, Jorge? -, com um pequeno papel na mão - a lista de compras -, lá estava ele de novo. Tocara na noite anterior no Maxim. Parece que ficou por lá a tocar até às 6 da manhã, também na companhia «do pessoal dos Rádio Macau», que apareceram como amigos, fãs e músicos. Disse-me ter tido a impressão de ter contado, uncut, 4 horas de concerto. Estava rejuvenescido às 18 horas do dia seguinte, reificado um sorriso genuíno, tranquilo, e óbvia a sensação de dever cumprido mas, antes de mais, fruído, desfrutado, que as maiores e mais incessantes alegrias são aquelas que partilhamos com os outros...
Atirava eu, no início do texto, que algo é curioso. Os sucessivos reencontros com o Jorge são curiosos, bem como as circunstâncias... Mas mais curiosa creio eu ser, por ser pecado nunca tê-la publicado na íntegra, uma entrevista que fiz ao Jorge, a 14 de Abril de 2003, na casa dele de então, na Rua de São Bento, mesmo em frente da casa onde Amália Rodrigues viveu grande parte da sua vida e morreu. Dizia então que a entrevista - ou conversa informal - fora realizada para o primeiro número do já defunto jornal Impress, fundado por meia dúzia de alunos de jornalismo da Universidade Autónoma de Lisboa, em Maio de 2003, entre os quais eu era um. Tanto feliz acaso iluminou, num recanto frio e pardacento do meu pensamento, a ideia: publicar, no Caderno de Corda, por partes, a entrevista na íntegra, na toada verbal, oral, escorreita em que ocorreu, evitando editar ou modificar os termos; evitando alterar estruturalmente o natural decorrer da conversação. Está prometido. Por hoje fica apenas o anúncio. Sempre quis dizer isto: Não perca os próximos capítulos!

Etiquetas: , ,

terça-feira, fevereiro 07, 2006

segunda-feira, fevereiro 06, 2006

Quem sou eu (Jeremias Cabrita da Silva)

Quem sou eu depois do que escrevi?
De quem?, as palavras de que não me lembro?,
Os ditongos sonoros e novos; as línguas ardendo...
Quem sou eu depois do que já vi?,
Dos rostos de que vagamente me lembro – e são poucos –,
Das palavras roubadas ao deus-dará...,
Mas verificadas, levadas à prova e então reconhecidas...
Ainda assim, sempre roubadas, as palavras,
Recordadas, que ninguém nasceu ensinado!
Quem sou eu depois do que já esqueci?
Eça, Pessoa, Régio, Camilo, Camões,
Todos se rememoraram num vaivém de solidões
E todos se curvaram apenas perante a poesia,
Ascética, comovente e dramática na mesa fria,
Memória de um dia que um poeta-pessoa revivia.
Olhos estirados sobre espécie de manto azul
Espraiado imaginariamente no papel
sem saber nadar na mancha de texto...
Morremos, morremos, devagar em fel...
Precisamos de um pretexto.
Sou eu, quem sou.

Jeremias Cabrita da Silva

Jeremias Cabrita da Silva, hoje com 82 anos, escreveu "Quem sou eu" despretensiosamente, segundo diz, depois da visita de uma tia, tinha ele 54 ou 55 anos. Procedendo aos trabalhos de arrumação da cave do monte, encontrou o velho baú que pertencera ao seu avô – aliás, criado pelo próprio -, um homem que, segundo a tradição de família, sempre trabalhara com as mãos, artífice exímio de marcenaria. O legado familiar fora quebrado, segundo ouvi da boca do senhor Jeremias Cabrita da Silva, pelo seu pai, um dos primeiros taxistas da região de Cuba, localidade típica alentejana, rodeada de olivais, onde o perfume do feno e a cal nívea tão sincera e prostrada das casas caiadas se assemelhavam prazenteiramente a caruma adormecida no solo longínquo onde brincaram crianças geração após geração, chutando pinhas junto à estrada. Jeremias não espreita hoje pelas janelas e portas que se emolduram de faixas azuis e ocres, sempre parcas, pequenas, para resguardar os quintalitos traseiros com laranjeiras, limoeiros e figueiras, do calor abrasadoramente árido do Alentejo estiolado. Jeremias rememorou-se e aos seus nas horas que, naquela tarde de espera pela tia Assunção, deveria ter passado aprumando a casa para a visita. Abriu o baú das recordações de família e, revolvendo-se gaiato, pernas cruzadas à chinês, escreveu depois este poema sobre o tampo do baú talhado pelas mãos do avô José Ernesto.

Etiquetas: , , , ,

sexta-feira, fevereiro 03, 2006

Laos. Pescador nas contraditoriamente calmas águas do rio Mekong

Etiquetas:

Cartas de Amor Ridículas 2

Gostava de ser pescador,
debatendo-me com o mar,
lançando uma rede à minha dor
e voltando a terra com o ar
de quem extirpou o seu terror.
De braços abertos, o sol no corpo,
recebo a gente em meu redor.
Dou-vos a minha gratidão
por ter chegado salvo e são;
dou-vos o último sopro,
mas que é feito do meu amor?,
que mesmo com tamanha recepção
em terra, sinto um tal desgosto...
sem meu amor à minha espera,
tamanha solidão.

n.b. - Com agradecimento aos Waterboys...

Etiquetas: ,

quinta-feira, fevereiro 02, 2006

Álvaro de Campos. Pormenor do mural de Almada Negreiros na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (1958)
Engenheiro naval «franzino e civilizado», o mais fecundo e versátil heterónimo de Fernando Pessoa é também o mais nervoso e emotivo, que por vezes vai até à histeria. Com algumas composições iniciais que algo devem ao Decadentismo, Álvaro de Campos é, sobretudo, o futurista da exaltação da energia, da velocidade e da força da civilização mecânica do futuro, patentes na "Ode Triunfal". É o sensacionalista que pretende «sentir tudo de todas as maneiras», ultrapassar a fragmentaridade numa «histeria de sensações».

Etiquetas: ,

Pequeno excerto de "Tabacaria" (Álvaro de Campos - Fernando Pessoa)

(...)

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência,
Por ser inofensivo,
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

(...)

Álvaro de Campos, 15-1-1928

Etiquetas: , ,

quarta-feira, fevereiro 01, 2006

Gratuitidade

Nado-morto, como Bola que rola fui dado à luz sem vida.
Sem desconforto dou à sola, encontrarei guarida,
novo orto, nova escola onde a centelha saia de vencida,
e o mentiroso, o bifronte calculista e simulado, esse abutre fratricida,
tenha vergonha, se encontre, se respeite, viva a vida!,
que afinal lhe foi dada e não tem de ser vencida
como batalha combatida.

n.b. - Refiro-me a um estado de espírito que temo ser colectivo... Um abraço a todos os que sentem que lho dedico.

Etiquetas: ,